STJ: Direito sucessório. Pacto. Separação de bens. Testamento feito pelo varão dispondo da totalidade dos bens. Atos jurídicos feitos sob a égide do Código Civil de 1916. Morte do varão sob a vigência do Código Civil de 2002. Cônjuge Supérstite. Herdeira necessária. Inocorrência. Ato jurídico perfeito (Pacto), cujos atos que o sucedem devem ser respeitados. Ainda que afastado a questão do direito intertemporal, prevalece a vontade do testador. Ademais, a interpretação sistemática (arts. 1.829, I c/c 1.687) conclui que o cônjuge sobrevivente, nas hipóteses de separação convencional de bens, não pode ser admitido como herdeiro necessário – Recurso conhecido e provido.

JURISPRUDÊNCIA (Superior Tribunal de Justiça)

Direito das sucessões – Recurso especial – Pacto antenupcial – Separação de bens – Morte do varão – Vigência do novo código civil – Ato jurídico perfeito – Cônjuge sobrevivente – Herdeiro necessário – Interpretação sistemática – O pacto antenupcial firmado sob a égide do Código de 1916 constitui ato jurídico perfeito, devendo ser respeitados os atos que o sucedem, sob pena de maltrato aos princípios da autonomia da vontade e da boa-fé objetiva – Por outro lado, ainda que afastada a discussão acerca de direito intertemporal e submetida a questão à regulamentação do novo Código Civil, prevalece a vontade do testador. Com efeito, a interpretação sistemática do Codex autoriza conclusão no sentido de que o cônjuge sobrevivente, nas hipóteses de separação convencional de bens, não pode ser admitido como herdeiro necessário – Recurso conhecido e provido. (Nota da Redação INR: ementa oficial)

EMENTA

DIREITO DAS SUCESSÕES. RECURSO ESPECIAL. PACTO ANTENUPCIAL. SEPARAÇÃO DE BENS. MORTE DO VARÃO. VIGÊNCIA DO NOVO CÓDIGO CIVIL. ATO JURÍDICO PERFEITO. CÔNJUGE SOBREVIVENTE. HERDEIRO NECESSÁRIO. INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA. 1. O pacto antenupcial firmado sob a égide do Código de 1916 constitui ato jurídico perfeito, devendo ser respeitados os atos que o sucedem, sob pena de maltrato aos princípios da autonomia da vontade e da boa-fé objetiva. 2. Por outro lado, ainda que afastada a discussão acerca de direito intertemporal e submetida a questão à regulamentação do novo Código Civil, prevalece a vontade do testador. Com efeito, a interpretação sistemática do Codex autoriza conclusão no sentido de que o cônjuge sobrevivente, nas hipóteses de separação convencional de bens, não pode ser admitido como herdeiro necessário. 3. Recurso conhecido e provido. (STJ – REsp nº 1.111.095 – RJ – 4ª Turma – Rel. Originário Min. Carlos Fernando Mathias – Rel. para Acórdão Min. Fernando Gonçalves – DJ 11.02.2010)

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas a seguir, prosseguindo no julgamento, após o voto-vista regimental do Ministro Fernando Gonçalves, conhecendo do recurso especial e lhe dando provimento, acompanhando os votos dos Ministros Carlos Fernando Mathias (Desembargador convocado do TRF da 1ª Região), Relator, e Luiz Felipe Salomão, divergindo do voto do Ministro João Otávio de Noronha que dele não conhecia, por maioria, conhecer do recurso especial e lhe dar provimento. Vencido o Ministro João Otávio de Noronha. Os Ministros Fernando Gonçalves e Luis Felipe Salomão votaram com o Ministro Relator. Não participou do julgamento o Ministro Honildo Amaral de Mello Castro (Desembargador convocado do TJ⁄AP).

Brasília, 1º de outubro de 2009. (data de julgamento)

MINISTRO FERNANDO GONÇALVES, Relator p⁄acórdão

RELATÓRIO

O EXMO. SR. MINISTRO CARLOS FERNANDO MATHIAS (JUIZ FEDERAL CONVOCADO DO TRF 1ª REGIÃO) (Relator):

Trata-se de recurso especial interposto pelo ESPÓLIO DE PAULO MARTINS FILHO, com fulcro no art. 105, inciso III, alíneas “a” e “c”, da Carta Maior, em face de acórdão prolatado pelo Eg. Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, sob o fundamento de ter o mesmo malferido os arts. 6.º da Lei de Introdução ao Código Civil; 1647, inciso I, 1687, 1969 e 2039 do vigente Código Civil Brasileiro; e 535 do Código de Processo Civil.

Noticiam os autos que PAULO MARTINS FILHO e MERCEDES MAGDALENA SERRADOR MARTINS, contraíram matrimônio sob o regime de separação total de bens, fazendo-o de acordo com a legislação à época vigente por meio de pacto antenupcial lavrado em maio de 1950, no qual ficou expressamente convencionado entre os nubentes o que se segue:

“que se achando contratados para casar resolveram que o seu casamento se regerá pela completa separação de bens; que assim todos os bens presentes e futuros pertencerão como próprios e serão incomunicáveis; bem assim o rendimento de tais bens, podendo cada um dos outorgantes e reciprocamente outorgados livremente dispor dos seus bens e rendimentos sem intervenção do outro e como lhe aprouver, mantendo cada um dos outorgantes e reciprocamente outorgados a exclusiva autoridade de administração, usar e dispor de seus bens a seu livre arbítrio.” (fls. 139)

Em 25.06.2001, PAULO MARTINS FILHO lavrou testamento público, dispondo da totalidade de seu patrimônio, deixando como seu único herdeiro seu sobrinho ALOYSIO MARIA TEIXEIRA FILHO, vindo a falecer em 26.05.2004.

Em 25.06.2004, o testamenteiro nomeado requereu a abertura da sucessão do varão, apresentando seu testamento junto ao Juízo da 5.ª Vara de Órfãos da cidade do Rio de Janeiro para o devido registro arquivamento e cumprimento, sendo sua execução ordenada por decisão datada de 04.08.2004.

Em 05.09.2004, quase quatro meses após o óbito de seu esposo, veio a falecer MERCEDES MAGDALENA SERRADOR MARTINS. Abriu-se, assim, a sucessão da mesma, em ação processada junto à 2.ª Vara de Órfãos e Sucessões, na qual encontram-se habilitados onze sobrinhos seus, filhos de seus irmãos já falecidos.

Assim é que, nos autos do inventário de PAULO MARTINS FILHO, o espólio de MERCEDES MAGDALENA SERRADOR MARTINS, formulou o pedido de habilitação que deu origem à controvérsia que se põe à apreciação desta Corte Superior, sustentando, em síntese, que, nos termos do art. 1.845 do vigente Código Civil, a despeito da disposição de vontade do testador, haveria de ser reservada a legítima à sua esposa na condição de herdeira necessária, vez que já falecidos os ascendentes e inexistentes descendentes do testador.

O juízo singular indeferiu o pedido de habilitação formulado, o que ensejou a interposição do agravo de instrumento de que trata o art. 522 do CPC por parte do espólio de MERCEDES MAGDALENA SERRADOR MARTINS.

A Segunda Câmara Cível do Eg. TJ⁄RJ, por unanimidade de votos dos seus integrantes, deu provimento ao recurso, em aresto assim ementado:

“AGRAVO DE INSTRUMENTO. Inventário. Habilitação do espólio do cônjuge-virago no inventário dos bens do cônjuge varão pré-morto, tendo sido casados sob o regime de separação total e tendo o varão lavrado testamento, destinando todo o seu patrimônio a um sobrinho. Casamento e testamento anteriores ao Código Civil de 2002; óbitos em 2004. Conflito intertemporal de normas: segundo o CC⁄16, a mulher nada herdaria em face do testamentário; sob o CC⁄02, o cônjuge sobrevivente é equiparado a herdeiro necessário, fazendo jus à meação. Prevalência do regime da lei nova, por força do disposto no art. 2.º da Lei de Introdução ao Código Civil e dos arts. 2.041 e 2.042 da lei nova. Lição de Carlos Maximiliano. Provimento do recurso.” (fls. 603-apenso)

Na ocasião, ficou assim fundamentado o voto condutor do referido julgado:

“(…) A disputa está, pois, em se estabelecer a qual norma se submete a lide, sabendo-se que o casamento e o testamento ocorreram na vigência do CC⁄16, mas os óbitos, sucessivos, e deram sob o regime da Lei nova (26.05.04, o do varão; 05.09.04, o da mulher).

Aplicada a regra de direito intertemporal – tais o objeto próprio e a utilidade da Lei de Introdução ao Código Civil -, dúvida não pode subsistir quanto a aplicar-se a lei nova, desde que ‘expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regula inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior’. Solar que, em face do CC⁄16, o CC⁄02 correspondente às três possibilidades, cuidando-se, como se cuida, de direitos sucessórios do cônjuge sobrevivente.

Prevendo, por óbvio, que muitos seriam os casos de testamentos lavrados no regime do CC⁄16 e óbitos ocorridos na vigência do CC⁄02, este fez constar duas regras necessárias e suficientes, quais sejam as dos arts. 2.041 e 2.042.

O art. 2.041 estabelece que ‘as disposições deste Código relativas à ordem de vocação hereditária (arts. 1.829 e 1.844) não se aplicam à sucessão aberta antes de sua vigência, prevalecendo o disposto na lei anterior’. Extraem-se dois efeitos: (1.º) todas as demais disposições do CC⁄02, relativas à sucessão, vale dizer, os arts. 1.845 e seguintes, podem, conforme o caso, ser aplicadas também às sucessões abertas antes da vigência da nova lei; (2.º) no caso, abriu-se a sucessão em 2004, já, portanto, na vigência do CC⁄02, descabendo manter-se o regime do CC⁄16, desde que atendidos os preceptivos da lei que o revogou.

(…) O art. 2.042 manda aplicar o disposto no caput do art. 1.848 – que proíbe o testador de estabelecer, entre outras, cláusula de incomunicabilidade sobre os bens da legítima – quando a sucessão se abrir um ano após a entrada em vigor do CC⁄02, ‘ainda que o testamento tenha sido feito na vigência do anterior’, com a consequência expressa de que se, nesse prazo, ‘o testador não aditar o testamento para declarar a justa causa de cláusula aposta à legítima, não subsistirá a restrição’.

O art. 2.042 do CC⁄02 fixou tal prazo porque, além dele, incide o novo regime. Ora, o varão faleceu aos 26.05.2004, ou seja, mais de ano depois de janeiro de 2003, quando passou a viger o CC⁄02, e nada aditou ao testamento. Segue-se que as disposições deste passaram a obedecer às normas do CC⁄02. E estas traçam limite objetivo à liberdade do testador – ‘A legítima dos herdeiros necessários não poderá ser incluída no testamento’ (art. 1.857, § 1.º). Também por esse motivo, o cônjuge sobrevivente, na qualidade de herdeiro necessário, faz jus à metade dos bens destinados ao testamenteiro, por isto que, no caso, aos herdeiros daquele se deve franquear a habilitação pretendida.” (fls. 610⁄612-apenso)

Em face do julgado, opôs o ora recorrente embargos de declaração, suscitando a inaplicabilidade à hipótese do art. 1.845 do Código Civil, por ofensa ao princípio legal e constitucional de respeito ao ato jurídico perfeito e ao direito adquirido.

Referidos embargos foram rejeitados à unanimidade, esclarecendo a Corte a quo, que a questão constitucional suscitada já fora objeto de apreciação quando do julgamento de agravo de instrumento distinto, manejado pelo próprio embargante e autuado sob o n.º 2007.002.08178, a que se negou provimento também à unanimidade.

Ainda irresignado com o teor do v. Acórdão prolatado, interpôs o ESPÓLIO DE PAULO MARTINS FILHO o recurso especial que ora se apresenta, aduzindo, preliminarmente, que o agravo de instrumento que ensejou a prolação do julgado impugnado sequer se fazia merecedor de conhecimento, vez que, em suas razões, o então agravante não teria impugnado, especificamente, todos os fundamentos essenciais da decisão singular atacada, em especial ao referente à escorreita exegese do art. 2.039 do CC⁄02.

No mérito, afirma que o art. 1.845 do Código Civil, ao incluir o cônjuge sobrevivente no rol dos herdeiros necessários implicaria em ofensa cabal a atos jurídicos perfeitos e acabados, ofendendo, assim, o art. 5.º, XXXVI, da Carta Maior e o art. 6.º, §§ 1.º e 2º da LICC. Sustenta, assim, que “jamais poderá ser considerado herdeiro necessário justamente aquele cônjuge que foi casado pelo regime da completa e absoluta separação convencional de bens” (fls. 751)

Aduz, ainda, que o art. 1.845 do CC⁄02 se revela incompatível com os arts. 1.647 e 1.687 daquele mesmo diploma legal, porquanto os mesmos conferem total liberdade de administração e disposição do patrimônio ao cônjuge casado através do regime de total separação convencional de bens.

Assevera que “não há como se admitir que a lei nova, advinda muito tempo depois do pacto antenupcial e do próprio testamento deixado pelo varão, venha a atingir tais atos jurídicos perfeitos, tornando sem efeito as vontades dos cônjuges, transformando-os em herdeiros necessários um do outro e impondo-lhes, em razão disto, restrições quanto à disposição da totalidade de seu patrimônio pela via testamentária” (fls. 759) e, acerca do tema, conclui que “somente para os destinatários do testamento este somente se tornará um ato jurídico perfeito e acabado após a morte do testador. Contudo, para o próprio testador, suas disposições de última vontade, desde que feitas de acordo com a legislação em vigência na época em que foi outorgado e assinado, são imutáveis após seu falecimento, e jamais poderão ser alterados pela lei nova” (fls. 767)

Aduz, também, divergência jurisprudencial, colacionando aos autos ementa de julgado oriundo do Eg. TJ⁄RS que, em caso análogo ao que se apresenta, teria esposado entendimento diverso.

Por fim, aponta o recorrente ofensa ao art. 535 do CPC, afirmando omisso o acórdão exarado na origem, em sede de embargos de declaração, por não ter dirimido a controvérsia à luz da suscitada ilegalidade e inconstitucionalidade do art. 1.845 do CPC.

O agravado apresentou suas contra-razões ao apelo nobre (fls. 787⁄791), pugnando pela inadmissão do mesmo, posto ser a questão central do apelo – relativa à ofensa a ato jurídico perfeito – de índole eminentemente constitucional, bem como pelo fato de não ter sido referido tema objeto de prequestionamento. No que se refere à apontada ofensa ao art. 535 do CPC, afirma o recorrido ser indevida a alegação, mesmo porque teria a Corte de origem deixado expresso que a questão constitucional suscitada não seria apreciada naquele momento por já ter sido objeto de análise em agravo de instrumento diverso, manejado pelo próprio embargante, ora recorrente.

Na origem, em exame de prelibação (fls. 622⁄630-apenso), recebeu o recurso especial, bem como ocorreu com o extraordinário (fls. 682⁄725), crivo negativo de admissibilidade, ascendendo, assim, o primeiro, à esta Corte Superior, por força da decisão proferida nos autos do AG n.º 1.009.753⁄RJ.

É o relatório.

EMENTA – VOTO

CIVIL. PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. VIOLAÇÃO AO ART. 535 DO CPC. NÃO-OCORRÊNCIA. DIREITO SUCESSÓRIO. CÔNJUGE SUPÉRSTITE. ART. 1845 DO CPC. REGIME MATRIMONIAL DE SEPARAÇÃO TOTAL DE BENS. TESTAMENTO ANTERIOR AO NOVO CÓDIGO CIVIL. DISPOSIÇÃO SOBRE A INTEGRALIDADE DOS BENS. APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO. PROTEÇÃO AO ATO JURÍDICO PERFEITO. VONTADE DO TESTADOR QUE MERECE SER RESPEITADA, IN CASU. 1. Não se verifica violação ao art. 535 do CPC quando o acórdão impugnado examina e decide, de forma fundamentada e objetiva, as questões relevantes para o desate da lide. 2. A alteração engendrada na norma civil, alçando o cônjuge supérstite à condição de herdeiro necessário (art. 1845), tem o escopo de protege-lo nas hipóteses em que desprovido o mesmo do percebimento de eventual meação advinda do regime matrimonial adotado. 3. In casu, porém, consoante se infere dos autos após o falecimento de seu esposo, optou o cônjuge sobrevivente por não habilitar-se no inventário dos bens do mesmo, respeitando, assim, último ato de vontade deste, inserto no testamento que lavrara no ano de 2001. 4. Assim, a despeito de, via de regra, prevalecer, em matéria de direito sucessório, a lei vigente à época do falecimento, por força do disposto no art. 1.787 do Código Civil, tenho que, excepcionalmente, tendo em vista as peculiaridades do caso em apreço, em homenagem ao disposto no art. 6.º, §§ 1.º e 2.º, da LICC, que assegura respeito ao ato jurídico perfeito, devem ser mantidas hígidas as disposições de última vontade do testador, mesmo porque estas, corroboradas pela ação em vida da cônjuge sobrevivente, cumprem não só o desejo do próprio casal, como estão em consonância com o espírito da norma que estendeu proteção sucessória a pessoa do cônjuge. 5. Recurso especial provido.

VOTO

O EXMO. SR. MINISTRO CARLOS FERNANDO MATHIAS (JUIZ FEDERAL CONVOCADO DO TRF 1ª REGIÃO) (Relator):

O dissídio jurisprudencial suscitado encontra-se configurado, bem como encontra-se implicitamente prequestionada a matéria federal inserta nos dispositivos legais apontados pelo ora recorrente como malferidos, o que, somado ao preenchimento dos demais pressupostos de admissibilidade recursal, impõe o conhecimento do presente recurso especial.

Consoante o relatado, cinge-se o especial às seguintes alegações: a) violação do art. 6.º, §§ 1.º e 2.º da LICC pela inclusão do cônjuge supérstite no rol dos herdeiros necessários promovida pelo art. 1.845 do vigente Código Civil; b) incompatibilidade do art. 1.845 do Código Civil com arts 1.647, 1687, 1969 e 2039 daquele mesmo diploma legal; c) divergência jurisprudencial, ensejadora da abertura da via especial pela alínea “c” do permissivo constitucional; e d) violação do art 535 do CPC, decorrente da omissão da Corte de origem acerca da suscitada ilegalidade e inconstitucionalidade do art. 1.845 do CPC.

Prima facie, impende destacar que não se vislumbra, na hipótese vertente, a ocorrência da suscitada ofensa ao art. 535 do Código de Processo Civil.

Consigne-se que muito embora rejeitando os embargos de declaração opostos pelo ora agravante, o acórdão recorrido examinou, motivadamente, todas as questões pertinentes ao desfecho da lide.

Assim, no tocante à alegada violação do disposto no artigo 535, II, do CPC, o especial não merece provimento, pois a Corte a quo analisou, de forma clara e fundamentada, todas as questões pertinentes ao julgamento da causa, consoante se infere do inteiro teor do aresto ora hostilizado.

O dissídio jurisprudencial suscitado encontra-se configurado, bem como encontra-se implicitamente prequestionada a matéria federal inserta nos dispositivos legais apontados pelo ora recorrente como malferidos, o que, somado ao preenchimento dos demais pressupostos de admissibilidade recursal, impõe o conhecimento do presente recurso especial .

A despeito de ter sido, a questão posta nos autos, analisada pela Corte de origem, quando do julgamento do AI n.º 2007.002.08178-RJ, sob a ótica constitucional, não há óbice a que seja dirimida a controvérsia, nesta Corte Superior à luz da legislação infraconstitucional aplicável à hipótese, máxime por demandar o feito, in casu, acurada análise de regras de direito intertemporal aplicáveis à espécie em decorrência da entrada em vigor do novo Código Civil.

Posto isso, cumpre esclarecer que a controvérsia se resume a saber se, o testamento lavrado antes da entrada em vigor por pessoa casada em regime de total separação convencional de bens, firmado em decorrência de pacto antenupcial também celebrado na vigência do código revogado, configura-se em ato jurídico perfeito, impondo respeito às disposições de última vontade do testador que vem a falecer quando da vigência do novel diploma legal.

O testador, como já dito, antes da entrada em vigor do novo Código Civil, nomeou como herdeiro único da totalidade de seus bens, um sobrinho seu, ante a inexistência de descendentes e ao pré-falecimento de seus ascendentes.

Ocorre que, após o falecimento do testador, bem como de sua esposa, que ocorreu quatro meses após o óbito do primeiro, habilitaram-se os sobrinhos desta última, pretendendo, assim, resguardar a legítima que entendem lhes ser de direito, vez que a novel legislação civil passou a assegurar ao cônjuge supérstite condição de herdeiro necessário.

Antes de mais nada, impõe-se firmar a premissa de que tanto o pacto antenupcial firmado pelos nubentes, PAULO E MERCEDES, como o testamento lavrado por este último, como atos jurídicos perfeitos e acabados que o são, não podem ficar a mercê das alterações legislativas futuras, e isto até sem ser necessário invocar-se a máxima “tempus regit actum”.

Não se nega, todavia, que a alteração engendrada na norma civil, alçando o cônjuge supérstite à condição de herdeiro necessário, tem justamente o escopo de protege-lo nas hipóteses em que desprovido o mesmo do percebimento de eventual meação advinda do regime matrimonial adotado.

In casu, porém, a questão que se põe vai além da proteção conferida pelo legislador ao cônjuge sobrevivente.

Consoante se infere dos autos, MERCEDES, após o falecimento de seu esposo, optou por não habilitar-se no inventário dos bens do mesmo, respeitando, assim, último ato de vontade deste, inserto no testamento que lavrara no ano de 2001. A proteção legal que lhe era conferida pela lei nova foi, assim, por ato de vontade da própria MERCEDES, posto em segundo plano sponte propria, tendo optado a mesma por honrar não só os atos jurídicos perfeitos consubstanciados no pacto antenupcial e no testamento, já mencionados, como por fazer valer a vontade última de seu falecido cônjuge.

Oportuno ressaltar que, a despeito das modernas alterações promovidas pelo Código Civil vigente, em especial no que concerne ao direito sucessório, a livre disposição dos bens, tanto no novel diploma quanto naquele revogado, sempre foi direito assegurado aos casados em regime de separação total de bens, sendo descabido pretender que não pudesse um deles, dispor em testamento da integralidade dos mesmos na vigência de norma que, da forma como estabelecia, não lhe impunha a preservação da legítima, vez que inexistentes naquele momento herdeiros necessários.

É justamente esta a inteligência dos arts. 1.647, 1.687 e 2.039 do Código Civil vigente, apontados pelo recorrente como malferidos, verbis:

“Art. 1647. Ressalvado o disposto no art. 1.648, nenhum dos cônjuges pode, sem anuência do outro, exceto no regime de separação absoluta:

I – alienar ou gravar de ônus real os bens imóveis;”

“Art. 1687. Estipulada a separação de bens, estes permanecerão sob a administração exclusiva de cada um dos cônjuges, que os poderá livremente alienar ou gravar de ônus real.”

“Art. 2039. O regime de bens nos casamentos celebrados na vigência do Código Civil anterior, Lei n.º 3.071, de 1.º de janeiro de 1916, é o por ele estabelecido.”

Assim, in casu, não há invocar-se que em direito sucessório, a lei vigente à época do falecimento, por força do disposto no art. 1.787 do Código Civil, impondo-se, em homenagem ao disposto no art. 6.º, §§ 1.º e 2.º, da LICC e em harmonia com outras disposições pertinentes do Código Civil, tanto o de 1916, quanto o atual, (verbi gratia, art. 276 do Código Beviláqua e arts. 1.647, 1687 e 2.039 do Código Civil atual), que assegura respeito ao ato jurídico perfeito, devem ser mantidas hígidas as disposições de última vontade do testador, mesmo porque estas, corroboradas pela ação em vida da cônjuge sobrevivente, cumprem não só o desejo do próprio casal, como estão em consonância com o espírito da norma que estendeu proteção sucessória a pessoa do cônjuge (Código Civil de 2002, art. 1845).

Ex positis, DOU PROVIMENTO ao presente recurso especial, para restabelecer a decisão do juízo singular, que indeferiu o pedido de habilitação do espólio de MERCEDES MAGDALENA SERRADOR MARTINS no inventário de PAULO MARTINS FILHO.

É como voto.

VOTO-VISTA

O EXMO. SR. MINISTRO JOÃO OTÁVIO DE NORONHA:

A controvérsia constante dos autos decorre dos seguintes fatos:

Paulo Martins Filho, no ano de 1950, casou-se com Mercedes Magdalena Serrador Martins em regime de separação de bens. Do casamento não tiveram filhos.

Em 26 de maio de 2004, aos noventa anos de idade, Paulo faleceu, deixando testamento no qual beneficiou seu sobrinho Aloysio Maria Teixeira Filho, aquinhoando-o com todos os seus bens. Ocorreu que, quatro meses depois, Mercedes também faleceu, e seus bens foram inventariados e partilhados entre 11 sobrinhos, filhos de irmãos já falecidos.

Porém, tais sobrinhos resolveram habilitar-se no espólio de Paulo Martins, sustentando a seguinte tese: Paulo Martins faleceu na vigência do novo Código Civil, que elevou o cônjuge supérstite à categoria de herdeiro necessário. Assim, Mercedes era sua herdeira e, como faleceu depois, entendem que, sendo herdeiros de Mercedes, têm direito à parte da herança de Paulo, tida por legítima.

A habilitação foi julgada improcedente no primeiro grau, mas essa decisão foi reformada pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro com base na interpretação que conferiu aos artigos 2.041 e 2.042 do Código Civil de 2002.

Aviado recurso especial, o Ministro Relator, Carlos Fernando Mathias, deu-lhe provimento, mantendo o ato de vontade perpetrado entre os cônjuges, qual seja: de manter seus patrimônios dissociados nada obstante a nova regra do Código.

Concluiu o i. Relator:

“Consoante se infere dos autos, MERCEDES, após o falecimento de seu esposo, optou por não habilitar-se no inventário dos bens do mesmo, respeitando, assim, último ato de vontade deste, inserto no testamento que lavrara no ano de 2001. A proteção legal que lhe era conferida pela lei nova foi, assim, por ato de vontade da própria MERCEDES, posto em segundo plano sponte própria, tendo optado a mesma por honrar não só os atos jurídicos perfeitos consubstanciados no pacto antenupcial e no testamento, já mencionados, como por fazer valer a vontade última de seu falecido cônjuge.”

Pedi vista dos autos para melhor análise e entendo que o acórdão recorrido deve ser mantido.

I

É certo que o casamento de que os autos tratam ocorreu em 1950, na vigência, portanto, do Código Civil de 1916, segundo o qual o cônjuge era apenas meeiro, observadas as disposições relativas ao pacto-antenupcial, cujos termos não encontravam limites (art. 256), exceto nas hipóteses em que era obrigatória a separação de bens. In casu, o regime adotado foi o de separação de bens, sendo que o Sr. Paulo optou por deixar os seus ao sobrinho Aloysio.

Ocorre que faleceu quando já vigia o novo Código Civil, de modo que sua esposa sobrevivente, Mercedes, foi elevada à categoria de herdeira necessária.

Então, a questão que se propõe a ser resolvida assenta-se em estabelecer se o ato de disposição de vontade pelos cônjuges – casamento com separação total de bens – , culminado com o ato de última vontade manifestado pelo Sr. Paulo – testamento deixando seus bens ao sobrinho Aloysio –, prevalece em face das novas regras estabelecidas no Código Civil atualmente em vigor e se há vulneração do ato jurídico perfeito.

Entendo que não e, nesse sentido, penso que está correto o acórdão recorrido, data vênia do entendimento do Ministro Relator.

O Código Civil de 2002 foi específico ao estabelecer as regras de direito intertemporal acerca do assunto, dispondo no seu artigo 2.041:

Art. 2.041. As disposições deste Código relativas à ordem da vocação hereditária (arts. 1.829 a 1.844) não se aplicam à sucessão aberta antes de sua vigência, prevalecendo o disposto na lei anterior.

Conclui-se que à sucessão aberta antes de 11 de janeiro de 2003 aplicam-se as disposições do código anterior à ordem da vocação hereditária.

In casu, como aferido no acórdão recorrido, “Paulo faleceu aos 26.05.2004 (fls. 35); Mercedes, aos 05.09.2004 (fls. 49). É certo, portanto, que a sucessão foi aberta na vigência do novo Código Civil” (fl. 633).

Pois bem, o cônjuge, na vigência do Código de 1916, observando o artigo 1.603 e incisos, era herdeiro legítimo; regra essa que foi mantida no atual código, conforme o disposto no artigo 1.829 e incisos:

“Art. 1.829. A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte:

I – aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo se casado este com o falecido no regime da comunhão universal, ou no da separação obrigatória de bens (art. 1.640, parágrafo único); ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares;

II – aos ascendentes, em concorrência com o cônjuge;

III – ao cônjuge sobrevivente;

IV – aos colaterais.”

A inovação trazida pelo código atual está em que o cônjuge supérstite foi elevado à categoria de herdeiro necessário conforme expressamente previsto no artigo 1.845 (que não encontra dispositivo similar no Código revogado). Observe-se:

Art. 1.845. São herdeiros necessários os descendentes, os ascendentes e o cônjuge.

Nesse ponto, o Ministro relator bem referiu que a alteração engendrada na norma civil, alçando o cônjuge supérstite à condição de herdeiro necessário, teve o escopo de protegê-lo. Os autores são unânimes nesse sentido; confira-se Eduardo de Oliveira Leite; in Comentários ao Novo Código Civil, vol. XXI, 3ª edição, pág. 217:

“A inovação só se justifica pela irresistível intenção de favorecer o cônjuge sobrevivente, partícipe inconteste da comunhão de vida e de interesses que caracterizam a sociedade conjugal e que, certamente, não desaparece com a dissolução do casamento.”

Todavia, a lei fez algumas ressalvas no que concerne à concorrência do cônjuge sobrevivente com os descendentes do de cujus, estabelecendo que não há concorrência, não herdando o cônjuge se: (a) o regime de bens era o de comunhão universal; (b) se de separação obrigatória; e (c) se, no regime de comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares.

Isso se explica porque, na primeira e na última hipóteses, o cônjuge é meeiro do total de bens deixado pelo de cujos, já estando devidamente amparado; e, na segunda hipótese, porque é a vontade da lei que fixa que, em determinados casos, não pode haver nenhum tipo de comunhão de bens, mesmo que queiram os nubentes.

Conclui-se daí que o legislador trouxe para as disposições sucessórias algumas regras atinentes ao regime de bens do casamento, instituto este pertencente ao direito de família, extraindo-se dele que: bens particulares constitui o patrimônio pessoal de cada um dos cônjuges, são bens que cada um possui antes do casamento; já os bens comuns são os que passam a pertencer a ambos os cônjuges em razão do regime de casamento.

Importa destacar que, se a lei fez algumas ressalvas quanto ao direito de herdar em razão do regime de casamento ser o de comunhão universal ou parcial, ou de separação obrigatória, não fez nenhuma quando o regime escolhido for o de separação de bens não obrigatório, de forma que, nessa hipótese, o cônjuge concorre com os descendentes e ascendentes, até porque o cônjuge casado sob tal regime, bem como sob comunhão parcial na qual não haja bens comuns, é exatamente aquele que a lei buscou proteger, pois, em tese, ele ficaria sem quaisquer bens, sem amparo, já que, segundo a regra anterior, além de não herdar, (em razão da presença de descendentes) ainda não haveria bens a partilhar.

In casu, não há nenhum tipo de ressalva que tirasse de Mercedes a possibilidade de herdar. Tinha ela, ao tempo da morte de seu esposo, legitimidade e capacidade de herdar – a lei civil foi alterada conferindo-lhe a posição de herdeira necessária; o casal não deixou descendentes; não tinha seu falecido esposo ascendentes. Assim, em que pese o regime de casamento escolhido por eles ser o de separação de bens, Mercedes, cônjuge supérstite, herda – no que toca à legítima – sem nenhuma concorrência.

Assim, não tenho dúvida alguma de que Mercedes, por ter falecido após seu marido que não deixou descendentes, passou à categoria de herdeira necessária, mesmo diante do pacto antenupcial de regime de separação de bens.

II

Todavia, o caso envolve uma particularidade: o Sr. Paulo deixou testamento beneficiando sobrinho com todos os seus bens; portanto, é a sucessão testamentária que está sendo contestada.

Cabe observar que, em princípio, pode-se dispor por testamento da totalidade ou de parte dos bens para depois da morte, isso se o testador não tiver herdeiros necessários: quais sejam: descendentes, ascendentes e cônjuge.

De fato, o testador, Sr. Paulo, não tinha herdeiros necessários segundo a regra do código revogado, pelo que dispôs livremente da totalidade de seus bens. Todavia, quando a sucessão foi aberta, vigia nova regra e ele passou a ter uma herdeira, sua esposa, a quem precisaria ter deixado parte correspondente a metade da herança, que é a parte indisponível.

Nada obstante essa modificação legislativa ter-se operado depois do casamento, bem como da lavratura do testamento, não há por que falar em violação de ato jurídico perfeito ou de direito adquirido, pois as disposições do novo código projetam-se nos testamentos feitos antes da sua vigência, uma vez que a lei que regula a sucessão e a legitimação para suceder é a vigente ao tempo da abertura da sucessão. Isso não só pela regra acima indicada, constante do disposto no art. 2.041, como pelo disposto no artigo 1.787, assim exarado:

“Art. 1.787. Regula a sucessão e a legitimação para suceder a lei vigente ao tempo da abertura daquela.”

Eduardo de Oliveira Leite, na obra citada acima, pág. 30, comentando o dispositivo, elucida:

“O elemento temporal produz efeitos distintos, quer se trate da sucessão legítima, quer da testamentária.

Com relação à sucessão legítima, a incidência do princípio não abre espaço a qualquer exegese mais favorável: a lei do tempo da abertura da sucessão é que regula todas as questões pertinentes à herança do de cujus (salvo, evidentemente, a ocorrência de alguma condição, materializando-se a capacidade para suceder, no momento em que esta se verifica).”

Trata-se de princípio antigo, que constava do Código Civil do 1916, no artigo 1.577, cuja redação era a seguinte:

Art. 1.577. A capacidade para suceder é a do tempo da abertura da sucessão, que se regulará conforme a lei então em vigor.

A capacidade é determinada pela lei; assim, é a lei que vigora no tempo da abertura da sucessão que deve regulá-la.

Darcy Arruda Miranda, ao comentar o artigo acima revogado, indica (Anotações ao Código Civil Brasileiro, 3º volume, 1986, pág. 616):

“11. A capacidade para suceder é a do tempo da abertura da sucessão, ou seja, do momento em que o autor da herança vem a falecer, regulando-se essa abertura conforme a lei então em vigor (art. 1.577). Assim se o herdeiro instituído à época em que foi feito o testamento era capaz, mas veio a tornar-se incapaz ao tempo da sucessão, não sucede; porém, se era incapaz ao ser lavrado o testamento e veio a se tornar capaz por ocasião da abertura da sucessão, sucede” (destaquei).

O final da citação acima, que destaquei, corresponde exatamente à hipótese versada nos presentes autos, pois a Sra. Mercedes, ao tempo em que feito o testamento era herdeira apenas legítima; contudo, passou a ser herdeira necessária em conformidade com as disposições do novo Código Civil, sendo esta a lei vigente ao tempo da abertura da sucessão.

Os autores atuais, ao elaborarem seus comentários sobre as questões sucessórias, não discrepam da doutrina antiga. Observa-se, por exemplo, que Paulo Nader, sobre a capacidade sucessória, escreve:

“Quanto aos testamentos, estes devem atender aos requisitos formais da lei vigente na data de sua feitura, mas a capacidade para suceder corresponderá à prevista em lei quando da abertura da sucessão, como estabelece o art. 1.787 do Código Civil” (in Curso de Direito Civil – Direito das Sucessões, 2ª edição, págs. 31).

Essa é uma regra básica e antiga que não sofreu quaisquer alterações desde antes do Código Civil de 1916 até a atualidade, não existindo polêmicas acerca da questão que a envolve. Inclusive, em pesquisa de jurisprudência no Supremo Tribunal Federal, encontram-se precedentes acerca do assunto desde a década de cinqüenta do século passado. Veja-se:

“A CAPACIDADE PARA SUCEDER É A DO TEMPO DE ABERTURAS DA SUCESSÃO” (RE 26.402, Ministro Afrânio Costa, ADJ, 30.08.1956).

“A CAPACIDADE PARA SUCEDER É A DO TEMPO DA ABERTURA DA SUCESSÃO (CÓDIGO CIVIL, ART. 1.577). AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO” (AI-AgR 45.275, Ministro Amaral Santos, DJ 30.05.1969).

“LEI 883⁄1949 (ART. 2) – ART. 1577 DO CÓDIGO CIVIL. A CAPACIDADE PARA SUCEDER AFERE-SE QUANDO DA ABERTURA DA SUCESSÃO: NO CASO, A VERIFICAÇÃO DA CONDIÇÃO DE FILHOS, PARA FINS DE HERANÇA, OBEDECE AOS TERMOS DA LEI 883⁄1949, ART. 2, VIGENTE NA ÉPOCA DA ABERTURA DA SUCESSÃO. A SENTENÇA QUE DECLARA ESSA CONDIÇÃO OPERA ‘EX TUNC’ E NÃO ‘EX NUNC’. RECURSO EXTRAORDINÁRIO CONHECIDO E PROVIDO” (RE 103.535, Ministro Oscar Corrêa, DJ 01.02.1985).

Portanto, prevalece a regra de que a capacidade para suceder é a do tempo da abertura da sucessão.

III

O recorrente sustenta a tese de que houve ferimento ao ato jurídico perfeito e ao direito adquirido, porquanto afirma que o pacto antenupcial e o testamento representam ato de vontade dos nubentes e que isso deveria ser respeitado.

Ocorre que não há por que falar em direito adquirido na presença de uma expectativa de direito, como o de suceder.

O autor citado acima, Paulo Nader, explica:

“Direito adquirido não se confunde com expectativa de direito. Aquele é situação jurídica resguardada pela ordem jurídica, enquanto esta outra figura revela apenas probabilidade de aquisição de direito. Expectativa é apenas o direito em potência, pois depende de algum acontecimento futuro e incerto. É a situação jurídica de alguém que, mantidas as condições existentes, poderá adquirir um direito, como no caso de herança” (obra citada, vol. I, pág. 122).

Continua o autor já se referindo ao conflito de leis sucessórias no tempo:

“As regras aplicáveis à sucessão ab intestato são as vigentes à época em que se verificou a morte do titular do patrimônio. Este fato natural constitui a causa determinante da sucessão. Como se destacou anteriormente, sem o evento morte inexiste direito subjetivo à sucessão, apenas expectativa de direito, restando assim inconcebível a aplicação de lei revogada antes do falecimento. Deste modo, Túlio poderia estar beneficiado, de longa data, com a vocação hereditária prevista na lei ‘A’, todavia, se na data da morte do causante, encontrava-se em vigor a lei ‘B’, que lhe era menos favorável, não terá argumentos jurídicos para pleitear a aplicação da lei ‘A’, pois a sua situação jurídica não se encontrava protegida em qualquer hipótese do art. 5º, inciso XXXVI, da Constituição Federal (direito adquirido, ato jurídico perfeito ou coisa julgada). E como se sabe e o próprio Code Napoleon proclama: ‘La loi ne dispose que pour l’avenir; elle n’a point d’effet rétroactif’ (art. 2º)

Aplicando-se o que foi dito à codificação brasileira, tem-se que o óbito havido durante a vigência do Código Beviláqua, por ele a sucessão se orientará; o ocorrido a partir da vigência do Código Reale, a sucessão correspondente será por ele regulada. A capacidade para suceder deve ser aferida no momento da abertura da sucessão, ou seja, no momento em que a morte se verificou” (obra citada, vol. 6, pág. 31).

Portanto, Aloysio Maria Teixeira, herdeiro testamentário, até a morte de testador, tinha apenas uma expectativa de direito de titularidade sobre o patrimônio de seu tio; isso porque, ao tempo em que feito o testamento (apenas para citar duas hipóteses), dependia da morte do testador e da lei vigente à época do óbito.

Contudo, o testador veio a falecer em 26 de maio de 2004, quando já vigiam as regras do novo Código Civil, que incluiu o cônjuge supérstite na condição de herdeiro necessário.

Dessume-se disso tudo que a habilitação do espólio da herdeira necessária no espólio de Paulo Martins não fere nenhum direito adquirido de Aloysio, uma vez que esse não existia.

No que tange ao ato jurídico perfeito, defendido pelo recorrente quanto ao pacto antenupcial e ao testamento, a mesma condição se verifica.

O pacto antenupcial não está sendo questionado. Trata-se de instituto afeto ao direito de família, e não ao de sucessões. Pelo que consta dos autos, foi respeitado integralmente pelos cônjuges, que nada acerca dele demandaram. É, realmente, negócio jurídico perfeito, até porque é instituto abraçado pelo atual Código Civil e nenhuma disposição dele está sendo questionada sob a vertente do direito intertemporal.

Já no que diz respeito ao testamento, há de se observar que nada foi contestado sob o aspecto formal. Quanto ao aspecto material, como afirmado acima, deve-se considerar que é ato de manifestação da vontade sem efeito imediato, ou seja, ele somente produzirá efeitos após a morte do testador; portanto, não é ato alcançado pelo princípio da irretroatividade da lei.

Por outro lado, deve-se considerar que, no tempo em que o testamento foi realizado, em 2001, vigia o Código Civil de 1916, que abraçava, como citado em linhas precedentes, o princípio segundo o qual as regras aplicáveis à sucessão são as vigentes à época em que se verifica a morte do titular do patrimônio, exatamente como previsto no código atual.

Assim, o testador deveria saber que a prevalência de sua vontade dependeria de que a lei vigente não fosse alterada.

Carlos Maximiliano, comenta o seguinte:

“ No Brasil, como em todos os países cultos, em regra é respeitada a autonomia da vontade; a lei dispõe somente para os casos não previstos pelos indivíduos, não resolvidos por êstes em atos jurídicos válidos. Há, entretanto, um conjunto de idéias – sociais, políticas, econômicas, morais e até religiosas a cuja conservação a sociedade crê ligada a própria existência. Êsses princípios fundamentais, orgânicos, iniludíveis se sobrepõem às diliberações dos particulares; denominam-se de ordem pública.

Acima da vontade dos indivíduos está o interêsse social; e ‘leis de ordem pública são aquelas que interessam mais diretamente à sociedade que aos particulares’ (definição de Portalis); ‘as que, em um Estado, estabelecem os princípios cuja manutenção se considera indispensável à organização da vida social, segundo os preceitos do Direito’ (no conceito de Clóvis Bevilaqua)” (in Direitos das Sucessões, 1952, págs. 47⁄48).

Sendo essa a regra mantida no atual Código Civil e tendo o ato de disposição de vontade sido efetuado quando também ela vigia, não há por que falar em violação do ato jurídico perfeito.

Assim, apesar da indignação compreensível do legatário, Aloysio Maria Teixeira Filho, certo que a legítima, por disposição da lei, é do espólio de Mercedes Magdalena Serrador Martins.

IV

O Ministro Relator referiu-se a que, após o falecimento do Sr. Paulo, sua esposa Mercedes optou por não habilitar-se no inventário de seus bens, afirmando:

“A proteção legal que lhe era conferida pela lei nova foi, assim, por ato de vontade da própria MERCEDES, posto em segundo plano sponte propia, tendo optado a mesma por honrar não só os atos jurídicos perfeitos consubstanciados no pacto antenupcial e no testamento, já mencionados, como por fazer valer a vontade última de seu falecido cônjuge.”

Com toda vênia, não corroboro esse entendimento.

O inventário de Paulo foi aberto pelo testamenteiro, Luis Eduardo Tenório, quando o prazo do artigo 983 estava se esgotando. Justificou-se que tanto o cônjuge supérstite, como o legatório, Aloysio, estavam impossibilitados de o fazerem; este porque estava fora da cidade do Rio de Janeiro, e aquela, porque muito idosa, estava sob cuidados médicos. Observe-se:

“Ocorre que o cônjuge supérstite – D.MERCEDES, senhora com 90 (noventa) anos de idade (nascida em 17⁄11⁄1914), encontra-se profundamente abalada com a morte de seu esposo e sob cuidados médicos em sua residência” (fl. 31).

A presunção de que tal fato era verdadeiro decorre de que, menos de quatro meses depois, a Sra. Mercedes também veio a falecer.

Ora, é de se presumir que uma senhora com mais de noventa anos, debilitada e necessitada de cuidados médicos, e ainda sentido a perda do marido, com quem fora casada por mais de cinquenta anos, não iria se ocupar com habilitação em inventário nenhum. Ademais, não tinha filhos, nem netos, e, portanto, ninguém que pudesse cuidar de seus interesses, já que impossibilitada de fazê-lo por ela mesma.

Os seus sobrinhos, por certo, não iriam cuidar disso, pois se ela viesse a renunciar à herança, não teriam nada a pleitear dos bens de seu falecido esposo, como estão a fazer no presente momento.

Pelo quadro que se apresentava à época, não seria demais concluir que a Sra. Mercedes desconhecesse que deveria renunciar à herança para que o ato de última vontade de seu falecido esposo pudesse ser acatado. Penso que seria preciso abnegação, retidão e um senso de justiça incomum atualmente para que qualquer um de seus sobrinhos tomasse a iniciativa de fazer respeitar o ato de vontade dos esposos, propondo à sua tia que renunciasse ou indicando-lhe essa possibilidade.

Ante este quadro, não creio que se possa falar em renúncia sponte propria.

De qualquer forma, o fato é que renúncia não houve, e a legislação estabelece que ela deve ser feita expressamente por escritura pública ou termo judicial. Observe-se:

Art. 1.806. A renúncia da herança deve constar expressamente de instrumento público ou termo judicial.

Confiram-se comentários de Carlos Roberto Gonçalves:

“Dispõe o art. 1.806 do Código Civil que ‘a renúncia da herança deve constar expressamente de instrumento público ou termo judicial’. Não pode ser tácida, portanto, como sucede com a aceitação. Também não se presume, não podendo ser inferida de simples conjecturas. Tem de resultar de ato positivo e só pode ter lugar mediante escritura pública que traduza uma declaração de vontade, ou termo judicial. Este é lavrado nos autos do inventário e aquela é simplesmente juntada” (in Direito Civil Brasileiro, 3ª edição, pág. 82).

Não se pode, portanto, concluir que a Sra Mercedes tenha renunciado, pois não só não poderia fazê-lo tacitamente, como não há nada que indique ter sido a vontade dela.

V

Vê-se, portanto, que:

a) segundo disposições do Código Civil de 2002, o cônjuge supérstite é herdeiro necessário;

b) a capacidade para suceder corresponde à lei em vigor quando da abertura da sucessão;

c) inexiste direito adquirido de herdar enquanto vivo o autor do patrimônio a ser partilhado;

d) não houve renúncia à herança pela Sr. Mercedes.

Com base em todo o exposto, e pedindo vênia ao ilustre Relator, não conheço do recurso especial.

É como voto.

VOTO-VISTA

O SR. MINISTRO LUIS FELIPE SALOMÃO:

1. A questão submetida a julgamento é a seguinte:

– Paulo Martins Filho casou-se com Mercedes Magdalena Serrador Martins segundo o regime de separação de bens acordado em pacto antenupcial celebrado em 19 de maio de 1950 e lavrado no 23º Cartório da Cidade do Rio de Janeiro;

– Em 26 de maio de 2001, Paulo Martins Filho lavrou testamento público deixando a totalidade de seus bens para seu sobrinho Aloysio Maria Teixeira Filho, vindo a falecer em 26 de maio de 2004;

– Quatro meses após, dia 5 de setembro de 2004, morreu a sua esposa Mercedes Magdalena Serrador Martins;

– Foi requerida a abertura da sucessão do varão. Em 04 de agosto de 2004 foi prolatada decisão determinando a execução do seu testamento;

– Por sua vez, a sucessão de Maria Magdalena Serrador Martins foi aberta, habilitando-se como herdeiros onze sobrinhos e sobrinhas;

– Como a morte de Paulo Martins Filho ocorreu na vigência do Novo Código Civil, os sobrinhos de Mercedes Magdalena apresentaram pedido de habilitação no espólio de Paulo Martins, sob o argumento de que, nos termos do artigo 1.845 do Novo Código Civil, o cônjuge supérstite erigiu-se à categoria de herdeiro necessário, de forma que, sendo herdeiros de Mercedes Magdalena, têm direito à parte da legítima que lhe caberia.

O pedido de habilitação foi negado.

Interposto agravo de instrumento, o TJRJ proferiu acórdão do seguinte teor:

AGRAVO DE INSTRUMENTO. Inventário. Habilitação do espólio do cônjuge-virago no inventário dos bens do cônjuge varão pré-morto, tendo sido casados sob o regime de separação total e tendo o varão lavrado testamento, destinando todo o seu patrimônio a um sobrinho. Casamento e testamento anteriores ao Código Civil de 2002; óbitos em 2004. Conflito intertemporal de norma: segundo o CC⁄16, a mulher nada herdaria em face do testamentário; sob o CC⁄02, o cônjuge sobrevivente é equiparado a herdeiro necessário, fazendo jus à meação. Prevalência do regime da lei nova. Lição de Carlos Maximiliano. Provimento do recurso. (fl. 603⁄apenso).

Irresignado, o Espólio de Paulo Martins interpôs recurso especial sustentando, em suma, a inadmissibilidade do agravo de instrumento e violação ao artigo 6º, §§ 1º e 2º da LICC, além de incompatibilidade entre os artigos 1.845 e 1.647 e 1.687 do mesmo diploma legal.

O eminente Ministro Relator Carlos Fernando Mathias deu provimento ao recurso especial por entender feridos os atos jurídicos perfeitos consubstanciados no pacto antenupcial firmado entre os cônjuges e no testamento lavrado pelo varão, ambos na vigência do Código Civil de 1916.

Pediu vista o ilustre Ministro João Otávio de Noronha e proferiu voto divergente para negar provimento ao apelo nobre, amparado nas seguintes premissas:

a) segundo disposições do Código Civil de 2002, o cônjuge supérstite é herdeiro necessário;

b) a capacidade para suceder corresponde à lei em vigor quando da abertura da sucessão;

c) inexiste direito adquirido de herdar enquanto vivo o autor do patrimônio a ser partilhado;

d) não houve renúncia à herança pela Sra. Mercedes.

Estabelece o voto divergente que não foram atingidos os atos jurídicos seja quanto ao pacto antenupcial, seja quanto ao testamento.

O pacto antenupcial porque “é instituto abraçado pelo atual Código Civil e nenhuma disposição dele está sendo questionada sob a vertente do direito intertemporal”. O testamento, porque “nada foi contestado sob o aspecto formal” e, quanto ao aspecto material, “deve-se considerar que é ato de manifestação da vontade sem efeito imediato, ou seja, ele somente produzirá efeitos após a morte do testador” não sendo assim “alcançado pelo princípio da irretroatividade”.

Pedi vista dos autos. Passo a votar.

2. A questão que se põe é: se o pacto antenupcial é celebrado para dispor acerca do regime de bens no casamento e o testamento foi lavrado considerando esse acordo, como dizer que não houve violação ao ato jurídico perfeito, se não cumpridas as disposições de última vontade estabelecidas nesse testamento?

Quando elaborou o testamento, em maio de 2001, o regime de bens do casamento era o da separação total de bens, e a opção do falecido foi a de deixar todos os bens para o sobrinho, à míngua de herdeiros necessários.

Todavia, sobreveio o Novo Código Civil e inseriu o cônjuge como herdeiro necessário (art. 1.845).

É preciso, portanto, estabelecer interpretação do art. 2.042, do NCC em harmonia com o que dispõe os arts. 6º, § 1º, LICC e 2.039, do NCC, todos abaixo transcritos, observadas as peculiaridades do caso concreto.

Assim dispõem os referidos dispositivos:

Art. 2.042. Aplica-se o disposto no caput do art. 1.848, quando aberta a sucessão no prazo de um ano após a entrada em vigor deste Código, ainda que o testamento tenha sido feito na vigência do anterior, Lei n.º 3.071, de 1º de janeiro de 1916; se, no prazo, o testador não aditar o testamento para declarar a justa causa de cláusula aposta à legítima, não subsistirá a restrição.

Art. 6°. A lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada.

§ 1°. Reputa-se ato jurídico perfeito o já consumado segundo a lei vigente ao tempo em que se efetuou.

Art. 2.039. O regime de bens nos casamentos celebrados na vigência do Código Civil anterior, Lei nº 3.071, de 1º de janeiro de 1916, é o por ele estabelecido.

Comento.

Embora para alguns o testamento celebrado na vigência do sistema anterior configure ato jurídico perfeito que não poderia ser atingido por lei posterior, a maior parte dos doutrinadores entende que, ainda que ato jurídico perfeito, os seus efeitos somente serão produzidos após a abertura da sucessão.

Porém, no caso é impossível dissociar o pacto antenupcial e o testamento, de modo que os atos jurídicos perfeitos e acabados devem ser respeitados, sob pena de se gerar uma situação de insegurança jurídica e de se ferir o princípio da autonomia da vontade, na medida em que lhes é assegurada a liberdade em contratar.

Não é possível que o advento de uma nova lei possa deixar ao desamparo aqueles que, de boa fé, concretizaram negócios e exteriorizaram manifestações de vontade em observância estrita à lei vigente à época.

Assim, há que se levar em consideração o pacto antenupcial firmado ainda na vigência da lei anterior e as conseqüências dele advindas.

Nesse particular, o parecer ofertado pelo jurista Nilton Mondego de Carvalho em consulta feita pelo recorrente:

CLÓVIS BEVILÁCQUA discorrendo, com a sua inegável autoridade, sobre o tema, ressaltava que:

A irrevogabilidade do regime que o Código estatui no final do art. 230, funda-se em duas razões: o interesse dos cônjuges e o de terceiros. O interesse dos cônjuges, porque depois de casados, um poderia abusar da fraqueza do outro e obter modificações em seu proveito exclusivo. O interesse de terceiros, porque os cônjuges poderiam combinar-se, e, por um determinado regime, subtrair bens à ação de credores que com eles tivessem contata o no momento de contratar. A estabilidade do regime é uma expressão de boa fé e uma garantia para os que tratam com os cônjuges. Além dessas razões de ordem prática há uma outra de lógica jurídica. O casamento é um contrato pessoal e perpétuo. O regime de bens durante ele deve ser estável, inalterável para corresponder à perpetuidade e imutabilidade das relações pessoais enquanto perdura a sociedade conjugal’ (COMENTÁRIOS AO CÓDIGO CIVIL, vol. II, pág. 105)

No tocante ao objeto da consulta, tem-se que os interessados, por meio de escritura pública do PACTO ANTENUPCIAL DE SEPARAÇÃO DE BENS, estabeleceram esse regime, ficando claro, nesse instrumento, que todos os bens, presentes e futuros pertenceriam aos respectivos titulares e seriam incomunicáveis bem como os rendimentos deles, em razão do que poderiam eles dispor livremente de tais bens e rendimentos sem intervenção do outro, como bem lhes aprouvesse, tendo ambos, ao que parece, vultoso patrimônio.

ORLANDO GOMES, referindo-se ao regime de separação de bens, ensinava que:

O regime da separação de bens caracteriza-se pela incomunicabilidade dos bens presentes e futuros dos cônjuges. Os patrimônios permanecem separados quanto à propriedade dos bens que os constituem, sua administração e gozo, assim como as dívidas passivas. Provém de duas fontes: a convenção e a lei.

Algumas legislações têm-no como REGIME LEGAL, mas, entre nós, é, de regra, facultativo. Necessário que os nubentes o instituam mediante PACTO ANTENUPCIAL. Em certas condições, porém, a lei impõe. Diz-se que, nesse caso, é obrigatório, por ser exigido como sanção, ou por motivos de ordem pública (obra citada, pág. 193, n.º 121).

WASHINGTON DE BARROS MONTEIRO, no que tange a esse aspecto, observava, na obra acima citada, na página 143, que o Código Civil Brasileiro facultava aos nubentes a escolha de qualquer dos regimes por ele admitidos, exceto as hipóteses do art. 258, parágrafo único, do mesmo Código (1916), em que o da separação de bens seria compulsório, com predominância do princípio da autonomia da vontade.

Repisando esse entendimento, esclarecia ele, ainda, que:

Nessa matéria, insista-se, movimentam-se as partes com a maior liberdade, discricionariamente mesmo.

Gozam eles de ampla autonomia, dispondo como lhes convenha, a respeito de suas mútuas relações econômicas. (obra citada, p. 144).

Referindo-se ao regime da separação de bens, e, conceituando-o, põe em relevo que:

Eis o regime em que cada cônjuge conserva exclusivamente para si os bens que possuía quando casou, sendo também incomunicáveis, os bens que cada um deles veio a adquirir na constância do casamento. Como adverte CLÓVIS, o que caracteriza esse regime é a completa separação do patrimônio dos dois cônjuges, nenhuma comunicação se estabelecendo entre as duas massas, ou dois acervos. A cada um o que é seu, aí está a fórmula individualista, que bem sintetiza o aludido regime matrimonial. (obra citada, pág. 172).

Resulta daí que o PACTO ANTENUPCIAL que foi estabelecido entre PAULO MARTINS (tio do consulente) e MERCEDES MAGDALENA SERRADOR, referido na consulta, constitui ATO JURÍDICO PERFEITO (e por isso é inegável) sob pena de evidente contrariedade ao disposto no § 1º, do art. 6º da Lei de Introdução ao Código Civil (…).

Em tendo sido fixado, naquele instrumento, o regime de separação de bens, em estrita observância ao referido princípio da autonomia da vontade, lei alguma posterior poderia alterá-lo (e não alterou, como é óbvio), tratando-se como se trata sem sombra de dúvida de ato jurídico perfeito.

(…)

Está muito claro, no artigo 2.039, do Código em vigor, que o regime de bens nos casamentos celebrados na vigência do anterior (Lei n.º 3.071, de 1º de janeiro de 1916) seria, obviamente, o que foi por ele estabelecido.

Isso quer dizer que os PACTOS ANTENUPCIAIS firmados sob a égide do Código Civil de 1916, não poderiam ser alterados pelo Novo Código Civil (e não o foram) permanecendo, portanto, com plena eficácia, respeitando-se, assim, os atos jurídicos subseqüentes, que dele, por ventura, decorreram.

A regra do § 1º, do art. 2º, da Lei de Introdução ao Código Civil sem qualquer resquício de dúvida, não tem qualquer incidência na espécie, tratando-se de evidente equívoco a sua invocação, considerando, sobretudo, a ausência de qualquer suporte de fato a justificá-la.

Em sendo o regime de bens imutável, não podendo haver qualquer comunicação entre os patrimônios dos nubentes, o testamento (não revogado e nem alterado), efetuado por um deles (cônjuge varão), deixando todos os bens para o consulente constitui, de igual forma, ATO JURÍDICO PERFEITO, não podendo o legislador alterá-lo para atribuir ao cônjuge sobrevivente (vale dizer: aos herdeiros desta) o direito à metade dos referidos bens, porque, aí, sem incidência, estar-se-ia aplicando lei posterior, com evidente alteração do regime de bens, estabelecido pelos nubentes, em flagrante violação aos citados dispositivos legais e constitucionais. (fls. 5⁄9)

A argumentação desenvolvida, com acerto, dispõe sobre a inegável influência, no plano sucessório, do regime de bens estabelecido pelos cônjuges, concluindo pela inaplicabilidade ao caso, das regras dos artigos 1.845 e 1.848 do Novo Código Civil, sob pena de se fazer letra morta do pacto antenupcial – ato jurídico perfeito – no qual ficou estabelecida, por livre manifestação dos contraentes, a separação e incomunicabilidade total dos seus bens, o que aliás continua a ser admitido pela novo diploma substantivo, em seu artigo 1.639.

Esse aspecto foi evidenciado, com clareza, na decisão que indeferiu o pedido de habilitação formulado pelo Espólio de Mercedes Magdalena Serrador Martins:

Por outro lado, uma vez adotado pelos cônjuges um regime de bens, que passa a vigorar desde a data do casamento (art. 230 do Código Civil de 1916, art. 1.639, parágrafo 3º, do Código Civil de 2002), é ele irrevogável (art. 229 do Código Civil de 1916) sendo apenas, agora (art. 1639, parágrafo 2º, do Código Civil de 2002) passível de alteração mediante autorização judicial, circunstância essa não ocorrente e, assim, irrelevante para a hipótese sob exame.

Há no plano sucessório, influência inquestionável do regime de bens no casamento, não se podendo afirmar que são absolutamente independentes e sem relacionamento no tocante às causas e aos efeitos esses institutos que a lei particulariza nos direitos de família e das sucessões.

Sabiam os cônjuges, PAULO MARTINS FILHO e MERCEDES MAGDALENA Serrador MARTINS, portanto, que detinham a livre administração de seus bens particulares e que deles podiam dispor livremente inter vivos ou por testamento (art. 27 do Código Civil de 1916; art. 1.647 do Código Civil de 2002; art. 1.626 do Código Civil de 1916; art. 1.857 do Código Civil de 2002).

O fato do casamento se dissolver pela morte dos cônjuges não gera o direito de permitir que a partilha de seus bens particulares seja realizada por forma diversa da admitida pelo regime de bens a que submetido o casamento, nem transforma o testamento, se feito por qualquer deles em conformidade com as disposições da lei e levando em conta o pacto antenupcial adotado, em ato jurídico inoperante, imperfeito, inacabado, subvertendo-se o que a respeito de seu patrimônio foi avençado pela livre manifestação de vontade dos cônjuges ao casar.

O regime de bens do casamento depende exclusivamente da livre manifestação de vontade dos cônjuges, como resultado de um acordo de vontades livres e inteligentes, versando objeto lícito, e constitui um ato jurídico perfeito e acabado, irrevogável sob a égide do Código Civil de 1916, uma vez que se lhe siga, como na espécie dos autos, o casamento, devidamente registrado (fls. 097 e fls. 111)

É evidente que, casando sob o regime da separação convencional de bens, os cônjuges não vislumbraram, na época em que matrimoniaram, a hipótese de ser a livre disposição de seus bens, de seu patrimônio particular, alterada por lei nova superveniente, que retroagisse a ponto de fazer emergir um direito novo, transformando em herdeiro necessário quem assim não era, e de, por essa forma, transfigurar o regime de bens que adotaram legitimamente quando a lei vigente admitia, a ponto de impedir o cônjuge de livremente dispor de seus bens particulares.

Sob a sistemática do Código Civil de 1916 a esposa do ora inventariado, não tendo o casal descendentes ou ascendentes, seria a herdeira de seu patrimônio (art. 1.611 do Código Civil de 1916), o que se repete no atual (art. 1.838 do Código Civil de 2002), caso o de cujus não houvesse disposto da totalidade dos seus bens particulares, haja vista o regime da completa separação do patrimônio, em testamento; entretanto, certamente porque dotados ambos de cabedais de vulto (fls. 22⁄23 e fls. 148⁄153), o inventariante preferiu testar, em 25.06.2001, quando ainda não vigorante o atual Código Civil, para manifestar sua expressa e livre vontade de aquinhoar terceiro, seu sobrinho, deixando de lado o cônjuge, com todo o patrimônio que tinha, limitando-se a instituir a esposa como usufrutuária vitalícia.

Violados estarão – e isso é inadmissível – pela lei nova os fins diretos e imediatos que os cônjuges se obrigaram e tiveram em mira com o regime convencional da completa separação de bens, o qual, inclusive, terá sido, por sua natureza, o alicerce fundamental do consentimento que expressaram para instituir matrimônio.

Não se pode, conseqüentemente, situar a questão exclusivamente sob a alçada do direito sucessório, fazendo-a simplistamente depender de lei nova superveniente que deu ao cônjuge supérstite a posição de herdeiro necessário no momento em que se abriu a sucessão, limitando o que, por sua complexidade e por violar ato jurídico perfeito como pacto antenupcial e a livre expressão de vontade dos nubentes ao contrair matrimônio, não pode deixar de merecer interpretação ampla e que não leve ao desprezo aspectos fulcrais do matrimônio e de seu regime de bens à ocasião em que realizados.

O regime de bens convencional do casamento uma vez isento de vícios, é um contrato perfeito e acabado, que se integra ao patrimônio de cada um dos cônjuges e à união familiar, seja quanto às relações pessoais entre si, seja no tocante a terceiros, não podendo as regras a respeito serem modificadas por lei nova, a qual, mesmo substituindo in totum a antecedente, terá vigência somente no relativo às sucessões futuras, em seqüência a sua entrada em vigor. (fls. 574⁄576).

3. Impõe-se, no caso, a interpretação sistemática e teleológica dos dispositivos legais em comento, a fim de que não ocorra o malferimento de princípios a eles preexistentes.

Acerca da matéria, José de Oliveira Ascensão – “O Direito, Introdução e Teoria Geral”, 3ª edição, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, n. 194, p. 321, preleciona que:

A interpretação deve ter em conta a “unidade do sistema jurídico”. Repetidamente acentuamos já que toda a fonte se integra numa ordem, que a regra é modo de expressão dessa ordem global. Por isso a interpretação duma fonte não se faz isoladamente, atendendo por exemplo a um texto como se fosse válido fora do tempo e do espaço. Resulta pelo contrário da inserção desse texto num conjunto jurídico dado.

Aplicando-se o acima disposto ao caso concreto, tem-se que, permitir a uma lei superveniente nomear como herdeiro necessário quem antes não o era à época de testamento lavrado em conformidade com manifestação de vontade expressa e consubstanciada em pacto antenupcial de separação total de bens, é tornar inválido tal testamento e emprestar efeitos retroativos ao pacto que existia e se tornou perfeito e acabado com o casamento, afrontando a boa fé e a vontade dos cônjuges que, com certeza, assim decidiram considerando as circunstâncias familiares e sociais, bem como os reflexos econômicos futuros na linha sucessória.

Savigny, lembrado por Paulo Nader (Curso de Direito Civil, Vol. I, 6ª edição, Editora Forense), distinguiu duas grandes classes de normas jurídicas: a) referentes à aquisição de direitos; b) as que dizem respeito à existência (ou inexistência) ou modo de ser de um direito ou de um instituto jurídico. No primeiro caso, não pode haver retroatividade da nova lei.

4. Importante, neste patamar, destacar a importância do Princípio da Boa-Fé Objetiva e seus elementos caracterizadores na celebração dos contratos. Sobre o assunto, trago à colação texto de Judith Martins-Costa, em sua obra “A Boa-fé no Direito Privado”, no qual a autora refere-se as condições da responsabilidade pré-contratual:

A existência de negociações, qualquer que seja a sua forma, antecedente a um contrato; a prática de atos tendentes a despertar, na contraparte, a confiança legítima de que o contrato seria concluído; a efetiva confiança, da contraparte; a existência de dano decorrente da quebra desta confiança, por terem sido infringidos deveres jurídicos que a tutelam; e, no caso da ruptura das negociações, que esta tenha sido injusta, ou injustificada – aí estão, sinteticamente postas, as condições da responsabilidade pré-negocial.”

Pensamento semelhante desenvolve Karina Nunes Fritz:

Percebe-se, então, o importante papel atribuído à boa-fé objetiva no direito alemão: ela completa, integra a liberdade de exercício de direitos, a autonomia privada e seu principal desdobramento, a liberdade contratual, poder conferido pelo ordenamento ao sujeito de decidir acerca da celebração de um contrato e de determinar livremente seu conteúdo. Significa isso dizer que as partes devem, no exercício dessa autonomia, agir eticamente, considerando os interesses do outro, aspecto essencial da idéia de boa-fé. Daí dizer Larenz que o “princípio da boa-fé significa, em seu sentido literal, que cada um deve manter lealdade à sua palavra e não frustrar ou abusar da confiança, que forma a base indispensável para todos os relacionamentos humanos, (significa) que ele deve proceder como se pode esperar de alguém que pensa honestamente“.

A boa-fé objetiva não é, como se costuma dizer, uma fórmula vazia. Seu conceito remete a valores éticos, como lealdade, honestidade e consideração pelos interesses alheios, razão pela qual é também denominada de boa-fé ética, mas isso não implica indefinição.

(…)

Por essa razão, diz Martins-Costa que, na tarefa de verificar se determinado comportamento corresponde, ou não, aos padrões de honestidade e lealdade exigidos pela boa-fé, deve o juiz averiguar qual a concepção de boa-fé vigente na doutrina e jurisprudência, pois, como enfatiza a autora, “não se trata de determinar, por óbvio, qual é a sua própria valoração“. Também Rosado de Aguiar Júnior compartilha dessa visão ao afirmar que “a boa-fé é uma cláusula geral cujo conteúdo é estabelecido em concordância com os princípios gerais do sistema jurídico (liberdade, justiça e solidariedade)“. (“Boa-fé objetiva na fase pré-contratual” Editora Afiliada, p. 110⁄111)

Também citando Rui Rosado de Aguiar, discorre Lucinete Cardoso de Melo que:

Segundo Ruy Rosado de Aguiar, podemos definir boa-fé como “um princípio geral de Direito, segundo o qual todos devem comportar-se de acordo com um padrão ético de confiança e lealdade. Gera deveres secundários de conduta, que impõem às partes comportamentos necessários, ainda que não previstos expressamente nos contratos, que devem ser obedecidos a fim de permitir a realização das justas expectativas surgidas em razão da celebração e da execução da avença”.

Como se vê, a boa-fé objetiva diz respeito à norma de conduta, que determina como as partes devem agir. Todos os códigos modernos trazem as diretrizes do seu conceito, e procuram dar ao Juiz diretivas para decidir.

Mesmo na ausência da regra legal ou previsão contratual específica, da boa-fé nascem os deveres, anexos, laterais ou instrumentais, dada a relação de confiança que o contrato fundamenta.

Não se orientam diretamente ao cumprimento da prestação, mas sim ao processamento da relação obrigacional, isto é, a satisfação dos interesses globais que se encontram envolvidos. Pretendem a realização positiva do fim contratual e de proteção à pessoa e aos bens da outra parte contra os riscos de danos concomitantes.

Na questão da boa-fé analisa-se as condições em que o contrato foi firmado, o nível sociocultural dos contratantes, seu momento histórico e econômico. Com isso, interpreta-se a vontade contratual. (“O princípio da boa-fé objetiva no Código Civil”, http:⁄⁄jus2.uol.com.br⁄doutrina⁄texto.asp?id=6027)

Destaca-se, assim, a necessidade de aplicação do Princípio da Boa Fé Objetiva na complementação das normas que as partes deixaram de usar e, mais ainda, de se aferir o sentido a ser emprestado às declarações de vontade, especialmente quanto aos temas expressamente contratados.

Aldemiro Rezende de Dantas Júnior citando Alfonso de Cosio e Cabral, escreve:

No direito moderno a boa-fé assumiu o papel de uma fonte de normas objetivas, cuja atuação concreta se dá mediante a aplicação de princípios gerais, esclarecendo em seguida, que isso significa que a boa-fé pode ser entendida como norma geral, que se diversifica e especializa para cada situação concreta, ou seja, cujo conteúdo será formado e determinado em função das circunstâncias concretas. (“Teoria dos Atos Próprios no Princípio da Boa-Fé”, Editora Juruá)

Segundo, ainda, o referido autor:

(…) em relação aos contratos, a conduta ditada pela boa-fé se impõe não apenas ao longo da execução do mesmo mas antes mesmo de ter se aperfeiçoado o ajuste e ainda depois que o mesmo já foi integralmente cumprido nas fases pré e pós contratuais. E ainda mais, tal comportamento não se impõe apenas aos negócios jurídicos que se situam dentro do campo das obrigações, mas em relação a todos os negócios jurídicos e m geral. (ob. cit.)

No mesmo sentido, Judith Martins-Costa ao discorrer sobre os direitos instrumentais decorrentes da boa-fé objetiva:

Dito de outro modo, os deveres instrumentais “caracterizam-se por uma função auxiliar da realização positiva do fim contratual e de proteção à pessoa e aos bens da outra parte contra os riscos de danos concomitantes”, servindo, “ao menos as suas manifestações mais típicas, o interesse na conservação dos bens patrimoniais ou pessoais que podem ser afetados em conexão com o contrato (…)”.

Trata-se, portanto, de “deveres de adoção de determinados comportamentos, impostos pela boa-fé em vista do fim do contrato (…) dada a relação de confiança que o contrato fundamenta, comportamentos variáveis com as circunstâncias concretas da situação“. Ao ensejar a criação desses deveres, a boa-fé atua como fonte de integração do conteúdo contratual, determinando a sua otimização independentemente da regulação voluntaristicamente estabelecida. (“A Boa-Fé no Direito Privado”; Editora Revista dos Tribunais, p. 440)

Afirma Pontes de Miranda, em seu Tratado de Direito Privado”, Tomo III, Editora BookSeller, p. 374:

Rigorosamente, as regras de boa-fé entram nas regras do uso do tráfico, porque tratar lisamente, com correção, é o que se espera encontrar nas relações da vida. Os usos do tráfico, mais restritos, ou mais especializados, apenas se diferenciam, por sua menor abrangência. Quando se diz que a observância do critério da boa-fé, nos casos concretos, assenta em apreciação de valores, isto é, repousa em que, na colisão de interesses, um deles há de ter maior valor, e não em deduções lógicas, apenas se alude ao que se costuma exigir no trato dos negócios. Regras de boa-fé são regras do uso do tráfico, gerais, porém de caráter cogente, que de certo modo ficam entre as regras jurídicas cogentes e o direito não-cogente, para encherem o espaço deixado pelas regras jurídicas dispositivas e de certo modo servirem de regras interpretativas.

Busca-se assegurar, como se vê, a proteção à confiança fundada de cada uma das partes contratantes e suas legítimas expectativas não apenas quanto à validade e eficácia do negócio jurídico mas quanto ao seu cumprimento, a fim de que sejam alcançados os resultados reais colimados pelas partes.

Com efeito, não se pode olvidar que são constitucionalmente assegurados os princípios da segurança jurídica, da boa-fé objetiva, da proteção da confiança e do ato jurídico perfeito.

Sobre o ato jurídico e os negócios jurídicos firmados anteriormente à vigência do Novo Código Civil, doutrina Daniel Guerra Gunzburguer, em artigo publicado na Revista Forense, julho⁄agosto 2005, p. 29:

Assim, embora o art. 2.035 estabeleça que os efeitos dos negócios jurídicos constituídos antes da entrada em vigor do Código Civil de 2002 ficam subordinados aos seus preceitos, somos de opinião que, para tais negócios jurídicos, devem ser respeitados os dispositivos da lei anterior, seja ela o Código Civil de 1916 ou qualquer outra, em decorrência do art. 5º, XXXVI da Constituição Federal, que protege o ato jurídico perfeito

(…)

O ato jurídico já se consumou e portanto seus efeitos devem decorrer da regra em vigor utilizada na época de sua constituição. (…)

Assim sendo, conclui-se que quando concretizada a obrigação sob a égide da lei anterior, esta será a lei competente para regular todos os seus efeitos. A lei nova terá, portanto, incidência imediata somente com relação aos fatos que não atinjam direitos adquiridos ou ato jurídico perfeito, sob pena de ensejar violação aos dispositivos constitucionais considerados como cláusula pétrea no art. 60, § 4º da Constituição Federal.

Em artigo intitulado “Regime patrimonial de bens entre cônjuges e direito intertemporal”, Lindajara Ostjen Couto menciona o entendimento de juristas renomados acerca da matéria:

1.A lei em vigor tem efeito geral e imediato, mas não pode prejudicar o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada, conforme determina o arts. 5º XXXVI, da Constituição Federal e art. 6º, caput, da Lei de Introdução ao Código Civil.

2.O jurista Pontes de Miranda considera que “lei nova estabelecendo outro regime legal, ou que modifica o existente até então, não alcança os casamentos celebrados antes dela, salvo regra explícita em contrário”.

3.O posicionamento do Washington de Barros Monteiro é o seguinte: “As relações de caráter patrimonial, que o casamento origina, regulam-se pela lei do tempo em que se formaram. O regime de bens não está sujeito às alterações da lei nova”.

4.O Jurista Leônidas Filippone Farrula Júnior afirma que o casamento se aperfeiçoa com as núpcias e as questões patrimoniais do casamento se regulam pela legislação vigente à época da celebração. E, ainda, completa que a alteração do regime de bens aos casamentos anteriores ao CC⁄02 acarretaria a infringência ao ato jurídico perfeito e ao princípio constitucional de irretroatividade das leis.

5.Afirma, ainda, que a interpretação literal do art. 2.039, quando menciona “é o por ele estabelecido”, se refere a todo o ordenamento jurídico referente aos regimes de bens, assim entende que, o código anterior, mesmo revogado, permanecerá eficaz para disciplinar esta matéria.

6.Maria Helena Diniz tem a posição de que a lei revogada permanecerá a produzir efeitos “porque outra lei vigente ordena o respeito às situações jurídicas definitivamente constituídas ou aperfeiçoadas no regime da lei anterior” ou “se deve aplicar a lei em vigor na época em que os fatos aconteceram.” (“Teoria dos Atos Próprios no Princípio da Boa-Fé”, Editora Juruá “http:⁄⁄jus2.uol.com.br⁄doutrina⁄texto.asp?id=6248&p=2).

José da Silva Pacheco em artigo publicado na Revista da Academia Brasileira de Letras Jurídicas, Ano XVIII, n. 21, Rio de Janeiro , 1º Semestre de 2002, p. 66, comenta:

Entretanto, entre as disposições transitórias, inscreve-se a do art. 2.039 segundo a qual, nos casamentos celebrados na vigência do Código Civil anterior, observa-se, quanto ao regime de bens, o que nesse código é estabelecido, mesmo depois de iniciar a vigência do novo Código Civil.

Nessa mesma linha de pensamento expressa o Excelso Pretório que:

O disposto no artigo 5º, XXXVI, da Constituição Federal se aplica a toda e qualquer lei infraconstitucional, sem qualquer distinção entre lei de direito público e lei de direito privado, ou entre lei de ordem pública e lei dispositiva. Precedente do STF.” (RTJ 143⁄724, Rel. Min. MOREIRA ALVES, Pleno – grifei) Cumpre ter presente, bem por isso, a lição da doutrina, que, tomando em consideração a realidade jurídico-constitucional vigente no Brasil, repudia, por incompatíveis com a Constituição da República, todas as hipóteses de retroatividade injusta: “… um contrato perfeito e acabado na vigência de uma lei permanece intocável, nas suas disposições, ainda no que diz respeito aos seus efeitos futuros, manifestados quando já começou a viger uma lei nova derrogante. A aplicação da lei nova, nessa hipótese, implicaria retroatividade, em desobediência ao preceito constitucional. ………………………………………………. Regra básica e inalterável é que todas as conseqüências de um contrato concluído sob o império de uma lei, inclusivamente seus efeitos futuros, devem continuar a ser reguladas por essa lei em homenagem ao valor da certeza do direito e ao princípio da tutela do equilíbrio contratual. A aplicação imediata da lei nova aos efeitos posteriores à sua vigência incide no seu fato gerador, e, portanto, implicaria aplicação retroativa.” (ORLANDO GOMES, “Questões Mais Recentes de Direito Privado”, p. 4, item n. 3, 1988, Saraiva – grifei) Perfilha igual orientação J. M. OTHON SIDOU, para quem, considerada a concepção vigente no sistema normativo brasileiro pertinente à resolução do conflito intertemporal de leis, “A lei nova não atinge conseqüências que, segundo a lei anterior, deviam derivar da existência de determinado ato, fato ou relação jurídica, isto é, que se unem à sua causa como um corolário necessário e útil”, enfatizando, a esse propósito, que: “Retroativa e, portanto, condenável (…) é não somente a regra positiva que contrasta com as conseqüências, já realizadas, do fato consumado, mas também a que impede as conseqüências futuras do mesmo fato, por uma razão relativa só a ele.” (“O Direito Legal”, p. 228⁄229, item XIII, 1985, Forense – grifei). (AI 250949⁄SP, Relator Ministro CELSO DE MELLO, DJ 05⁄09⁄2000).

Do acima exposto, firmam-se as seguintes conclusões:

– dispõe o artigo 2.039, do Código em vigor, que o regime de bens nos casamentos celebrados na vigência do anterior será o que foi por ele estabelecido;

– tendo sido fixado, em pacto antenupcial firmado sob a égide do Código Civil de 1916, o regime de separação de bens, em estrita observância ao referido princípio da autonomia da vontade, lei alguma posterior poderia alterá-lo por se tratar de ato jurídico perfeito;

– permanecendo, portanto, com plena eficácia, o pacto antenupcial, devem ser respeitados os atos jurídicos subseqüentes, dele advindos, especialmente o testamento celebrado por um dos cônjuges;

– existe no plano sucessório, influência inegável do regime de bens no casamento, não se podendo afirmar que são absolutamente independentes e sem relacionamento no tocante às causas e aos efeitos esses institutos que a lei particulariza nos direitos de família e das sucessões;

– a dissolução do casamento pela morte dos cônjuges não autoriza que a partilha de seus bens particulares seja realizada por forma diversa da admitida pelo regime de bens a que submetido o casamento e nem transforma o testamento, se feito por qualquer deles em conformidade com as disposições da lei e levando em conta o pacto antenupcial adotado, em ato jurídico inoperante, imperfeito e inacabado;

– o art. 2.042 do Novo Código Civil deve ser interpretado em consonância com os arts. 2.039 do mesmo Diploma legal e art. 6º § 1º da LICC, observadas as peculiaridades do caso concreto, pois tanto o testamento quanto o pacto antenupcial firmado entre as partes na vigência da lei antiga, devem ser respeitados, como atos jurídicos perfeitos, sob pena de se gerar uma situação de insegurança jurídica e de se ferir os princípios da autonomia da vontade e da boa-fé objetiva, de observância obrigatória a fim de se assegurar a proteção à confiança fundada de cada uma das partes contratantes e suas legítimas expectativas não apenas quanto à validade e eficácia do negócio jurídico mas quanto ao seu cumprimento.

Pelo exposto, acompanho o relator e dou provimento ao recurso especial.

É com o voto.

VOTO-VISTA

O EXMO. SR. MINISTRO FERNANDO GONÇALVES:

Na assentada do dia 19 de março de 2009, pelo voto do relator – Min. CARLOS FERNANDO MATHIAS – foi conhecido e provido o recurso especial interposto pelo ESPÓLIO DE PAULO MARTINS FILHO contra acórdão da Segunda Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, sendo acolhida a tese segundo a qual, na espécie, em vista das peculiaridades que cercam o caso em comento, deve ser afastada a invocação da regra de que a sucessão se subordina à lei vigente à época do falecimento, de modo a serem tidas como hígidas as disposições de última vontade do testador.

Na ocasião, proferi voto acompanhando o relator. Em seqüência, o Min. JOÃO OTÁVIO DE NORONHA pede vista dos autos, inaugurando a divergência, para não conhecer do recurso especial, em face dos seguintes argumentos:

a) de acordo com as disposições do Código Civil de 2002, o cônjuge supérstite é herdeiro necessário;

b) a capacidade para suceder corresponde à lei em vigor quando da abertura da sucessão;

c) inexiste direito adquirido de herdar enquanto vivo o titular do patrimônio a ser partilhado, e

d) não houve renúncia à herança pela viúva.

Com o prosseguimento do julgamento, nova vista dos autos é requerida, agora pelo Min. LUÍS FELIPE SALOMÃO, que profere voto no mesmo sentido do relator, acrescido das seguintes conclusões, verbis:

“dispõe o artigo 2.039, do Código em vigor, que o regime de bens nos casamentos celebrados na vigência do anterior será o que foi por ele estabelecido;

– tendo sido fixado, em pacto antenupcial firmado sob a égide do Código Civil de 1916, o regime de separação de bens, em estrita observância ao referido princípio da autonomia da vontade, lei alguma posterior poderia alterá-lo por se tratar de ato jurídico perfeito;

– permanecendo, portanto, com plena eficácia o pacto antenupcial, devem ser respeitados os atos jurídicos subseqüentes, dele advindos, especialmente o testamento celebrado por um dos cônjuges;

– existe no plano sucessório, influência inegável do regime de bens no casamento, não se podendo afirmar que são absolutamente independentes e sem relacionamento no tocante à causa e aos efeitos esses institutos que a lei particulariza nos direitos de família e das sucessões;

– a dissolução do casamento pela morte dos cônjuges não autoriza que a partilha de seus bens particulares seja realizada por forma diversa da admitida pelo regime de bens a que submetido o casamento e nem transforma o testamento, se feito por qualquer deles em conformidade com a lei e levando em conta o pacto antenupcial adotado, em ato jurídico inoperante, imperfeito e inacabado;

– o art. 2042 do Novo Código Civil deve ser interpretado em consonância com os arts. 2039 do mesmo Diploma legal e art. 6º § 1º da LICC, observadas as peculiaridades do caso concreto, pois tanto o testamento quanto o pacto antenupcial firmado pelas partes na vigência da lei antiga, devem ser respeitados, como atos jurídicos perfeitos, sob pena de se gerar uma situação de insegurança jurídica e de se ferir os princípios da autonomia da vontade e da boa-fé objetiva, de observância obrigatória a fim de se assegurar a proteção à confiança fundada de cada uma das partes contratantes e suas legítimas expectativas não apenas quanto à validade e eficácia do negócio jurídica mas quanto ao seu cumprimento.”

Nesse contexto, tendo em vista o enriquecimento das discussões, com a vinda a lume de novas teses e argumentos, solicitei vista dos autos, apesar de já ter proferido meu voto, para uma reflexão mais aprofundada acerca da controvérsia.

Analisada a questão de forma mais acurada, com a vênia devida, tenho que a solução alvitrada pelo relator, e já adotada por mim em um primeiro momento, deve prevalecer.

Com efeito, por Paulo Martins Filho e Mercedes Magdalena Serrador Martins foi firmado pacto antenupcial em 19 de maio de 1950, lavrado nos seguintes termos:

“Resolveram que o seu casamento se regerá pela completa separação de bens; que assim todos os bens presentes e futuros pertencerão como próprios e serão incomunicáveis, bem assim os rendimentos de tais bens, podendo cada um dos outorgantes e reciprocamente outorgados livremente dispor dos seus bens e rendimentos sem intervenção do outro e como lhe aprouver, mantendo cada um dos outorgantes e reciprocamente outorgados a exclusiva autoridade de administração, usar e dispor de seus bens a seu livre arbítrio” (fls. 139)

Referido documento ganha eficácia em 31 de maio do mesmo ano, com a celebração do matrimônio dos contraentes pelo regime da separação de bens (fls. 138).

Em 25 de junho de 2001, passados, portanto, mais de 50 anos da lavratura do pacto antenupcial, nova manifestação de vontade é emitida pelo cônjuge varão, no mesmo sentido das anteriores, agora na elaboração de seu testamento, deixando para um sobrinho todos os seus bens, gravados, porém, com a cláusula de usufruto vitalício em favor de sua esposa.

Do quanto exposto, é possível constatar a coerência e certeza com que os cônjuges dispõem acerca da destinação de seu patrimônio, restando questionar se vontade assim tão claramente expressa subsiste aos ditames impositivos do novo Código Civil.

Com efeito, em 26 de maio de 2004, falece Paulo Martins Filho. Nessa ocasião já está em vigência o Código Civil de 2002 que, assim, passa a reger a sucessão do cônjuge varão, por força do disposto no art. 1787 do referido Diploma Legal, verbis:

“Art. 1787. Regula a sucessão e a legitimação para suceder a lei vigente ao tempo da abertura daquela.”

Do mesmo teor, a norma contida no art. 1577 do Código de 1916, segundo a qual “A capacidade para suceder é a do tempo da abertura da sucessão, que se regulará conforme a lei então em vigor”.

Dessa forma, salvo melhor juízo, a controvérsia não se instala especificamente sobre matéria de direito intertemporal, ou sobre quais as normas incidentes sobre a hipótese em comento, mas sim sobre o modo de sua interpretação.

Com efeito, o art. 1829, I, do Código Civil vigente reconhece ao cônjuge a condição de herdeiro necessário, “salvo se casado este com o falecido no regime da comunhão universal, ou no da separação obrigatória de bens (art. 1640, parágrafo único); ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares;”.

Assim, no que respeita ao regime de separação convencional de bens, que nos interessa no particular, o cônjuge, segundo uma interpretação literal da norma, é herdeiro necessário.

Nessa ordem de ideias, Mercedes Magdalena Serrador Martins seria herdeira de metade dos bens deixados por Paulo Martins Filho, passando, esse patrimônio, com sua morte, a seus sobrinhos que, assim, teriam legitimidade para requerer sua habilitação no inventário dos bens deixados pelo cônjuge varão, como entendeu a Corte carioca.

Essa não parece, porém, a melhor exegese a ser dada ao art. 1829, inciso I, do Código Civil de 2002.

De fato, o legislador reconhece aos nubentes, já desde o Código Civil de 1916, a possibilidade de autodeterminação no que se refere ao seu patrimônio, autorizando-lhes a escolha do regime de bens, dentre os quais o da separação total, no qual, segundo Pontes de Miranda, “os patrimônios dos cônjuges permanecem incomunicáveis, de ordinário sob a administração exclusiva de cada cônjuge, que só precisa da outorga do outro cônjuge, para a alienação dos bens de raiz” (Tratado de Direito Privado. São Paulo: Ed. Borsói, tomo 8, p. 343), incomunicabilidade que se perpetua com o falecimento de um deles, dada a possibilidade de se excluir o cônjuge sobrevivente da qualidade de herdeiro, através de testamento, como no caso em comento.

Assim, qualquer que seja a razão pela qual os cônjuges decidem por renunciar um ao patrimônio do outro, essa determinação é respeitada pela lei anterior. No novo Código Civil, porém, adotada interpretação literal do art. 1829, se conclui pela inclusão do cônjuge sobrevivente como herdeiro necessário, o que no caso de separação convencional de bens, significa que é concedido aos consortes liberdade de autodeterminação em vida, retirada essa, porém, com o advento da morte, transformando a sucessão em uma espécie de proteção previdenciária.

Cuida-se, iniludivelmente, de quebra na estrutura do sistema codificado. Com efeito, não há como compatibilizar as disposições do art. 1639, que autoriza os nubentes a estipular o que lhes aprouver em relação a seus bens, bem como do art. 1687, que permite a adoção do regime de separação absoluta de bens (afastando, inclusive, a necessidade de outorga do outro cônjuge para a alienação de bens), com os termos do art. 1829, que eleva o cônjuge sobrevivente à qualidade de herdeiro necessário, determinando, inexoravelmente, a comunicabilidade dos patrimônios. De fato, seria de se questionar o porquê de se escolher a incomunicabilidade de bens, se eles necessariamente se somarão no futuro.

Tal inconsistência é apontada pelo Professor Miguel Reale, que a respeito do tema assim se pronuncia, verbis:

“Em um código os artigos se interpretam uns pelos outros”, eis a primeira regra de Hermenêutica Jurídica estabelecida pelo Jurisconsulto Jean Portalis, um dos principais elaboradores do Código Napoleão.

Desse entendimento básico me lembrei ao surgirem dúvidas quanto ao verdadeiro sentido do inciso I do art. 1.829 do novo Código Civil, segundo o qual a sucessão legítima cabe, em primeira linha, aos “descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo se casado este com o falecido no regime da comunhão universal de bens ou da separação obrigatória de bens (art. 1.640, parágrafo único); ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares”.

Há quem entenda que, desse modo, o cônjuge seria herdeiro necessário também na hipótese de ter casado no regime de separação de bens (art. 1.687), o que não me parece aceitável.

Essa dúvida resulta do fato de ter o art. 1.829, supratranscrito, excluído o cônjuge somente no caso de “separação obrigatória”. A interpretação desse dispositivo isoladamente pode levar a uma conclusão errônea, devendo, porém, o intérprete situá-lo no contexto sistemático das regras pertinentes à questão que está sendo examinada.” (Estudos Preliminares do Código Civil. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 61 e 62)

Tecidas essas considerações, o ilustre professor faz um aparte para explicar que a razão pela qual se teve por bem incluir o cônjuge como herdeiro necessário foi a alteração do regime legal de bens, da comunhão para a comunhão parcial, o que pode resultar em nada sobrar para o meeiro, se o patrimônio do falecido se compuser exclusivamente de bens particulares. De todo modo, sobre a interpretação do art. 1829, I, conclui:

“Recordada a razão pela qual o cônjuge se tornou herdeiro, não é demais salientar a importância que o elemento histórico tem no processo interpretativo. Tendo, pois, presente a finalidade que o legislador tinha em vista alcançar, estamos em condições de analisar melhor o sentido do mencionado inciso, mantida que seja sua redação atual.

Nessa ordem de idéias, duas são as hipóteses de separação obrigatória: uma delas é a prevista no parágrafo único do art. 1.641, abrangendo vários casos; a outra resulta da estipulação feita pelos nubentes, antes do casamento, optando pela separação de bens.

A obrigatoriedade da separação de bens é uma conseqüência necessária do pacto concluído pelos nubentes, não sendo a expressão “separação obrigatória” aplicável somente nos casos relacionados no parágrafo único do art. 1641.

Essa minha conclusão ainda mais se impõe ao verificarmos que – se o cônjuge casado no regime de separação de bens fosse considerado herdeiro necessário do autor da herança – estaríamos ferindo substancialmente o disposto no art. 1687, sem o qual desapareceria todo o regime de separação de bens, em razão de conflito inadmissível entre esse artigo e o art. 1829, inc. I, fato que jamais poderá ocorrer numa codificação à qual é inerente o princípio da unidade sistemática.

Entre uma interpretação que esvazia o art. 1687 no momento crucial da morte de um dos cônjuges e uma outra que interpreta de maneira complementar os dois citados artigos, não se pode deixar de dar preferência à segunda solução, a qual, ademais, atende à interpretação sistemática, essencial á exegese jurídica” (Op. cit, p. 62 e 63).

Pouco resta a acrescentar.

De fato, a interpretação ampliativa do termo “separação obrigatória”, constante do art. 1829, inciso I, do Código Civil de 2002, para abranger não somente as hipóteses elencadas no art. 1640, parágrafo único, mas também os casos em que os cônjuges estipulam a separação absoluta de seus patrimônios, não esbarra na intenção do legislador quando decide corrigir eventuais injustiças decorrentes da alteração do regime legal, ao mesmo tempo em que respeita o direito de autodeterminação concedido aos cônjuges no atinente a seu patrimônio tanto pela legislação anterior, quanto pela presente.

Além disso, se evita a perplexidade retratada no caso em comento, no qual os cônjuges de maneira cristalina e reiterada estipulam a forma de destinação de seus bens e acabam por ter suas determinações feridas, ainda que post mortem.

Cumpre assinalar que a proteção ao cônjuge sobrevivo, para aqueles que não se conformam com a renúncia ao patrimônio do falecido feita quando da escolha do regime de bens, pode se dar por outras formas que não sua qualificação como herdeiro necessário, a exemplo da estipulação de usufruto vitalício a seu favor, nos exatos moldes do presente caso.

Ante o exposto, conheço do recurso e lhe dou provimento para restabelecer a sentença de primeiro grau, que indefere o pedido de habilitação do espólio de Mercedes Magdalena Serrador Martins no inventário do bens deixados por Paulo Martins Filho.

VOTO

O EXMO. SR. MINISTRO FERNANDO GONÇALVES (PRESIDENTE):

Srs. Ministros, tive alguma dúvida a respeito do prequestionamento, mas o Sr. Ministro Relator explicou que as disposições apontadas como violadas estão realmente prequestionadas. Não fora isso, há dissenso pretoriano entre o julgado recorrido e julgados de outras cortes. Realmente, não podemos aplicar o novo Código Civil às situações regidas pelo direito anterior. Há pouco tempo tivemos um debate sobre a questão da lei de recuperação de empresas, de falência, ocorrida na vigência da lei antiga.

Conheço do recurso especial e dou-lhe provimento, acompanhando o voto do Sr. Ministro Relator.

Fonte: Boletim INR n. 3751 – São Paulo, 18 de fevereiro de 2010.