CSM|SP: Dúvida – Registro de Imóveis – carta de arrematação – desqualificação para registro – comprovação de quitação dos débitos condominiais – exigência não mais justificável diante da revogação tácita do parágrafo único do art. 4.º, da Lei n.º 4.591/1964, pelo art. 1.345 do Código Civil de 2002 – Recurso provido.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos de APELAÇÃO CÍVEL N° 0017233-35.2011.8.26.0451, da Comarca de PIRACICABA, em que é apelante BANCO DO BRASIL S.A. e apelado o 1º OFICIAL DE REGISTRO DE IMÓVEIS, TÍTULOS E DOCUMENTOS E CIVIL DE PESSOA JURÍDICA da referida Comarca.

ACORDAM os Desembargadores do Conselho Superior da Magistratura, por votação unânime, em afastar a preliminar de nulidade e, no mérito, dar provimento ao recurso, de conformidade com o voto do Desembargador Relator, que fica fazendo parte integrante do presente julgado.

Participaram do julgamento os Desembargadores IVAN RICARDO GARISIO SARTORI, Presidente do Tribunal de Justiça, JOSÉ GASPAR GONZAGA FRANCESCHINI, Vice-Presidente do Tribunal de Justiça,ANTONIO AUGUSTO CORRÊA VIANNA, decano, SAMUEL ALVES DE MELO JUNIOR, HAMILTON ELLIOT AKEL E ANTONIO CARLOS TRISTÃO RIBEIRO, respectivamente, Presidentes das Seções de Direito Público, Privado, em exercício, e Criminal do Tribunal de Justiça.

São Paulo, 31 de maio de 2012.

(a) JOSÉ RENATO NALINI, Corregedor Geral da Justiça e Relator

VOTO

Dúvida – Registro de Imóveis – carta de arrematação – desqualificação para registro – comprovação de quitação dos débitos condominiais – exigência não mais justificável diante da revogação tácita do parágrafo único do art. 4.º, da Lei n.º 4.591/1964, pelo art. 1.345 do Código Civil de 2002 – Recurso provido.

Trata-se de apelação interposta pelo Banco do Brasil S/A, objetivando a reforma da r sentença de fls. 90/90v, que julgou procedente a dúvida suscitada pelo 1º Oficial de Registro de Imóveis e Anexos da Comarca de Piracicaba, e manteve a recusa do registro da carta de arrematação por meio do qual a apelante adquiriu a metade ideal dos imóveis matriculados sob os nºs 61.685, 61.701, 61.726, 61.727 e 61.728.

Aduz o apelante, em preliminar, nulidade da sentença por falta de fundamentação. No mérito, afirma que a comprovação dos débitos condominiais exigida pelo parágrafo único, do art. 4º, da Lei nº 4.591/64, encontra-se revogada pelo atual art. 1.345, do Código Civil (fls. 96/109).

A Procuradoria Geral de Justiça opinou pelo não provimento do recurso (fls. 119/122).

É o relatório.

Embora sucinta, a r sentença não padece do vício de nulidade, na medida em que proferida de acordo com o entendimento então predominante deste C. Conselho Superior da Magistratura.

No mérito, a recusa deve ser afastada, a despeito dos r argumentos do MM. Juiz Corregedor Permanente e da D. Procuradoria Geral de Justiça.

Com o recente julgamento da Apelação Cível n.º 0019751-81.2011.8.26.0100, ocorrido no dia 12 de abril de 2012, o Conselho Superior da Magistratura sinalizou a revisão da compreensão que vigorava, na qual se baseou o MM. Juiz Corregedor Permanente ao preferir a r sentença ora questionada.

Conforme lá assinalado, a regra do parágrafo único, do artigo 4.º, da Lei n.º 4.591/1964, com a entrada em vigor do novo Código Civil e, mormente, do seu artigo 1.345, foi revogada.

Naquele julgamento, uma vez desenvolvidas as características das obrigações reais e enfocada a sua eventual ambulatoriedade, assentou-se que a obrigação de pagar as contribuições condominiais, impostas aos condôminos – proprietários, a quem equiparados, para os fins do artigo 1.334 do Código Civil, e por força do § 2.º desta disposição legal, os promitentes compradores e os cessionários de direitos relativos às unidades autônomas -, qualifica-se como propter rem (artigo 1.336, I, do Código Civil).

Também se afirmou que com o advento do Código Civil de 2002, a obrigação dos condôminos foi, no plano do direito positivo, ampliada – em prestígio de jurisprudência consolidada -, pois, nos termos do artigo 1.345, “o adquirente de unidade responde pelos débitos do alienante, em relação ao condomínio, inclusive multa e juros moratórios.”

E a positivação de tal regra confirmou – porque, caso contrário, seria despicienda -, a intransmissibilidade da obrigação propter rem de dare, que, na realidade, ontologicamente, à vista de sua natureza, não contempla, por si, os débitos nascidos antes da assunção de direitos sobre a coisa: quer dizer, o novo titular de direitos sobre a coisa não responde por tais débitos pretéritos.

Enfim, concluiu-se que as obrigações reais de dare não importam, em regra, responsabilidade pelas dívidas constituídas antes da aquisição de direitos sobre a coisa, ao contrário das obrigações reais de facere, que acompanham a coisa, transmitindose ao sucessor, independentemente de manifestação de vontade e do conhecimento de sua existência.

Aliás, se a obrigação de pagar as contribuições condominiais – típica obrigação propter rem dedare que se autonomiza no momento em que se vence, desatando-se da relação jurídica de natureza real, sua matriz -, contemplasse, por si, a responsabilidade pelo pagamento das contribuições condominiais constituídas antes da titularização de direitos sobre a unidade condominial, a positivação da regra insculpida no artigo 1.345 do Código Civil seria prescindível: cuidar-se-ia de disposição legal inócua, à vista do artigo 1.336, I, do mesmo diploma legal.

Além disso, a regra do parágrafo único do artigo 4.º da Lei n.º 4.591/1964 não faria sentido, uma vez valorado o comando emergente do artigo 12 da Lei n.º 4.591/1964, que, antes do Código Civil de 2002, já revelava a natureza propter rem da obrigação de pagamento das contribuições condominiais.

Não seria razoável condicionar a alienação da unidade condominial e a transferência de direitos a ela relacionados à prévia comprovação da quitação das obrigações do alienante para com o condomínio, se a obrigação propter rem de dare, por sua natureza, abrangesse os débitos constituídos anteriormente à aquisição de direitos sobre a coisa.

Ora, se o novo titular de direitos sobre a unidade condominial respondesse, a par dos débitos atuais, também pelos passados, estes também exigíveis do alienante, qual seria, então, a lógica razoável do condicionamento, ainda mais à vista da garantia representada pelo imóvel, passível de penhora em futura execução? Na realidade, nenhuma.

Sob outro prisma, a atual redação do parágrafo único do artigo 4.º da Lei n.º 4.591/1964, dada pela Lei n.º 7.182/1984, veio substituir a sua versão original, reproduzida, no entanto, pelo texto do artigo 1.345 do novo Código Civil, ressalvada a referência, agora feita, aos juros moratórios.

Quer dizer: as modificações legislativas reforçam, em primeiro lugar, a intransmissibilidade da obrigação propter rem de dare e, por fim, porque incompatível com a regra do artigo 1.345 do Código Civil, a revogação tácita do parágrafo único do artigo 4.º da Lei n.º 4.591/1964.

Com efeito, o restabelecimento, pelo artigo 1.345 do Código Civil de 2002 – com o acréscimo relativo aos juros moratórios -, do texto original do parágrafo único do artigo 4.º da Lei n.º 4.591/1964, antes suprimido pela sua redação atual, oriunda da Lei n.º 7.182/1984, é sintomático da revogação assinalada.

Em suma: as características da obrigação propter rem de dare, especialmente no tocante à amplitude da responsabilidade do titular de direitos sobre a coisa pelos débitos a ela atrelados – extraídos da interpretação sistemática, primeiro, do artigo 12 com o parágrafo único do artigo 4.º (em suas duas versões), ambos da Lei n.º 4.591/1964, e, depois, do artigo 1.336, I, com o artigo 1.345, do Código Civil de 2002 -, e a evolução histórica das modificações legislativas confortam a revogação afirmada.

ratio do parágrafo único do artigo 4.º da Lei n.º 4.591/1964, direcionada à tutela da saúde financeira e do equilíbrio econômico do condomínio, fica esvaziada, diante da norma retirada do texto do artigo 1.345 do Código Civil de 2002, igualmente voltada, em substituição à norma anterior, à proteção, sob nova e mais consistente capa, da propriedade comum.

Tal regra, é certo, perdeu a sua instrumentalidade, não podendo subsistir – não apenas em razão da revogação tácita aludida -, mas também porque, sem finalidade que a justifique razoavelmente, entrava o tráfego econômico, a circulação dos bens imóveis e a correspondência entre a realidade registrária e a factual.

Por isso, revogada a regra do parágrafo único do artigo 4.º da Lei n.º 4.591/1964, a prévia comprovação de quitação dos débitos condominiais não é mais condição para transferência de direitos relativos à unidade condominial.

Pelo exposto, afasto a preliminar de nulidade e, no mérito, dou provimento ao recurso.

(a) JOSÉ RENATO NALINI, Corregedor Geral da Justiça e Relator (D.J.E. de 15.08.2012)