TJ|SC: Ação de Dissolução de União Estável – Partilha de Bens – Contrato de convivência intercorrente firmado quase 3 (três) anos após o início da união – Previsão contratual de retroatividade do regime de separação absoluta de bens – Efeito ex tunc das disposições patrimoniais – Possibilidade.

Apelação Cível n. 2015.026497-8, da Capital – Norte da Ilha

Relatora: Desa. Maria do Rocio Luz Santa Ritta

AÇÃO DE DISSOLUÇÃO DE UNIÃO ESTÁVEL. PARTILHA DE BENS. CONTRATO DE CONVIVÊNCIA INTERCORRENTE FIRMADO QUASE 3 (TRÊS) ANOS APÓS O INÍCIO DA UNIÃO. PREVISÃO CONTRATUAL DE RETROATIVIDADE DO REGIME DE SEPARAÇÃO ABSOLUTA DE BENS. EFEITO EX TUNC DAS DISPOSIÇÕES PATRIMONIAIS. POSSIBILIDADE.

O contrato de convivência pode ser celebrado antes e durante a união estável. Iniciada essa sem convenção do regime patrimonial, o regime de bens incidente, de forma imediata, é o da comunhão parcial (art. 1.725, CC). Realizado pacto intercorrente, esse tem a capacidade de produzir efeitos de ordem patrimonial tanto a partir da sua celebração quanto em relação a momento pretérito à sua assinatura, dependendo de exame o caso concreto.

A cláusula que prevê a retroatividade dos efeitos patrimoniais do pacto só deve ser declarada nula quando houver elemento incontestável que demonstre vício de consentimento, quando viole disposição expressa e absoluta de lei ou quando esteja em desconformidade com os princípios e preceitos básicos do direito, gerando enriquecimento sem causa, ensejando fraude contra credores ou trazendo prejuízo diverso a terceiros e outras irregularidades.

Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Cível n. 2015.026497-8, da comarca da Capital – Norte da Ilha (Vara da Família e Órfãos de Santo Antônio de Lisboa), em que é apelante J. V. T., e apelado G. J. L. da S.:

A Terceira Câmara de Direito Civil decidiu, por unanimidade, negar provimento ao recurso, mantendo-se incólume a sentença. Custas legais.

O julgamento, realizado nesta data, foi presidido pelo Exmo. Sr. Des. Fernando Carioni, com voto, e dele participou o Exmo. Sr. Des. Marcus Tulio Sartorato.

Florianópolis, 18 de agosto de 2015.

Maria do Rocio Luz Santa Ritta

Relatora

RELATÓRIO

Trata-se de apelação cível interposta por J. V. T. contra a sentença proferida pela MMa. Juíza de Direito da Vara da Família e Órfãos de Santo Antônio de Lisboa da comarca da Capital que, nos autos da Ação de Dissolução de União Estável que moveu em desfavor de G. J. L. e S., julgou parcialmente procedente o pedido inicial, declarando dissolvida a união estável entre os litigantes e admitindo a retroatividade dos efeitos do regime de separação absoluta de bens adotado no contrato de convivência intercorrente firmado; assim partilhando, na proporção de 50% para cada companheiro, os bens, dívidas e lucros contraídos no período de setembro de 2008 a agosto de 2009 com relação à Animal Care Veterinária; condenando o requerido a restituir à requerente os valores comprovadamente gastos com os reparos da Animal Care Veterinária, bem como ressarci-la quanto a eventuais materiais levados clandestinamente por ele, admitindo-se a compensação durante o cumprimento de sentença; rejeitando o pedido de danos morais e lucros cessantes; e, por fim, condenando as partes à sucumbência recíproca igualitária, estabelecendo os honorários advocatícios em R$ 2.500,00, deferida a justiça gratuita à autora (fls. 352-359).

Sustentando a irretroatividade do regime de separação total de bens estabelecido no contrato de convivência firmado entre as partes, a recorrente requer a incidência da comunhão parcial durante o período anterior à assinatura do pacto. Forte nesses argumentos, ainda pleiteia a partilha da edificação realizada no imóvel particular do recorrido, negada na decisão, e a condenação desse ao pagamento de lucros cessantes e danos morais, bem como alteração do ônus sucumbencial e concessão da justiça gratuita (fls. 2-16).

Contrarrazões pela manutenção integral da sentença às fls. 382-418)

A douta Procuradoria-Geral de Justiça, na pessoa do Exmo. Sr. Dr. Durval da Silva Amorim, considerando o cunho estritamente patrimonial da demanda, concluiu pela desnecessidade de intervenção do parquet (fls. 7-9), vindo os autos conclusos para julgamento.

VOTO

Cuida-se de ação de dissolução de união estável onde se discute a partilha de bens adquiridos durante a convivência, além de danos materiais e morais.

A sentença assim decidiu sobre a lide:

ISTO POSTO, JULGO PARCIALMENTE PROCEDENTE o pedido formulado na inicial, com resolução do mérito, na forma do art. 269, I do CPC, para reconhecer a união estável entre J. V. T. e G. J. L. E S. no período de 26 de junho de 205 até agosto de 209, declarando dissolvida a referida união a partir desta última data.

Os bens adquiridos, as dívidas e lucros contraídos no período compreendido entre setembro de 208 até agosto de 209 com relação à Animal Care Veterinária deverão ser partilhados na proporção de 50% (cinquenta por cento) para cada companheiro em liquidação de sentença.

Condeno o requerido a restituir à requerente os valores comprovadamente gastos com o reparo da Animal Care Veterinária, bem como ao ressarcimento de eventuais materiais atestadamente levados clandestinamente por ele, admitindo-se a compensação durante o cumprimento de sentença.

Rejeito os pedidos de danos morais e lucros cessantes.

Considerando a sucumbência recíproca, as partes arcarão, em igual proporção, com o pagamento das custas processuais, ficando suspensa a exigibilidade da requerente em razão da gratuidade da justiça. Os honorários advocatícios são estipulados em R$2.500,0 (dois mil e quinhentos reais), os quais poderão ser compensados, na forma do art. 21 do CPC e da Súmula 306 do STJ. (fls. 358/359).

Irresignada, por meio do presente recurso, insurgiu-se a requerente contra os efeitos pretéritos do regime de separação total de bens adotado no contrato de convivência firmado entre partes. Defende sua aplicação somente no período de união ulterior à assinatura do pacto, outorgando incidência necessária do regime de comunhão parcial ao período anterior ao ato contratual.

Sedimentada nesses argumentos, reivindica a partilha da construção edificada no terreno particular do requerido, mais a condenação do ex-companheiro ao pagamento de lucros cessantes e danos morais. Por fim, requer a modificação do ônus sucumbencial e a concessão da justiça gratuita.

Ab initio, fica registrada a extensão natural da benesse da gratuidade da justiça a este grau de jurisdição, como corolário lógico da concessão em primeiro grau e resultado dos documentos juntados (fl. 7).

Quanto ao cerne da lide, esse diz respeito aos efeitos atribuíveis ao regime de separação absoluta de bens adotado no contrato de convivência firmado entre as partes (fl. 9) – se incidente durante o período de união estável anterior à assinatura do pacto ou se aplicável somente a partir de tal subscrição.

Em intróito, observa-se que a Constituição Federal de 1988, ao garantir especial proteção à família, acabou por elevar a união estável à categoria de entidade familiar, sendo o Código Civil responsável por trazer elementos de ordem objetiva para sua caracterização.

Por se distinguir como uma relação de fato informal, não exige solenidade ou celebração para que possa produzir efeitos legais, diferente do casamento, bastando que se constitua uma convivência pública, duradoura e com o objetivo de constituir família, delimitando-se o período de sua existência dentro desses requisitos.

Há ainda, na união estável, a possibilidade dos conviventes regulamentarem os efeitos patrimoniais e inclusive pessoais da relação, quedando-se tal regimento por meio de um contrato escrito, denominado em doutrina e jurisprudência de contrato de convivência (art. 1.725, CC).

No presente caso, os marcos do início e do término da união estável estão bem delimitados nos autos, com as partes inclusive não divergindo em sua substância.

Quanto ao princípio da união, toma-se como incontroverso o dia 26 de junho de 2005, data consensualmente adotada pelas partes (fl. 9).

Já o término da relação vem evidenciado no Boletim de Ocorrência juntado às fls. 217/218, que indica a derradeira discussão do casal no dia 30 de agosto de 2009 e a separação de fato no dia seguinte (31.8.2009), com os consequentes desdobramentos – a exemplo da separação de corpos de fl. 127 e da medida protetiva contra o recorrido efetivada nos autos n. 023.09.06362-1 (fls. 25-28).

Ocorre que, no dia 8 de abril de 2008, passados quase três anos desde o início da união, os companheiros resolveram registrar publicamente o relacionamento, celebrando o contrato de convivência juntado à fl. 9 dos autos e estabelecendo como regime de bens o da separação total. Na mesma data, também firmaram instrumento de Habilitação para o Casamento, elegendo o mesmo regime de bens tomado no pacto de convivência.

A especial controvérsia reside, porém, na conjunção do disposto nas Cláusulas Primeira, Terceira e Sexta do referido Contrato de Convivência, nas quais se consignou o novo regime de bens aplicável à relação, bem como, em especial, o termo inicial do regime adotado.

Prevê a Cláusula Terceira:

Que no tempo de duração deste contrato o regime adotado é o da separação absoluta de bens, ou seja, todos e quaisquer bens móveis ou imóveis, direitos e rendimentos, adquiridos por qualquer dos CONVIVENTES antes ou durante a vigência do presente contrato pertencerão a quem os adquiriu, não se comunicando com os bens da outra parte; os bens aquestos não se comunicarão. (fl. 9).

Estabelecido entre o casal o regime da separação absoluta, fez-se constar na Cláusula Sexta que o termo inicial do contrato e, consequentemente, do sobredito regime de bens começaria a ser contado “a partir do momento em que OS CONVIVENTES iniciaram a viver sobre o mesmo teto (Cláusula Primeira – [26.6.2005])”.

Ou seja, pela manifestação de vontade de ambas as partes cravada no dia 8.4.2008, a priori, o regime de separação absoluta de bens geraria evidente efeito ex tunc, retroagindo desde o início da união, dia 26 de junho de 2005, e não incidindo apenas a partir da assinatura do pacto.

Pois bem.

Segundo Cahali (apud DIAS, 2013, p. 192), o contrato de convivência se constitui numa avença escrita que possibilita aos sujeitos de uma união estável promover regulamentações quanto aos reflexos da relação, a qualquer tempo. Trata-se de pacto informal, podendo constar tanto em escrito particular quanto em escritura pública. E, desde que haja a manifestação bilateral da vontade dos companheiros, pode até conter disposições ou estipulações esparsas, instrumentalizadas em conjunto ou separadamente em negócios jurídicos diversos.

Quando se fala, porém, dos efeitos atribuíveis ao contrato de convivência intercorrente – ou seja, aquele firmado já durante o desenrolar da união estável –, especificamente no que se refere às deliberações patrimoniais, revolve-se temática controversa na doutrina e na própria jurisprudência.

A corrente majoritária da doutrina se manifesta no sentido de que os efeitos das deliberações do pacto refletiriam somente a partir da sua assinatura, para o futuro. A minoritária, por sua vez, defende que, em caso de manifestação bilateral da vontade das partes neste sentido, poder-se-ia aplicar efeito retroativo ao acordado.

Em espécie, nota-se que a cautela para se emprestar efeitos retroativos ao contrato de convivência intercorrente (quando por óbvio pactuado nessa razão) decorre da eventualidade de ilicitudes e injustiças, incluindo-se aí o enriquecimento sem causa, confusões sucessórias, fraude contra credores e lesão a interesses diversos de terceiros.

No entanto, tais questões devem ser analisadas com parcimônia e confrontadas de forma acurada com o caso concreto, pois não absolutas. Até mesmo porque, verificando o magistrado a ausência de tais óbices e ilicitudes no enfrentamento da lide, bem como também inocorrendo vícios de consentimento, deve-se homenagear a livre manifestação de vontade das partes, princípio basilar do ramo civil e do próprio contratualismo.

Na hipótese, em linguagem direta, invoca-se conceito básico do negócio jurídico, que, de acordo com a corrente voluntarista adotada pelo direito brasileiro, manifesta-se na declaração de vontade emitida em obediência aos seus pressupostos de existência, validade e eficácia, a fim de produzir efeitos permitidos pelo ordenamento jurídico e intentados pelo agente (arts. 104 e 112 do CC).

Tratando-se, pois, de agentes capazes, legitimados, na mais lídima e consciente vontade; dispondo sobre objeto idôneo, lícito, possível, determinado ou determinável; agindo dentro de forma prescrita ou não defesa em lei; bem como inexistindo prova de vício de consentimento, de dissimulação ilícita ou de malferimento a interesse de terceiros, caminha-se no sentido da legalidade do negócio jurídico, podendo esse produzir efeitos práticos e válidos.

Firmadas tais convicções preliminares, importante é o escólio de Maria Berenice Dias, que, abraçada às lições de José Francisco Cahali, patrocina a retroatividade dos efeitos do contrato de convivência. Leciona:

Na união estável, é a convivência que impõe o regime condominial, em face da presunção de esforço comum à sua constituição. […] No entanto, há a possibilidade de os conviventes, a qualquer tempo (antes, durante, ou mesmo depois de solvida a união), regularem da forma que lhes aprouver as questões patrimoniais, agregando, inclusive, efeito retroativo às deliberações.

A singeleza com que a lei se refere à possibilidade de os conviventes disciplinarem o regime de bens denota a ampla liberdade que têm os companheiros de estipularem tudo o que quiserem.

[…]

A liberdade dos conviventes é plena, e somente em raras hipóteses merece ser tolhida. (Manual de direito das famílias. São Paulo: RT, 2013, p. 191/192).

A reboque do abalizado posicionamento, a jurista impõe óbices à referida liberdade de pactuação. No entanto, bom salientar que tais óbices se restringem àqueles casos em que as convenções dos companheiros contrariem expressa e absoluta disposição legal ou ajam em desconformidade com o direito e seus princípios, violando interesses de terceiros, envidando enriquecimento sem causa etc.

De resto, pela ampla liberdade constante dentro do ordenamento jurídico, a consagrada doutrinadora sanciona a faculdade de as partes livremente disporem sobre as questões patrimoniais ínsitas à comunhão.

Tal liberdade contratual encontra berço no princípio gênero da Autonomia da Vontade, que, ungida no art. 421 do Código Civil, vincula-se ao poder dos contratantes de determinar e reger seus interesses, mediante acordo de vontades e em respeito ao ordenamento legal.

Essa premissa fundamental deve ser interpretada não só pela sua própria substância, mas também em face da cláusula geral da função social do contrato, que condiciona os contratos tanto aos primados do direito privado como também aos seus reflexos em terceiros e na sociedade em geral.

No contrato de convivência objeto da lide, em que não há indícios de lesão a direito de terceiros, tampouco demonstração de vício de consentimento na sua celebração, é de se homenagear a autonomia da vontade.

A alegação da recorrente de que teria sido coagida a assinar o contrato para continuar o relacionamento com o requerido não subsiste, restando imperceptível qualquer turbação no elemento volitivo dos agentes.

No depoimento de fls. 293/294, livre para responder, a recorrente afirma que a assinatura do contrato de convivência teria como fim facilitar a aquisição do seu visto de entrada no Canadá, já que não possuía renda suficiente àquela época, e o recorrido sim. Esse corrobora tal versão (fl. 295).

Só então perguntada se teria sido coagida a assinar o contrato, respondeu: “dá para dizer que sim”, “[G. J. L. da S.] impôs que, para a gente abrir a clínica de Jurerê, a gente deveria assinar o contrato de união estável” (fl. 293).

Em contrapartida, no mesmo depoimento, a recorrente reconhece que leu o contrato assinado perante o cartório e que tinha interesse no contrato de convivência.

Ora, a coação possui argumento fraco e não comprovado – tanto que, por sua absoluta inconsistência, em meio a 15 (quinze) laudas de recurso, valeu-se de meras 3 (três) linhas para o ventilado. Ademais, pode-se inferir evidente insegurança e incoerência no depoimento da recorrente, num momento dando uma razão para a assinatura do pacto, noutra hora outra.

Os elementos dos autos, aliás, conduzem à interpretação de que, vendo-se os companheiros – sujeitos esclarecidos, de boa escolaridade, ambos veterinários – em meio a uma união tendente a se solidificar e prestes a constituir esforços e objetivos econômicos comuns, resolveram, por livre e lúcida vontade, determinar os efeitos patrimoniais da sua convivência. Nada mais legítimo e justo que isso.

Em derradeiro:

Ainda que a autora alegue que o contrato de união estável foi firmado com vício de consentimento, tal fato deve ser objeto de ação própria e, até que seja desconstituído o aludido documento, há que reconhecer-se sua validade. (TJSC, AI n. 2015.005892-8, de São José, Rel. Des. Gilberto Gomes de Oliveira, j. 23.7.2015).

Destarte, não há por que o Estado-Juiz interferir na esfera privada dos contratantes quando ausente nulidade que justifique a sua intervenção. Não cabe ao Poder Judiciário, por absoluto império, preciosismo e presunção, modificar a ação volitiva das partes manifestada até então de forma lídima e livre.

O Contrato de Convivência sob comento é ato jurídico perfeito, hígidas as suas cláusulas, considerando-se presentes todos os requisitos para a celebração desse negócio jurídico contratual.

A propósito, a solidificar o que se fundamenta, importante mencionar precedente jurisprudencial. Nesse sentido, cita-se julgado da Corte de Justiça do Rio Grande do Sul, que já decidiu na mesma linha do arrazoado alhures.

Nesse acórdão, muito embora eivado em pacto antenupcial, o sobredito Tribunal reconheceu como possível a retroatividade dos efeitos de disposição patrimonial em relação a período da união estável em que ausente pactuação do regime de bens. É da didática ementa:

APELAÇÃO CÍVEL. DECLARATÓRIA DE UNIÃO ESTÁVEL. PARTILHA. PACTO DE SEPARAÇÃO TOTAL DE BENS. A existência da união estável, bem como seu período de duração, é questão não controvertida pelas partes. O conflito diz apenas com a partilha dos bens adquiridos na vigência da relação e que estão em nome da mulher. Ocorre que, depois de vários anos de convivência em união estável, os companheiros decidiram celebrar casamento e firmaram pacto antenupcial no qual ajustaram a separação total tanto dos bens que cada um já possuía como dos que viessem a adquirir na constância do matrimônio. Esta cláusula alcançou também os bens adquiridos durante o período de união estável do casal, tendo em vista que firmaram o ajuste quando já era vigorante a Lei 9.278/96, que permitia, mediante contrato escrito entre os companheiros, afastar a comunicação dos bens adquiridos durante o convívio. Há que esclarecer a aparente contradição deste posicionamento com aquele que, há cinco anos passados, foi esposado quando do julgamento da AC 599393766 (acórdão reproduzido nas fls. 450/464), o qual, inclusive, foi invocado como paradigma pela parte aqui autora. Não obstante a aparente semelhança das hipóteses, trata-se, em verdade, de situações fáticas – e, conseqüentemente, jurídicas – diversas. Naquele precedente, tratava-se de casamento realizado no ano de 1986. Logo, o período anterior de relacionamento regia-se pelos princípios aplicáveis à sociedade de fato (Súmula 380/STF), pois apenas com a Constituição Federal de 1988 é que se veio a introduzir em nosso meio o conceito de união estável como entidade familiar. E foi somente a Lei 9.278/96 – que, admitindo a presunção de que os bens adquiridos durante o período de duração da união estável fossem comuns –, passou a aceitar que essa comunicação fosse afastada pela confecção de um contrato escrito em sentido contrário, hipótese antes inexistente.  Ora, no caso em exame, o casamento veio a ser realizado em 24 de maio de 1997, quando já em vigor esse diploma legal.  Por isso, viável aos companheiros a pactuação relativa aos bens adquiridos durante a união estável, afastando sua comunicação, o que poderia ser feito a qualquer momento, inclusive no pacto antenupcial precedente ao casamento.(TJRS, AC n. 70007651292, de Porto Alegre, Rel. Des. Luiz Felipe Brasil Santos, 6ª Câmara Cível, j. 30.6.2004)

Com tais digressões, julgando-se como válidas todas as cláusulas constantes no instrumento de fl. 9, notadamente pela livre e desembaraçada manifestação de vontade das partes naquele pacto de convivência – inexistente qualquer vício ou lesão a direito –, estende-se o regime de separação absoluta de bens ao período integral da união do casal, desde 26.6.2005 até 31.8.2009.

É pelo que deve se pautar a seguinte partilha de bens:

a)  Clínica Veterinária e Pet Shop Lamego (situada na Av. Luiz Boiteux Piazza, nº 2120, Cachoeira do Bom Jesus, Florianópolis).

A espelho do que pedido na inicial, o que a recorrente pleiteia aqui é a meação das benfeitorias realizadas sobre o terreno particular do recorrido, por reputar incidente o regime da comunhão parcial em relação ao bem.

No entanto, adianta-se, razão não a assiste.

Isso porque, não bastasse o regime da separação absoluta de bens se reportar à integralidade do período da união estável, a sociedade profissional (informal) do casal estabelecida durante a convivência não se estendeu ao bem em comento, firmando-se a propriedade exclusiva em favor do recorrido.

Nesse prisma, a fim de afastar de plano a irresignação recursal, valho-me da acurada fundamentação da decisão singular:

Antes da existência desta clínica, existia outra de mesmo nome, no mesmo bairro, mas em endereço diferente, sendo aquela exclusiva do requerido, fato incontroverso nos autos.

Com os rendimentos da antiga clínica, o requerido comprou o terreno em que foi edificada a sua residência e, posteriormente, a atual Clínica Lamego.

De fato o requerido logrou comprovar que o imóvel em que está a clínica foi adquirido unilateralmente, antes da união estável (fl. 73), inclusive os materiais para construção também foram financiados antes (73-80).

Assim, da prova carreada aos autos, verifica-se que toda a parte material da construção da clínica localizada na Cachoeira foi custeada pelo requerido. Nesse sentido, inclusive, foi o depoimento da requerente (fls. 293-294):

“[…] que o requerido era proprietário de uma clínica na praia da Cachoeira do Bom Jesus denominada Clínica Lamego; que referida clínica funcionava num imóvel alugado; que a referida clínica pertencia somente ao requerido; que dois anos após o início da união estável as partes construíram uma clínica veterinária sobre o terreno localizado na Cachoeira do Bom Jesus; que a clínica sempre pertenceu ao requerido, mas ‘sempre eu ajudando ele’; que a depoente afirma que auxiliou o requerido com a sua própria mão de obra, ‘colocando piso, pintando paredes e assentando tijolos’ durante a construção da clínica; que eu ajudava a fazer cirurgias; que não tinha carteira assinada […]; que a depoente fazia cirurgias na clínica Lamego e pagava por elas; que também pagava o material usado nos pacientes quando atendidos na Clínica Lamego; que não pagou mão de obra ou materiais de construção, nem possui notas em seu nome, referentes a clínica construída na Cachoeira […]”.

J. confirma que a construção da clínica foi custeada por G., que teria apenas ajudado com a sua mão-de-obra, “colocando pisos e tijolos e pintando paredes”, fato este confirmado pelo requerido “ela ajudou a pintar parede, janelas, enfeitar prateleiras” (fl. 295).

Todavia, tal fato, por si só, não pode levar à conclusão que parte da clínica seja da requerente. Veja-se que na época o casal convivia em harmonia, nada mais normal que em solidariedade ao companheiro, a requerente o ajudasse na construção do empreendimento.

Ademais, nesta época, a requerente possuía outros empregos “prestava serviços em domicílios” e “também trabalhou para duas outras clínicas, consultórios” (fl. 293). Ou seja, observa-se que a requerente laborava na Clínica Lamego quando necessitava de apoio técnico e material para seus clientes e/ou quando o próprio requerido necessitava de ajuda.

Ficou claro que a requerente não trabalhava exclusivamente na clínica e que não participava dos seus lucros, pois se assim fosse, não necessitaria pagar as cirurgias que nela fazia, já que todas as despesas e lucros seriam da sociedade e, consequentemente do casal.

Ademais, dos depoimentos das testemunhas Elisabete, Monique, Sheila, Moema, Ana Augusta e José Carlos é possível verificar que de fato J. não trabalhava nesta clínica, somente G., já que a requerente antes de setembro de 2008 possuía outros empregos e após esta data, dedicava-se à clínica de Jurerê, a ser explanada no próximo tópico.

Portanto, a Clínica Lamego não deverá ser partilhada entre o casal, eis que exclusivamente de propriedade do requerido. (fls. 355/356).

Mantém-se a sentença nessa questão.

b) Animal Care Veterinária (localizada na Av. Dos Búzio, nº 992, Jurerê, Florianópolis).

Caracterizada a sociedade de fato do casal em relação a essa clínica, bem como por não representar objeto da apelação, reafirma-se a decisão de primeiro grau também nesse ponto.

DANOS EMERGENTES

O mesmo vale para os danos emergentes, que foram deferidos na sentença e não figuraram como alvo de impugnação na apelação.

LUCROS CESSANTES

Em relação aos lucros cessantes, sobre o qual pende requerimento da recorrente, não merece procedência o pleito.

Observa-se, a priori, que essa espécie de dano material reclama prova inequívoca e apurada do dano percebido.

Mesmo na hipótese em que reste comprovada a violação de um dever jurídico e que tenha existido culpa ou dolo por parte do infrator, ainda assim não haverá indenização se daquela violação não decorreu prejuízo efetivamente comprovado.

Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho, citando a obra de Agostinho Alvim (1955), gizam que:

Finalmente, e com o intuito de assinalar, com a possível precisão, o significado do termo razoavelmente, empregado no art. 1.059 do Código, diremos que ele não significa que se pagará aquilo que for razoável (ideia quantitativa) e sim que se pagará se se puder, razoavelmente, admitir que houve lucro cessante (ideia que se prende à existência mesma de prejuízo). (Novo curso de direito civil: responsabilidade civil. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 84).

Alega a recorrente que teria ficado sem trabalhar por pouco mais de 1 (um) mês, período que restaria comprovado por Boletim de Ocorrência de fls. 217/218 e pelo Auto de Separação de Corpos e Arrolamento de Bens à fl. 129. Em relação aos valores perdidos, diz terem sido comprovados pela cópia juntada à fl. 200, que traduziriam os ganhos mensais do negócio.

Ora, os documentos trazidos não comprovam sobremaneira o alegado, nem o tempo inativo nem os efetivos ganhos mensais.

Não se pode admitir que uma simples folha de papel com o registro manuscrito de valores e datas, por si só, possa emprestar veracidade inequívoca aos rendimentos mensais da clínica ou da própria autora.

Vários são os óbices em relação ao documento juntado, uma vez que, não bastasse representar uma simples folha de papel produzida e apresentada unilateralmente, não ostenta correspondência ou relação com serviços, lucro bruto, líquido, entre tantas outras variáveis. É ainda despojado de notas, recibos ou outros documentos que sirvam a confrontar os valores lá constantes, grosseiros e imprestáveis.

Do tempo em que teria ficado privada de exercer a profissão também não exsurgem provas concretas. Muito embora faça alusão a B.O. e a Auto de Separação de Corpos, tais documentos não são provas inderrogáveis de que a recorrente não seguiu prestando serviços de outras formas durante o alegado período de um mês de inatividade, a exemplo de atendimento em domicílio, considerando que ela própria admite que as conhecidas clientes não a abandonaram.

Mesmo na hipótese em que pudesse se emprestar certa veracidade ao alegado, o certo é que a condenação em lucros cessantes reclama efetiva prova do prejuízo, de modo a se comprovar o que deixou de lucrar em virtude do dano, o que não ocorreu nesse caso (art. 333, I, CPC).

Dessa forma, não há falar em condenação em lucros cessantes.

DANOS MORAIS

No que toca aos danos morais, a recorrente também requer a reforma da sentença.

No entanto, o decisum deve ser mantido nessa questão.

A recorrente sustenta que o fato de o recorrido ter telefonado para clientes da clínica, bem como ter fixado cartazes em frente à clínica Animal Care teria lhe impingido abalo moral indenizável. Ainda diz que há perseguição pessoal do recorrido em relação a sua pessoa e que não se sente à vontade para frequentar congressos e encontros da sua área profissional em que aquele também se encontra.

Como bem frisado pelo juízo a quo, não há como se atribuir culpa ao recorrido pelo cartaz evidenciado na foto de fl. 12. Isso porque “não se sabe se efetivamente foi ele quem colocou a placa em frente à clínica Jurerê” (fl. 357).

Em relação às ditas ligações, o conteúdo das conversas do recorrido com os clientes dessa clínica, de caráter desabonatório, que eventualmente teriam atingido a esfera psicológica da recorrente, não restaram evidenciados nos autos. O testemunho de Elizabete, a propósito, não é prova bastante nesse sentido, ressaltando-se que, no momento do derradeiro desentendimento entre o casal, a clínica era de ambos, inclusive conforme ficou determinado na sentença, ponto não questionado no recurso.

O fato, outrossim, de a recorrente não frequentar congressos e encontros relacionados à sua atividade profissional é questão de caráter eminentemente pessoal, sobre o qual o recorrido não tem controle algum, não podendo se atribuir a ele tal hesitação da ex-companheira. Até mesmo porque não ficou evidenciado qualquer ato, em relação a seus pares, obstando-lhe nesse sentido.

Ademais, destaca-se que não se torna indenizável o dano moral quando se esgueira pela via do mero aborrecimento. Citando Sérgio Cavalieri Filho, é do escólio de Carlos Roberto Gonçalves:

Para evitar excessos e abusos, recomenda Sérgio Cavalieri, com razão, que só se deve reputar como dano moral “a dor, vexame, sofrimento ou humilhação que, fugindo à normalidade, interfira intensamente no comportamento psicológico do indivíduo, causando-he aflições, angústia e desequilíbrio em seu bem-estar. Mero dissabor, aborrecimento, mágoa, irritação ou sensibilidade exacerbada estão fora da órbita do dano moral, porquanto, além de fazerem parte da normalidade do nosso dia a dia, no trabalho, no trânsito, entre os amigos e até no ambiente familiar, tais situações não são intensas e duradouras, a ponto de romper o equilíbrio psicológico do indivíduo” (Direito civil brasileiro: responsabilidade civil. São Paulo; Saraiva, 2011, p. 378/379).

Vale mencionar ainda que a própria recorrente afirma que a confiança no profissional que cuida de animais de estimação é tão pessoal, e que seu tratamento humano e atencioso com os clientes era tamanho, que as supostas atitudes do recorrido não teriam implicado a sua derrocada e abalo profissional e de credibilidade.

Cita-se, nesse aspecto, precedente deste Tribunal:

“Conquanto existam pessoas cuja suscetibilidade aflore na epiderme, não se pode considerar que qualquer mal-estar seja apto para afetar o âmago, causando dor espiritual. Quando alguém diz ter sofrido prejuízo espiritual, mas este é conseqüência de uma sensibilidade extrema, não existe reparação. Para que exista dano moral é necessário que a ofensa tenha alguma grandeza e esteja revestida de certa importância e gravidade.[…] O mero incômodo, o desconforto, o enfado decorrente de alguma circunstância, como exemplificados aqui, e que o homem médio tem de suportar em razão mesmo de viver em sociedade, não servem de base para que sejam concedidas indenizações”. (SANTOS, Antonio Jeová. Dano Moral Indenizável, 2ª ed. São Paulo: Lejus, p. 117 e 118) (TJSC, AC n. 2014.037771-5, de São Miguel do Oeste, Rel. Des. Sérgio Roberto Baasch Luz, j. 2.12.2014).

Assim, indevida é a condenação em danos morais, mantendo-se também intocável a decisão recorrida nesse particular.

Por todo o exposto, nega-se provimento ao recurso, mantendo-se incólume a sentença.