CSM|SP: Embargos de Declaração – Erro material – Inocorrência – Omissão, contradição e obscuridade relevantes – Inexistência – Recurso rejeitado.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos de EMBARGOS DE DECLARAÇÃO n° 0039081-64.2011.8.26.0100/50000, da Comarca da CAPITAL, em que é embargante EUROGROUP SOCIEDAD ANÔNIMA e embargado o 13° OFICIAL DE REGISTRO DE IMÓVEIS DA COMARCA DA CAPITAL.

ACORDAM, em Conselho Superior de Magistratura do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão: “REJEITARAM OS EMBARGOS DE DECLARAÇÃO, V.U.”, de conformidade com o voto do(a) Relator(a), que integra este acórdão.

O julgamento teve a participação dos Desembargadores IVAN RICARDO GARISIO SARTORI, Presidente do Tribunal de Justiça, JOSÉ GASPAR GONZAGA FRANCESCHINI, Vice-Presidente do Tribunal de Justiça, FRANCISCO ROBERTO ALVES BEVILACQUA, Decano, SAMUEL ALVES DE MELO JÚNIOR, ANTONIO JOSÉ SILVEIRA PAULILO e ANTONIO CARLOS TRISTAO RIBEIRO, respectivamente, Presidentes das Seções de Direito Público, Privado e Criminal do Tribunal de Justiça.

São Paulo, 28 de fevereiro de 2013.

JOSÉ RENATO NALINI

Corregedor Geral da Justiça e Relator

Embargos de Declaração n.° 0039081-64.2011.8.26.0100/50000

Embargante: EUROGROUP SOCIEDAD ANÔNIMA

Embargado: 13° OFICIAL DE REGISTRO DE IMÓVEIS DE SÃO PAULO

VOTO N° 21.223

EMBARGOS DE DECLARAÇÃO – Erro material – Inocorrência – Omissão, contradição e obscuridade relevantes – Inexistência – Recurso rejeitado.

A interessada/embargante, afirma, para justificar a oposição do recurso, que o v. acórdão padece de erro material e omissão, pois, na realidade, a instituição do bem de família é posterior ao aperfeiçoamento da confissão de dívida com garantia de alienação fiduciária de bem imóvel e porque silenciou a respeito da questão relativa à equiparação da alienação fiduciária à hipoteca, a possibilitar, por analogia, que a garantia em foco recaia sobre bem de família voluntário (fls. 179/182).

É o relatório.

Clovis Betti e Giselda Maria de Queiroz Jacob, ao confessarem o débito de R$ 1.200.000,00 e ajustarem o pagamento parcelado, em cento e vinte prestações, comprometeram-se, também, por meio do mesmo instrumento particular, subscrito no dia 10 de outubro de 2006, a transferir à credora, interessada e ora embargante, com escopo de garantia, a propriedade resolúvel do imóvel objeto da matrícula n.° 21.065 do 13° Registro de Imóveis desta Capital (fls. 20/25 e 84/88).

Contudo, a constituição da propriedade fiduciária de imóvel pressupõe o registro do instrumento no qual ajustada a alienação fiduciária em garantia, enfim, do título que documenta o negócio jurídico fiduciário [1]: sem ele, por conseguinte, a garantia real inexiste, remanescendo apenas o direito de crédito, desatrelado daquela, à vista do artigo 23, caput, da Lei n° 9.514/1997 [2].

Ocorre que os devedores fiduciantes Clovis Betti e Giselda Maria de Queiroz Jacob destinaram o bem imóvel para instituir bem de família, mediante escritura pública lavrada no dia 21 de setembro de 2006, registrada em 14 de dezembro de 2006 (registro n° 7 da matrícula n° 21.065 – fls. 159/160), fundados na regra do artigo 1.711, caput, do Código Civil [3].

Vale dizer, quando a interessada apresentou para registro o instrumento particular de confissão de dívida com garantia de alienação fiduciária de bem imóvel, no dia 27 de junho de 2011 (fls. 66), o bem de família voluntário já estava instituído: e com o assento registral, da essência do instituto protetivo, a transferência da propriedade do bem imóvel, mesmo da propriedade-garantia, ficou condicionada ao prévio assentimento dos interessados, integrantes do ente familiar, beneficiários da instituição do bem de família, e à manifestação do Ministério Público (artigo 1.717 do CC) [4].

Em suma: antes da constituição da propriedade fiduciária, antes, portanto, da sua existência, restou instituída restrição ao poder disposição sobre a coisa dada em garantia real. Por isso, e especialmente porque inobservado a regra do artigo 1.717 do CC, o registro foi recusado e a dúvida julgada procedente.

A preexistência do registro do bem de família foi determinante para a confirmação do acerto da desqualificação registral, à luz, inclusive, da declaração de voto vencedor (e não vencido, como constou nos embargos – fls. 180) do Excelentíssimo Presidente do Egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo, Desembargador Ivan Sartori (fls. 172/175).

Além disso, assinalei no voto que proferi:

Em sede administrativa, descabido ao oficial e mesmo ao Corregedor isentar a parte de obter desfazimento judicial da instituição. Aplica-se à hipótese o teor do artigo 252 da Lei de Registros Públicos: “o registro, enquanto não cancelado, produz todos os efeitos legais, ainda que, por outra maneira, se prove que o título está desfeito, anulado, extinto ou rescindido”.

A jurisdição poderá considerar ineficaz ou desconstituir o registro do bem de família. Inservível a tanto a via administrativa, por sedutores possam parecer os argumentos em contrário.

Em resumo: o v. acórdão impugnado não contém omissões, contradições e obscuridades relevantes. De fato, a questão central foi enfrentada e os elementos de convicção, em sintonia com o desfecho do julgamento, foram expostos, escorados na ordem jurídica vigente e nos dados probatórios.

Nada obstante, inocorrente, ainda, o erro material agitado: com efeito, na declaração de voto vencedor, não se afirmou que a instituição do bem de família voluntário é anterior ao instrumento particular de confissão de dívida com garantia de alienação fiduciária de bem imóvel, mas, isso sim, que a escritura pública objeto do registro constitutivo, lavrada em 21 de setembro de 2006, antecedeu ao titulus adquirendi da propriedade fiduciária, datado de 10 de outubro de 2006 (fls. 172/175).

Salientou-se, assim, não apenas a preexistência da instituição do bem de família voluntário em relação ao pretendido registro do instrumento particular de confissão de dívida, mas também a precedência do titulus adquirendi daquele em confronto com o da propriedade-garantia. Em outras palavras, realçou a prevalência do bem de família voluntário tanto sob o prisma do modo de aquisição como à vista da causa jurídica de aquisição do direito. [5]

Por outro lado, a omissão referida nos embargos de declaração – alusiva à falta de pronunciamento sobre a pleiteada equiparação da alienação fiduciária em garantia à hipoteca e a aplicação por analogia do inciso V do artigo 3° da Lei n.° 8.009/1990, que prevê uma das exceções à impenhorabilidade do bem de família legal -, é irrelevante. As razões expostas no v. acórdão bastam, com efeito, para o julgamento procedente da dúvida. De todo modo, aprecio o tema, não abordado no voto que proferi.

O bem de família voluntário, embora igualmente importe exceção ao princípio da responsabilidade patrimonial e vise à proteção da entidade familiar e à garantia do mínimo existencial, não se confunde com o bem de família legal, versado na Lei n.° 8.009/1990.

Conforme o magistério de Paulo Lobo, “o bem de família legal tem por finalidade a proteção da moradia da família, enquanto o bem de família voluntário visa à proteção da base econômica mínima da família” [6]: não se restringindo ao imóvel próprio que serve de residência da entidade familiar, às acessões levantadas, às benfeitorias nele introduzidas e aos móveis que o guarnecem [7], pode abranger, além da morada da família, com suas pertenças e seus acessórios, outros bens, mesmo desvinculados daquela, como os valores mobiliários, se respeitado o limite de um terço do patrimônio líquido e os valores mobiliários não excederem ao valor do prédio residencial [8].

Em confronto com o bem de família legal, a esfera de proteção da entidade familiar, com o bem de família voluntário — que, instituído, afasta a incidência da proteção legal -, foi alargada: inegavelmente, a despeito das exigências formais impostas, o legislador infraconstitucional densificou a tutela da dignidade da pessoa humana, do direito social à moradia (artigo 6° da CF) [9] e do patrimônio mínimo da entidade familiar.

A possibilidade da instituição do bem de família voluntário recair sobre bens não incorporados ao patrimônio dos favorecidos – tanto que passível de ser instituído por terceiro [10] -, a imutabilidade relativa da destinação dos bens constituídos como bem de família e, particularmente, as limitações impostas à sua alienação [11] reforçam, induvidosamente, a ampliação do campo protetivo.

Na mesma linha, a regra do artigo 1.715, caput, do CC. Malgrado acentue o caráter preventivo do bem de família voluntário, a norma dele extraída, confrontada com a do artigo 3° da Lei n.° 8.009/1990, é mais restritiva, ao tratar das situações que excepcionam a impenhorabilidade: o bem de família voluntário, quanto às dívidas posteriores à sua instituição, não estará livre, imune, unicamente das execuções de débitos tributários e condominiais referentes ao bem imóvel residencial.

Dentro desse contexto, e diversamente do afirmado pela embargante, a exceção legal à impenhorabilidade do bem de família legal, prevista no inciso V do artigo 3° da Lei n.° 8.009/1990 – oportunizando a constrição judicial do imóvel hipotecado, se oferecido como garantia real pelo casal ou pela entidade familiar [12] – não é extensível ao bem de família voluntário: solução diversa implicaria, pela via hermenêutica, afronta à opção legislativa e à proibição de retrocesso, reduzindo o espaço protetivo de direito fundamental, ao arrepio da diretriz constitucional de tutela da dignidade da pessoa humana.

O bem de família voluntário – ainda que possa recair sobre imóveis hipotecados, inclusive porque a imunização à penhora é ineficaz apenas relativamente às dívidas passadas [13] -, impede, doravante, a constituição da hipoteca, obstada pelas restrições impostas à sua alienação: o livre poder de disposição da coisa é requisito legal subjetivo de validade da hipoteca, à luz do artigo 1.420, caput, do CC/2002 [14].

Aliás, em contrapartida, a penhorabilidade do bem de família legal, suscetível de constrição judicial no processo de execução hipotecária, se dado em garantia real pelos proprietários, encontra justificativa, exatamente, na inexistência de restrição à sua alienação: segundo Álvaro Villaça de Azevedo, “se a situação de bem de família não retira de seu titular a possibilidade de aliená-lo, porque esse imóvel é, somente, impenhorável, nada impede que ele seja oferecido como garantia hipotecária.” [15]

Portanto, a interpretação analógica aventada pela embargante é inaceitável, desautorizada pela inocorrência de lacuna legal, pelas características e pelas finalidades diversas do bem de família legal e do bem de família voluntário: assim, protegido este contra a hipoteca futura, posterior à sua instituição, também o está, logicamente, e por idênticas razões, em relação à alienação fiduciária em garantia.

Pelo todo acima aduzido, rejeito os embargos de declaração.

JOSÉ RENATO NALINI

Corregedor Geral da Justiça e Relator

Notas:

[1] Segundo Antônio Junqueira de Azevedo, “haverá negócio fiduciário toda vez que uma atribuição patrimonial (a transmissão de um direito) for realizada com um fim prático mais restrito em relação à totalidade das faculdades e poderes transferidos, estabelecendo as partes, com base na confiança (fidúcia), que, apesar desse excesso, o fiduciário (parte beneficiada com a atribuição patrimonial) deverá exercer a posição jurídica que lhe é outorgada somente em conformidade com o fim mais limitado visado especificamente pelas partes (Negócio fiduciário. Frustração da fidúcia pela alienação indevida do bem transmitido. Oponibilidade ao terceiro adquirente dos efeitos da fidúcia germânica e de procuração em causa própria outorgada ao fiduciante. In: Novos estudos e pareceres de Direito Privado. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 107-119. p. 111).

[2] Artigo 23. Constitui-se a propriedade fiduciária de coisa imóvel mediante registro, no competente Registro de Imóveis, do contrato que lhe serve de título.

[3] Artigo 1.711. Podem os cônjuges, ou a entidade familiar, mediante escritura pública ou testamento, destinar parte de seu patrimônio para instituir bem de família, desde que não ultrapasse um terço do patrimônio líquido existente ao tempo da instituição, mantidas as regras sobre impenhorabilidade do imóvel residencial estabelecida em lei especial.

[4] Artigo 1.717. O prédio e os valores mobiliários, constituídos como bem da família, não podem ter destino diverso do previsto no art. 1.712 ou serem alienados sem o consentimento dos interessados e seus representantes legais, ouvido o Ministério Público, (grifei).

Segundo o escólio de Carlos Roberto Gonçalves, em oportuna interpretação sistemática, a autorização judicial também é imprescindível, à luz do artigo 1.719 do CC: “malgrado a omissão do art. 1.717 do Código Civil, não mencionando a necessidade da participação do juiz na alienação do prédio e valores imobiliários que compõem o bem de família, é de se ponderar, numa interpretação sistemática, ser indispensável a autorização judicial, e a nomeação de curador especial aos filhos menores (CC, art. 1.692), para a efetivação da aludida alienação, uma vez que tal ato importará na extinção do benefício. E, como visto, o art. 1.719 do mesmo diploma atribui ao juiz a competência para determinar a extinção do bem de família ou autorizar a sub-rogação dos bens que o constituem em outros, comprovada a impossibilidade de sua manutenção nas condições em que foi instituído.” (Direito Civil Brasileiro. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 517. v. VI.).

[5] “Modo de adquirir é o fato ao qual a lei atribui o efeito de constituir um direito real ou operar sua transmissão. Titulus adquirendi, a causa jurídica ou razão de ser da aquisição ou transmissão do direito. Titulus e modus são, assim, coisas distintas e inconfundíveis. Pode-se, pois, dizer, com Bufnoir, que ‘o ato pelo qual se opera a transmissão da propriedade de uma coisa não é o fato em virtude do qual a transmissão se realiza’.” (Orlando Gomes. Contratos. Atualizada por Antônio Junqueira de Azevedo e Francisco Paulo de Crescenzo Marino. 26ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 269.).

[6] Direito Civil: famílias. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 398.

[7] Artigo 1°. O imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar, é impenhorável e não responderá por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza, contraída pelos cônjuges ou pelos pais ou filhos que sejam seus proprietários e nele residam, salvo nas hipóteses previstas nesta lei.

Parágrafo único. A impenhorabilidade compreende o imóvel sobre o qual se assentam a construção, as plantações, as benfeitorias de qualquer natureza e todos os equipamentos, inclusive os de uso profissional, ou móveis que guarnecem a casa, desde que quitados.

Artigo 2° Excluem-se da impenhorabilidade os veículos de transporte, obras de arte e adornos suntuosos.

Parágrafo único. No caso de imóvel locado, a impenhorabilidade aplica-se aos bens móveis quitados que guarneçam a residência e que sejam de propriedade do locatário, observado o disposto neste artigo.

[8] Artigo 1.712. O bem de família consistirá em prédio residencial urbano ou rural, com suas pertenças e acessórios, destinando-se em ambos os casos a domicílio familiar, e poderá abranger valores mobiliários, cuja renda será aplicada na conservação do imóvel e no sustento da família.

Artigo 1.713. Os valores mobiliários, destinados aos fins previstos no artigo antecedente, não poderão exceder o valor do prédio instituído em bem de família, à época de sua instituição. (…).

[9] São direitos sociais, a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.

[10] Artigo 1.711. (…). Parágrafo único. O terceiro poderá igualmente instituir bem de família por testamento ou doação, dependendo a eficácia do ato da aceitação expressa de ambos os cônjuges beneficiados ou da entidade familiar beneficiada.

[11] Artigo 1.717. O prédio e os valores imobiliários, constituídos como bem da família, não podem ter destino diverso do previsto no art. 1.712 ou serem alienados sem o consentimento dos interessados e seus representantes legais, ouvido o Ministério Público.

Artigo 1.719. Comprovada a impossibilidade da manutenção do bem de família nas condições em que foi instituído, poderá o juiz, a requerimento dos interessados, extingui-lo ou autorizar a sub-rogação dos bens que o constituem em outros, ouvidos o instituidor e o Ministério Público.

[12] Artigo 3°. A impenhorabilidade é oponível em qualquer processo de execução civil, fiscal, previdenciária, trabalhista ou de outra natureza, salvo se movido: (…); V – para execução de hipoteca sobre o imóvel, oferecido como garantia real pelo casal ou pela entidade familiar; (…).

[13] Artigo 1.715. O bem de família é isento de execução por dívidas posteriores à sua instituição, salvo as que provierem de tributos relativos ao prédio, ou de despesas de condomínio, (grifei).

[14] Artigo 1.420. Só aquele que pode alienar poderá empenhar, hipotecar ou dar em anticrese; só os bens que se podem alienar poderão ser dados em penhor, anticrese ou hipoteca, (grifei).

[15] Comentários ao Código Civil: do Direito de Família (arts. 1.711 a 1.783). Antônio Junqueira de Azevedo (coord.). São Paulo: Saraiva, 2003. p. 112. v. 19. (D.J.E. de 05.04.2013 – SP)