CSM|SP: Registro de imóveis – Carta de adjudicação tirada de inventário – Limites da qualificação do oficial registrador – Ausência de ferimento de qualquer princípio registral – Recurso provido.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação n° 0000434-11.2015.8.26.0439, da Comarca de Pereira Barreto, em que é apelante CLAUDINEI DE NICOLAI, é apelado OFICIAL DE REGISTRO DE IMÓVEIS, TÍTULOS E DOCUMENTOS E CIVIL DE PESSOA JURÍDICA DA COMARCA DE PEREIRA BARRETO.
ACORDAM, em Conselho Superior de Magistratura do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão: “DERAM PROVIMENTO AO RECURSO. V.U.”, de conformidade com o voto do(a) Relator(a), que integra este acórdão.
O julgamento teve a participação dos Desembargadores JOSÉ RENATO NALINI (Presidente), JOSÉ DAMIÃO PINHEIRO MACHADO COGAN (DECANO), ARTUR MARQUES, RICARDO TUCUNDUVA (PRES SEÇÃO DE DIREITO CRIMINAL), RICARDO ANAFE E EROS PICELI.
São Paulo, 9 de novembro de 2015.
JOSÉ CARLOS GONÇALVES XAVIER DE AQUINO
CORREGEDOR GERAL DA JUSTIÇA E RELATOR
Apelação Cível n° 0000434-11.2015.8.26.0439
Apelante: Claudinei de Nicolai
Apelado: Oficial do Cartório de Registro de Imóveis de Pereira Barreto
VOTO N° 29.032
Registro de imóveis – Carta de adjudicação tirada de inventário – Limites da qualificação do oficial registrador – Ausência de ferimento de qualquer princípio registral – Recurso provido.
Trata-se de recurso de apelação interposto contra sentença de procedência de dúvida, suscitada pelo Oficial do Cartório de Registro de Imóveis de Pereira Barreto, que se negou a registrar carta de adjudicação, por meio da qual, em processo de inventário, se adjudicou imóvel ao recorrente.
O recorrente alega que, no ano de 1995, adquiriu o imóvel da matrícula 1.153, de Iraci da Silva Amaral. Porém, o bem estava em nome de seu marido, falecido no ano de 1994. Após escritura pública de inventário, o imóvel foi adjudicado para Iraci, que, então, passou a ter possibilidade de transmiti-lo ao recorrente.
No entanto, Iraci também faleceu no ano de 2008, antes da lavratura de escritura pública de venda e compra.
O recorrente, então, providenciou a abertura de seu inventário, com o intuito de ver adjudicado o imóvel que havia adquirido. Conforme a sentença de fl. 57, obteve a adjudicação, levando a carta, em seguida, para registro.
A recusa deveu-se ao fato de que não constaram do titulo esboço de partilha e cessão de direitos hereditários. É que havia a menção, no inventário, da existência de companheiro da falecida, que, à falta de outros herdeiros, receberia o bem por sucessão. Por consequência, segundo o Oficial, a adjudicação não poderia prescindir de cessão dos direitos hereditários do companheiro ao recorrente.
O recorrente alega que o Registrador ultrapassou os limites da qualificação registrária, adentrando no mérito da decisão do inventário.
A Procuradoria de Justiça manifestou-se pelo desprovimento do recurso.
É o relatório.
O recurso comporta provimento.
Não obstante os títulos judiciais também possam ser objeto de qualificação, inclusive, negativa, o Oficial não pode ultrapassar a análise dos elementos extrínsecos a eles.
Aqui, embora se louve o zelo do Oficial, ele ultrapassou os limites da qualificação, na medida em que adentrou em seara jurisdicional. Vejamos.
As peças da carta de adjudicação deixam entrever que, no curso do inventário de Iraci da Silva Amaral, sobreveio a notícia de apenas um herdeiro, em tese: seu companheiro. Não há notícia de outros herdeiros, tanto que o próprio recorrente teve que abrir o inventário.
Ao que parece, é praxe do Juízo da 2ª Vara de Pereira Barreto abrir vista ao Oficial do Registro de Imóveis, no curso dos processos de inventário, justamente para evitar futuros problemas registrários. Foi o que fez à fl. 54. E o Oficial, na manifestação de fls. 55/56, já observava que o eventual único herdeiro de Iraci era Luiz Carlos Martins, seu companheiro, que, intimado, concordou com a adjudicação do imóvel.
Na mesma manifestação, o Oficial ainda fez constar a inexistência de prova de união estável e observou que, caso se considerasse a sua existência, haveria a necessidade de cessão dos direitos hereditários (fl. 55v°).
Na sequência do título levado a registro, está a sentença de fl. 57, pela qual se homologa a adjudicação do imóvel ao recorrente.
Ora, se a adjudicação foi homologada, por sentença, transitada em julgado (caso contrário não se expediria a carta), subentende-se que o Juízo analisou a questão sobre a existência de outros herdeiros e, inclusive, a inexistência de pretenso direito do companheiro.
Aliás, de acordo com a manifestação do próprio Oficial, o pretenso companheiro concordou com a adjudicação, o que, para todos os fins, caso se considerasse a união estável realmente existente, poderia ser equiparado à cessão de direitos hereditários, por termo, nos autos.
Seja como for, se o Juiz do inventário, no exercício de função jurisdicional, entendeu suficientes os elementos dos autos para a adjudicação – notadamente à falta de herdeiros –, não pode o Oficial acrescer novos requisitos.
Essa foi a posição externada por esse Conselho Superior da Magistratura, por exemplo, na apelação n° 0006128-03.2012.8.26.0362 (Rel. Des. Hamilton Elliot Akel):
“Louvável embora o zelo do registrador, verifica-se que, no caso, desbordou ele de seu poder-dever de qualificação, na medida em que, na esfera administrativa, tentou reabrir discussão acerca do que já fora objeto de decisão judicial transitada em julgado.
Com efeito, se o Juízo da Família e das Sucessões adjudicou ao herdeiro Robson a totalidade dos bens, dentre eles, os dois imóveis objeto deste procedimento de dúvida, e se posteriormente, homologou a sobrepartilha, em conformidade com os termos da petição de fls. 115/119 destes autos, correspondente a de fls. 398/402 dos autos do arrolamento, pela qual o herdeiro Luiz Eduardo foi incluído e os bens adjudicados foram dela excluídos, conforme decisão de fls. 127 destes autos e que transitou em julgado (fls. 128), não cabe ao registrador, sobrepondo-se ao entendimento judicial, recusar o ingresso do título sob o fundamento de que há outro herdeiro a ser incluído na partilha dos bens adjudicados ao outro herdeiro, ou de que eventual renúncia deste deve ser comprovada.
O mínimo que se deve presumir é que, se o juiz assim decidiu, é porque entendeu de forma contrária ao Oficial de Registro, contudo, esta questão é de natureza jurisdicional e alheia ao exame formal que deve nortear a qualificação do título.
Assim, cabia ao registrador realizar o exame extrínseco do título e confrontá-lo aos princípios registrais e verificar se algum deles foi rompido. Ao questionar o fato de existir herdeiro não incluído na partilha de bens considerando a universalidade, ingressou no mérito e no acerto da sentença proferida no âmbito jurisdicional, o que se situa fora do alcance da qualificação registral por se tratar de elemento intrínseco do título. Assim não fosse, estar-se-ia permitindo que a via administrativa reformasse o mérito da jurisdicional.
Afrânio de Carvalho ensina:
“Assim como a inscrição pode ter por base atos negociais e atos judiciais, o exame da legalidade aplica-se a uns e a outros. Está visto, porém, que, quando tiver por objeto atos judiciais, será muito mais limitado, cingindo-se à conexão dos respectivos dados com o registro e à formalização instrumental. Não compete ao registrador averiguar senão esses aspectos externos dos atos judiciais, sem entrar no mérito do assunto neles envolvido, pois, do contrário, sobreporia a sua autoridade à do Juiz” (Registro de Imóveis, Forense, 3ª ed., pág. 300).
No mesmo sentido, decisão da 1ª Vara de Registros Públicos, de lavra do MM. Juiz Narciso Orlandi Neto, quando se anotou:
“Não compete ao Oficial discutir as questões decididas no processo de inventário, incluindo a obediência ou não às disposições do Código Civil, relativas à ordem da vocação hereditária (art. 1.603). No processo de dúvida, de natureza administrativa, tais questões também não podem ser discutidas. Apresentado o título, incumbe ao Oficial verificar a satisfação dos requisitos do registro, examinando os aspectos extrínsecos do título e a observância das regras existentes na Lei de Registros Públicos. Para usar as palavras do eminente Desembargador Adriano Marrey, ao relatar a Apelação Cível 87-0, de São Bernardo do Campo, “Não cabe ao Serventuário questionar ponto decidido pelo Juiz, mas lhe compete o exame do título à luz dos princípios normativos do Registro de Imóveis, um dos quais o da continuidade mencionada no art. 195 da Lei de Registros Públicos. Assim, não cabe ao Oficial exigir que este ou aquele seja excluído da partilha, assim como não pode exigir que outro seja nela incluído. Tais questões, presume-se, foram já examinadas no processo judicial de inventário.” (Processo n° 973/81)
Precedente antigo deste Conselho Superior da Magistratura já apontava neste sentido:
“O estado de indivisão aberto com a morte de um dos cônjuges somente será solucionado com a decisão do juízo competente relativa à partilha, na qual se possa verificar quais os bens que a integraram e quais aqueles dela excluídos, questões de ordem fática e jurídica que somente podem ser resolvidas na via judicial, vedada qualquer análise probatória no campo administrativo. Essa decisão deverá, por fim, ingressar regularmente no fólio real, para que então sejam disponibilizados os imóveis, cabendo ao registrador apenas a regular qualificação do título para verificação do atendimento aos princípios registrários, sob o estrito ângulo da regularidade formal. Isso significa, em face da inviabilidade de que se venha a questionar, na via administrativa, matéria que envolve questão de mérito da decisão judicial precedente, que nos casos em que o bem objeto do ato de registro tenha sido excluído da partilha ou partilhado como próprio do autor da herança, deverá o registrador, quanto a este aspecto, apenas verificar se houve expressa referência ao imóvel e se no processo judicial houve a ciência ou participação do outro cônjuge ou de seus herdeiros, eventuais interessados no reconhecimento da comunhão de aquestos.” (Ap. Civ. n° 51.124.0/4-00, rel. Des. Nigro Conceição, j. 29.11.99)
Mais recentemente, em julgamento do qual participei, este Conselho, sob a relatoria do ilustre Desembargador que me antecedeu na Corregedoria, ratificou a impossibilidade de o registrador examinar o mérito da decisão judicial:
“No caso em exame, o Oficial recusou o ingresso do formal de partilha, pois da análise do formal de partilha percebe-se que quando do óbito de Basílio Ferreira o interessado Basílio Ferreira Filho era casado pelo regime da comunhão universal de bens com Eliane Fernandes Ferreira. Por outro lado, quando do óbito de Antonia Madureira Ferreira, Basilio Ferreira Filho já era separado judicialmente. Portanto, o auto de partilha deve refletir as consequências patrimoniais decorrentes da Saisini relativamente ao estado civil do herdeiro (fls. 09).
A qualificação do Oficial de Registro de Imóveis, ao questionar o título judicial, ingressou no mérito e no acerto da r. sentença proferida no âmbito jurisdicional, o que se situa fora do alcance da qualificação registral por se tratar de elemento intrínseco do título. Assim não fosse, estar-se-ia permitindo que a via administrativa reformasse o mérito da jurisdicional.” (Ap. Cível nº 0001717-77.2013.8.26.0071 Rel. José Renato Nalini).
Neste mesmo sentido foi decidido na Apelação Cível n° 1025290-06.2014.8.26.0100 (Rel. Des. Hamilton Elliot Akel).
Em caso de eventual desacerto da r. sentença proferida no âmbito jurisdicional, poderá o interessado valer-se dos recursos e ações previstos no ordenamento jurídico, inclusive, neste sentido se manifestou neste procedimento (fls. 137/138). O que não se permite é que a qualificação registrária reveja o mérito da sentença judicial que já transitou em julgado.”
Por fim, é de se ressaltar que nenhum princípio de direito registrário está sendo ferido. Quando da aquisição, o imóvel estava em nome do falecido cônjuge de Iraci da Silva Amaral. Conforme escritura pública de inventário e adjudicação, o imóvel foi adjudicado para ela. Com o seu falecimento, sem herdeiros comprovados, o bem foi adjudicado, no curso do inventário, para o recorrente, diante da comprovação da aquisição que havia sido levada a cabo por meio do contrato particular de fl. 22.
Respeita-se, dessa maneira, o princípio da continuidade, não se vislumbrando óbice ao registro.
Nesses termos, pelo meu voto, dou provimento ao recurso.
JOSÉ CARLOS GONÇALVES XAVIER DE AQUINO
CORREGEDOR GERAL DA JUSTIÇA E RELATOR
(DJe de 26.01.2016 – SP)