CSM|SP: Registro de Imóveis – Dúvida Inversa – Admissibilidade – Título judicial – Qualificação – Admissibilidade – Ausência de manifestação do Oficial após a suscitação da dúvida inversa e de manifestação do Ministério Público antes da prolação da sentença – Irregularidades não contaminadoras da validade do procedimento administrativo – Demarcação de fração ideal de bem imóvel – Abertura de matrícula vedada – Indispensabilidade da prévia extinção do estado de condomínio de direito – Lançamento fiscal – Irrelevância – Dúvida julgada procedente – Recurso desprovido.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos de APELAÇÃO n° 0073902-47.2010.8.26.0224, da Comarca de GUARULHOS, em que é apelante MARIA CRISTINA BASANO e OUTROS e apelado o 2º OFICIAL DE REGISTRO DE IMÓVEIS, TÍTULOS E DOCUMENTOS E CIVIL DE PESSOA JURÍDICA DA COMARCA DE GUARULHOS.

ACORDAM, em Conselho Superior de Magistratura do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão: “NEGARAM PROVIMENTO AO RECURSO, V.U.”, de conformidade com o voto do(a) Relator(a), que integra este acórdão.

O julgamento teve a participação dos Desembargadores IVAN RICARDO GARISIO SARTORI, Presidente do Tribunal de Justiça, JOSÉ GASPAR GONZAGA FRANCESCHINI, Vice-Presidente do Tribunal de Justiça, FRANCISCO ROBERTO ALVES BEVILACQUA, Decano, SAMUEL ALVES DE MELO JÚNIOR, ANTONIO JOSÉ SILVEIRA PAULILO e ANTONIO CARLOS TRISTÃO RIBEIRO, respectivamente, Presidentes das Seções de Direito Público, Privado e Criminal do Tribunal de Justiça.

São Paulo, 28 de fevereiro de 2013.

JOSÉ RENATO NALINI

Corregedor Geral da Justiça e Relator

Apelação Cível n.° 0073902-47.2010.8.26.0224

Apelante: MARIA CRISTINA BASANO e OUTROS

Apelado: 2° OFICIAL DE REGISTRO DE IMÓVEIS E ANEXOS DE GUARULHOS

VOTO N° 21.205

REGISTRO DE IMÓVEIS – Dúvida Inversa – Admissibilidade – Título judicial – Qualificação – Admissibilidade – Ausência de manifestação do Oficial após a suscitação da dúvida inversa e de manifestação do Ministério Público antes da prolação da sentença – Irregularidades não contaminadoras da validade do procedimento administrativo – Demarcação de fração ideal de bem imóvel – Abertura de matrícula vedada – Indispensabilidade da prévia extinção do estado de condomínio de direito – Lançamento fiscal – Irrelevância – Dúvida julgada procedente – Recurso desprovido.

Os interessados, ao suscitarem dúvida inversa e expressarem o seu inconformismo em relação à desqualificação do mandado de averbação de demarcação, argumentaram que o título judicial foi instruído com a sentença e o acórdão proferidos, os laudos periciais apresentados ao longo do processo demarcatório e, assim, com os elementos indispensáveis ao registro pretendido, indevidamente recusado pelo Oficial de Registro, embora inexistentes riscos de invasão de domínio e de prejuízos para terceiros (fls. 02/06 e 134/135).

O Oficial de Registro, ao expor as razões para a desqualificação registral questionada, ponderou: a transcrição n.° 52.425 do 1° Registro de Imóveis da Capital, originária da transcrição n.° 5.606 do 3° Registro de Imóveis da Capital, trata de uma fração ideal; não há dados suficientes sobre os condôminos e eventual extinção do condomínio; enfim, é impossível, com os elementos disponíveis, a abertura de matrícula requerida (fls. 13, 14/15 e 120).

Confirmada a desqualificação registral e rejeitados os embargos de declaração (fls. 143/144, 148/152 e 153), os interessados, com reiteração das alegações anteriores e apontando irregularidades na tramitação da dúvida, interpuseram recurso de apelação visando à reforma da sentença, com determinação para o Oficial registrar o título judicial (fls. 157/164).

Recebido o recurso nos seus regulares efeitos (fls. 167), o representante do Ministério Público em primeira instância opinou pela manutenção da sentença (fls. 169/171) e, ato contínuo, enviados os autos ao Colendo Conselho Superior da Magistratura (fls. 175), a Procuradoria Geral de Justiça propôs o desprovimento do recurso (fls. 177/179), em manifestação sucedida por novo pronunciamento dos interessados (fls. 183/185).

É o relatório.

Os interessados, ao revelarem seu inconformismo em relação à desqualificação do título apresentado para registro, suscitaram dúvida inversa, criação pretoriana admitida por este Conselho Superior da Magistratura [1]: ao invés de requererem a suscitação ao Oficial de Registro, dirigiram sua irresignação diretamente ao MM Juiz Corregedor Permanente (fls. 02/06 e 134/135).

Nada obstante conhecidas as razões determinantes da desqualificação do título judicial (fls. 13, 14/15 e 120), a suscitação da dúvida inversa deveria ter sido informada ao Oficial de Registro, mormente para a prenotação do título e produção dos efeitos que lhe são próprios. De todo modo, in concreto, a omissão não trouxe prejuízo algum aos interessados, porquanto, com efeito, procedente a dúvida.

A ausência de manifestação do Ministério Público antes da prolação da sentença, porque suprida por aquela materializada após a interposição da apelação e, particularmente, pela da Douta Procuradoria Geral da Justiça (fls. 169/171 e 177/179), também não contamina a validade deste procedimento administrativo.

Malgrado a terminologia empregada na sentença, com menção à rejeição liminar da dúvida (fls. 143/144), esta, na realidade, foi julgada procedente, pois confirmada a desqualificação do título judicial e, com isso, prestigiada a recusa manifestada pelo Oficial. [2]

Quanto ao título apresentado para registro, a sua origem judicial não dispensa a qualificação: a prévia conferência destinada ao exame do preenchimento das formalidades legais atreladas ao ato registral é imprescindível, inclusive nos termos do item 106 do Capítulo XX das Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça. [3]

No mais, conforme acima adiantado, a recusa de ingresso do título no álbum imobiliário se mostrou acertada.

Consoante a escritura pública de venda e compra lavrada em 26 de novembro de 1916, Francisca Maria de Jesus, proprietária de terras no sítio Piracaia, em Guarulhos, alienou à Maria Emilia Nunes metade dessas terras, também pertencentes a outras pessoas e que confronta com terras de propriedade da Fazenda do Estado de São Paulo, Brasilino de Freitas, Gabriel Barbosa e outros (fls. 138).

A alienação – como mais evidente fica à vista das transcrições n.° 16.490, de 07 de dezembro de 1921, e n.° 16.675, de 28 de dezembro de 1921, ambas do 3° Registro de Imóveis da Capital -, envolveu uma porção de terra, não especificada, inserida em área maior, com mais de 300 alqueires, também não individualizada, de propriedade de várias pessoas (fls. 137).

A escritura pública acima referida, lavrada no 1° Tabelionato de Notas de Guarulhos, foi objeto da transcrição n.° 5.606, de 01° de dezembro de 1916, do 3° Registro de Imóveis da Capital, onde consta a seguinte descrição do bem imóvel: “uma metade de terras, em comum com outros condôminos, no Sítio denominado “Piracaia”, em Guarulhos, deste Estado, confrontando com terras de propriedade da Fazenda Estadual do Estado de São Paulo, Brasilino de Freitas, Gabriel Barbosa e outros” (fls. 97,101 e 139).

Posteriormente, tal porção de terra – com limites, medidas perimetrais e dimensão indefinidos -, pertencente a Maria Emília Nunes e a outros condôminos, não identificados, foi alienada, por aquela e pelo seu marido Augusto Nunes – por meio de escritura pública lavrada em 25 de setembro de 1975, no 9° Tabelionato de Notas da Capital, objeto da transcrição n.° 52.425, de 31 de dezembro de 1975, do 1° Registro de Imóveis da Capital (fls. 94, 96 e 140) -, a Maria Cremildes Basano e Henrique Basano, já falecidos e de quem os interessados são herdeiros.

Destarte, os interessados são proprietários de uma fração ideal do bem imóvel mencionado na transcrição n.° 52.425, onde precariamente descrito, e que, por conseguinte, também pertence a outras pessoas, sequer, no entanto, identificadas.

Nos autos do processo demarcatório, onde não se pôs fim ao condomínio, definiu-se, isso sim, ao levantar-se a linha divisória entre as porções de terra disputadas pelos litigantes, a parte determinada e certa possuída exclusivamente pelos interessados, correspondente a 45,0368 alqueires paulistas (fls. 09/11). Em outras palavras: com a demarcação parcial, desacompanhada da divisão, a comunhão, o condomínio de direito, persistiu.

A r. sentença proferida nos autos do processo n.° 1.407/1991, da 4ª Vara Cível de Guarulhos – confirmada pelo v. acórdão da 2ª Câmara de Direito Público do Egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo (fls. 61/66), transitado em julgado (fls. 67) -, deixou, aliás, isso bem claro:

Frise-se que o pedido formulado é tão-somente de DEMARCAÇÃO, e a decisão a isto restringir-se-á. Ou seja, não houve cumulação com pedido de DIVISÃO; Possessório ou Petitório, o que não inibe as partes e eventuais interessados, de se valerem das mesmas, no tempo oportuno, mormente pelo fato de que os autores e alguns dos réus têm títulos sobre partes ideais da área; há sobreposição de áreas, conforme constatado pelos Senhores Peritos, além da existência de Loteamento aprovado pelo Município, há muito implantado, (grifei)

E, aqui, oportuna é a lição de Orlando de Gomes:

A simples demarcação consiste apenas na sinalização de limites incontroversos, como acontece quando a linha divisória passa a ser assinalada com marcos. No caso de controvérsia ou confusão, torna-se necessário determinar os limites, o que se faz de conformidade com a posse. Visa, pois, a ação de demarcação fixar ou restabelecer os marcos da linha divisória de dois prédios confinantes. Seu objeto é fixação de rumos novos ou aviventação dos existentes.

A demarcação não se confunde com a divisão. O fim da demarcatória é obrigar o confinante a extremar, com o autor, os respectivos prédios, fixando novos limites e aviventando os apagados. O fim da ação de divisão é obrigar os condôminos a partilhar a coisa comum. Pode ser total ou parcial, conforme se proceda em todo o perímetro do prédio, ou em parte. [4] (grifei)

Em resumo: não há como proceder ao registro pretendido. Enquanto não extinto o condomínio pela divisão, a abertura de matrícula, que não pode ter por objeto fração ideal de imóvel (subitem 46.1. do capítulo XX das Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça) [5], resta desautorizada, ainda mais porque – de acordo com a sentença aludida, que se orientou pelos laudos periciais -, há sobreposição de áreas.

Nessa linha seguiu, de resto, o parecer da Douta Procuradoria Geral da Justiça:

… a recusa ao registro da ordem judicial deu-se porque a transcrição 52.425, do 1° Registro de Imóveis de Guarulhos, tem por objeto uma metade de terras em comum com outros condôminos, no sítio denominado Piracaia, nesta Comarca, confrontando com terras de Propriedade da Fazenda Estadual do Estado de São Paulo, Brazilino de Freitas, Gabriel Barbosa e outros (fls. 140).

A ação de demarcação julgada procedente pode até ter resolvido a questão da parte ideal, pois os limites da gleba foram fixados por laudo do perito agrimensor, complementado por planta e memorial descritivo conforme referido na sentença (fls. 56).

Todavia, o mesmo não se diga quanto aos condôminos não identificados, certamente portadores de títulos sobre partes ideais da área, com risco, inclusive, de sobreposição (fls. 54).

Assim, até que se promova a competente divisão da gleba e extinção do condomínio, por escritura pública ou pela via judicial, obrigando os demais consortes a partilhar a coisa comum (artigo 946, II, CPC), com a expedição da competente carta de sentença, não se mostra viável o acesso do título ao fólio real, ainda que se trate de mandado extraído de ação demarcatória com trânsito em julgado.

Por fim, o lançamento fiscal, noticiado na última manifestação dos interessados (fls. 183/185), é insuficiente para justificar o registro perseguido: o interesse tributário não se confunde com os princípios e as regras registrais orientadoras da efetuação da matrícula (artigos 227 e seguintes da Lei n.° 6.015/1973). E a propósito, a matrícula cuja abertura é pretendida sequer tem respaldo na transcrição n.° 52.425 do 1° Registro de Imóveis da Capital, mas, repita-se, em título judicial que contempla parte ideal do bem imóvel referido naquela, o que não basta.

Pelo todo exposto, porque procedente a dúvida inversa, nego provimento ao recurso.

JOSÉ RENATO NALINI

Corregedor Geral da Justiça e Relator

Notas:

[1] Apelação Cível n.° 23.623-0/1, relator Desembargador Antônio Carlos Alves Braga, julgada em 20.02.1995; Apelação Cível n.° 76.030-0/8, relator Desembargador Luís de Macedo, julgada em 08.03.2001; e Apelação Cível n.° 990.10.261.081-0, relator Desembargador Munhoz Soares, julgada em 14.09.2010.

[2] Apelação Cível n.° 990.10.261.081-0, relator Desembargador Munhoz Soares, julgada em 14.09.2010: “a nomenclatura utilizada pelo art. 203 da Lei de Registros Públicos não faz distinção entre a dúvida comum e a inversa, razão pela qual na verdade a dúvida foi julgada procedente, a despeito do erro material contido na sentença.”

[3] Neste sentido, assinalo: Apelação Cível n.° 39.487-0/1, relator Corregedor Geral da Justiça Márcio Martins Bonilha, julgada em 31.07.1997; e Apelação Cível n.° 404-6/6, relator Corregedor Geral da Justiça José Mário Antonio Cardinale, julgada em 08.09.2005.

[4] Direitos Reais. Atualizada por Humberto Theodoro Júnior. 18ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001. p. 199.

[5] Item 46. A matrícula será aberta com os elementos constantes do título apresentado e do registro anterior. Se este tiver sido efetuado em outra circunscrição, deverá ser apresentada certidão atualizada do respectivo cartório, a qual ficará arquivada, de forma a permitir fácil localização.

Subitem 46.1. Devendo compreender todo o imóvel, é irregular a abertura de matrícula para parte ideal. (D.J.E. de 05.04.2013 – SP)