1ª VRP|SP: Dúvida registral – Usucapião extrajudicial de imóvel urbano (art. 216-A da lei 6.015/73) – Ausência de impugnação específica às exigências da nota devolutiva e não atendimento dos óbices – Dúvida prejudicada – Análise do mérito por economia processual – Existência de herdeiro coproprietário interdito, com necessidade de notificação e tutela de incapaz (provimento CNJ 65/2017) – Inexistência de base legal para intervenção do ministério público em usucapião extrajudicial com interesse de incapaz, à luz da resolução CNMP 301/2024 – Inadequação da via extrajudicial e manutenção do óbice, facultado o ajuizamento de ação judicial de usucapião – Outra solução viável seria a obtenção de autorização do juízo que decretou a interdição, para que o seu curador nomeado ao interditado pudesse consentir com o pedido de usucapião.

Sentença
Processo Digital nº: 1117425-51.2025.8.26.0100
Classe – Assunto Dúvida – Registro de Imóveis
Suscitante: 7º Registro de Imóveis da Capital
Suscitado: Ricardo Pereira Coelho e outro
Juiz(a) de Direito: Dr(a). Rodrigo Jae Hwa An
Vistos.
Trata-se de dúvida suscitada pelo Oficial do 7º Registro de Imóveis da Capital a requerimento de Ricardo Pereira Coelho e Cristina Rodrigues Diniz, que não concordaram com a nota devolutiva referente ao processamento da usucapião extrajudicial do imóvel objeto da transcrição nº 50.753, daquela serventia (prenotação 526.281).
O Oficial esclarece que a parte pretende o reconhecimento da usucapião extrajudicial do imóvel situado à Rua Professor Machado Tolosa, nº. 72, no Belenzinho, originalmente inserido na transcrição nº 50.753, sob a titularidade dominial de Isabel Torres Fortunato e outros; que houve a expedição de cinco notas devolutivas; que dentre outras exigências foi verificado que José Carlos dos Rosário, na qualidade de herdeiro do titular de domínio Vito Onofre Fortunato, teve decretada a sua interdição com trânsito em jugado em 02/02/2023; que não foram informados todos os interessados a serem notificados, conforme lista de nomes indicada na nota; que as certidões dos distribuidores cíveis devem ser expedidas observando alguns requisitos, bem como a inclusão do número do CPF. Aponta a necessidade de atuação do Ministério Público como fiscal da ordem jurídica, devendo a parte suscitada se socorrer das vias ordinárias para o deslinde da pretensão.
O suscitado foi notificado para apresentar sua impugnação (fls. 236), mas quedou-se inerte (fls. 237).
O Ministério Público opinou pela procedência, com a manutenção do óbice, de forma a obstar o prosseguimento na via extrajudicial (fls. 465/466).
É o relatório. Fundamento e decido.
Preliminarmente, verifica-se que a parte interessada apresentou requerimento para suscitação de dúvida sem deduzir as razões de seu inconformismo contra as exigências formuladas pelo Oficial (fls. 09/10), tampouco impugnou a dúvida no prazo referido no item III do artigo 198 da Lei n. 6.015/73 (fls. 461).
Assim, embora a nota devolutiva tenha apontado exigências, não houve impugnação efetiva de qualquer delas nem cumprimento.
A ausência de insurgência contra uma ou mais exigências registrárias ou mesmo a anuência com qualquer delas prejudica a dúvida, que só admite duas soluções: a) a determinação do registro do título protocolado e prenotado, que é analisado, em reexame da qualificação, tal como se encontrava no momento em que surgida dissensão entre o apresentante e o Oficial de Registro de Imóveis; ou b) manutenção da recusa do Oficial.
Nesse sentido:
“REGISTRO DE IMÓVEIS. DÚVIDA. INSTRUMENTO PARTICULAR DE CESSÃO DE DIREITOS DECORRENTES DE COMPROMISSO DE COMPRA E VENDA. AUSÊNCIA DE IMPUGNAÇÃO DOS ÓBICES REGISTRÁRIOS. DÚVIDA PREJUDICADA. RECURSO NÃO CONHECIDO” (TJSP; Apelação Cível 1010611-31.2022.8.26.0161; Rel. Des. Fernando Torres Garcia, Corregedor Geral; Órgão Julgador: Conselho Superior da Magistratura; Foro de Diadema – 1ª Vara Cível; Data do Julgamento: 29/06/2023; Data de Registro: 11/07/2023).
“REGISTRO DE IMÓVEIS – ESCRITURA PÚBLICA DE DOAÇÃO – AUSÊNCIA DE INSURGÊNCIA ESPECIFICADA DOS ÓBICES REGISTRÁRIOS – DÚVIDA PREJUDICADA – APELO NÃO CONHECIDO” (TJSP; Apelação Cível 1045132-80.2021.8.26.0114: Rel. Des. FERNANDO TORRES GARCIA, Corregedor Geral; Órgão Julgador: Conselho Superior da Magistratura; Foro de Campinas – 1ª Vara Cível; Data do Julgamento: 27/1/2023; Data de Registro: 2/2/2023).
“REGISTRO DE IMÓVEIS – Irresignação parcial – Dúvida – Apelação interposta que impugnou apenas parte das exigências – Dúvida prejudicada Recurso não conhecido” (TJSP; Apelação Cível 1001900-32.2020.8.26.0541; Rel. Des. RICARDO ANAFE, Corregedor Geral; Órgão Julgador: Conselho Superior de Magistratura; Foro de Santa Fé do Sul – Vara do Juizado Espe do Julgamento: 18/2/2021; Data de Registro: 5/3/2021).
Ainda assim, tratando-se de via administrativa, visando evitar novo questionamento futuro, passo à análise do óbice impugnado, o que é possível segundo entendimento do E. Conselho Superior da Magistratura:
“REGISTRO DE IMÓVEIS. Recusa de ingresso de título. Resignação parcial. Dúvida prejudicada. Recurso não conhecido. Análise das exigências a fim de orientar futura prenotação. Correta descrição dos imóveis envolvidos em operações de desdobro e fusão. Princípio da especialidade objetiva. Manutenção das exigências. Exibição de certidões negativas de débitos federais, previdenciários e tributários municipais. Inteligência do item 119.1. do Cap. XX das NSCGJ. Precedentes deste Conselho. Afastamento das exigências. Exibição de certidões de ações reais, pessoais reipersecutórias e de ônus reais. Exigência que encontra amparo na letra “c” do item 59 do Capítulo XIV das NSCGJ e na Lei nº 7.433/1985. Manutenção das exigências” (Apelação n.1000786-69.2017.8.26.0539 Relator Des. Pereira Calças).
No mérito, a dúvida seria procedente. Vejamos os motivos.
É importante ressaltar que o Registrador dispõe de autonomia e independência no exercício de suas atribuições, podendo recusar títulos que entender contrários à ordem jurídica e aos princípios que regem sua atividade (artigo 28 da Lei n. 8.935/1994), o que não se traduz como falha funcional.
Em outras palavras, o Oficial, quando da qualificação registral, perfaz exame dos elementos extrínsecos do título à luz dos princípios e normas do sistema jurídico (aspectos formais), devendo obstar o ingresso daqueles que não se atenham aos limites da lei.
A parte pretende o reconhecimento da usucapião extrajudicial, na modalidade extraordinária, do imóvel situado à Rua Professor Machado Tolosa, nº. 72, no Belenzinho, originalmente inserido na transcrição nº 50.753, sob a titularidade dominial de Isabel Torres Fortunato e outros.
Dentre as exigências formuladas pela nota devolutiva, o Oficial constatou que José Carlos dos Rosário, legitimado a ser notificado em conjunto com sua cônjuge, sendo herdeiro de Vito Onofre Fortunato, um dos titulares de domínio do imóvel, é pessoa incapaz, tendo sido decretada sua interdição aos 21/10/2022, com trânsito em julgado aos 2/2/2023.
No processo extrajudicial de usucapião, como regra geral, não se pode dispensar a notificação de titulares de direitos que não tenham dado prévia anuência à pretensão do interessado usucapiente.
Nesse sentido é a redação do parágrafo 2º, artigo 216-A, da Lei n.6.015/73:
“§ 2°. Se a planta não contiver a assinatura de qualquer um dos titulares de direitos registrados ou averbados na matrícula do imóvel usucapiendo ou na matrícula dos imóveis confinantes, o titular será notificado pelo registrador competente, pessoalmente ou pelo correio com aviso de recebimento, para manifestar consentimento expresso em quinze dias, interpretado o silêncio como concordância”.
Assim, independentemente do tempo alegado de posse, em nenhuma modalidade de usucapião há previsão legal para dispensa das notificações exigidas, ressalvada a demonstração de consentimento expresso pelos titulares dos direitos, conforme hipóteses previstas nos artigos 10 e 13 do Provimento CNJ n. 65/2017.
O artigo 10 do Provimento CNJ n. 65/2017 impõe a notificação pessoal dos titulares de direitos que não assinarem a planta que instrui o pedido de usucapião nem fornecerem anuência expressa.
Com o falecimento do coproprietário tabular sem manifestação de concordância, deve ser observado tratamento jurídico próprio que se aplica aos herdeiros de titulares de direitos reais e de outros direitos registrados, seja do imóvel usucapiendo ou do confinante.
Como é cediço, a presença de interesse de pessoas incapazes é uma das hipóteses de intervenção obrigatória do Ministério Público como fiscal da ordem jurídica em processos judiciais, sob pena de nulidade, nos termos do artigo 178, inciso II, do Código de Processo Civil e artigo 25, inciso V, da Lei n. 8.625/93 (Lei Orgânica do Ministério Público).
Relevante mencionar, ainda, que a consequência da falta de intervenção do Ministério Público como fiscal da ordem jurídica, nos casos em que a lei exige sua participação, é a nulidade do processo, como preceituam os artigos 279, caput, §1º e § 2º e 967, III, “a”6, do Código de Processo Civil.
Ademais, o § 2º do artigo 141 do Manual de Atuação Funcional dos Promotores de Justiça do Estado de São Paulo prevê que a falta de autodeterminação torna indisponível o direito do interessado e legitima a intervenção do Ministério Público. O artigo 277, inciso II do mesmo regulamento, por sua vez, determina que o Ministério Público deverá intervir como fiscal da lei nas ações individuais de usucapião de imóvel em que haja interesse de incapazes.
Com o advento da Resolução CNMP n. 301/2024, que disciplina a atuação do Ministério Público em procedimentos oriundos de serventias extrajudiciais, está expresso no artigo 2º que o Ministério Público atuará nos procedimentos de inventário e/ou partilha realizados por escritura pública quando houver interesse de crianças e adolescentes e incapazes, em procedimento denominado Procedimento Extrajudicial Classificador (art. 4º). Não consta da Resolução, porém, previsão para a atuação do Ministério Público em procedimento extrajudicial de usucapião quando houver interesse de incapaz.
No caso em apreço, diante da ausência de base legal para intervenção ministerial na esfera extrajudicial e da necessidade de assegurar a tutela do incapaz, impõe-se a extinção do procedimento administrativo, sem prejuízo do aproveitamento da documentação existente, facultando-se ao interessado ajuizar a competente ação de usucapião judicial.
Nesse sentido:
“DÚVIDA REGISTRAL. Usucapião extrajudicial. Requerimento. Acessio possessionis. Falta de comprovação documental da cadeia possessória. Antecessor interdito. Necessidade de notificação do antecessor e intervenção do Ministério Público. Inadequação da via extrajudicial. Óbice mantido. Dúvida prejudicada.” (1VRPSP – Dúvida: 1081034-97.2025.8.26.0100, Data de Julgamento: 17/07/2025, Data DJ: 21/07/2025)
Outra solução viável, conforme já restou consignado por esta 1ª Vara de Registros Públicos em outras oportunidades (ressaltando que ainda não houve manifestação do C. Conselho Superior da Magistratura nem da E. Corregedoria Geral da Justiça sobre a matéria), seria a obtenção de autorização do juízo que decretou a interdição, para que o seu curador nomeado ao interditado pudesse consentir com o pedido de usucapião.
Em suma, as exigências apontadas na nota devolutiva não podem ser afastadas.
Diante do exposto, JULGO PREJUDICADA a dúvida suscitada, observando que o óbice subsiste.
Deste procedimento não decorrem custas, despesas processuais ou honorários advocatícios.
Oportunamente, ao arquivo.
P.R.I.C.
São Paulo, 05 de dezembro de 2025.
Rodrigo Jae Hwa An
Juiz de Direito
(DJEN de 09.12.2025 – SP)