CSM|SP: Direito registral – Dúvida registrária – Mandado de usucapião extraordinária – Ordem judicial (distinção de título judicial) – Dever de cumprimento com qualificação mitigada – Gratuidade da justiça – Abrangência dos emolumentos do registro (CPC, art. 98, §1º, ix) – Óbices formais afastados (ausência de assinatura do engenheiro no memorial; confrontação desatualizada passível de retificação; desnecessidade de “habite-se” e CND quando a construção não integra a declaração de domínio) – LRP, art. 213, i, “b” – Apelação provida – Dúvida improcedente – Determinado o registro do mandado.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Cível nº 1001516-61.2025.8.26.0390, da Comarca de Nova Granada, em que é apelante LUSIMAR GARCIA GOMES, é apelado OFICIAL DE REGISTRO DE IMÓVEIS E ANEXOS DA COMARCA DE NOVA GRANADA.

ACORDAM, em Conselho Superior da Magistratura do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão: “Deram provimento à apelação para julgar improcedente a dúvida e determinar o registro do mandado, v u.”, de conformidade com o voto do Relator, que integra este acórdão.

O julgamento teve a participação dos Exmos. Desembargadores FERNANDO TORRES GARCIA (PRESIDENTE TRIBUNAL DE JUSTIÇA) (Presidente), BERETTA DA SILVEIRA (VICE PRESIDENTE), VICO MAÑAS (DECANO), TORRES  DE CARVALHO(PRES. SEÇÃO DE DIREITO PÚBLICO), HERALDO DE OLIVEIRA (PRES. SEÇÃO DE DIREITO PRIVADO) E CAMARGO ARANHA FILHO(PRES. SEÇÃO DE DIREITO CRIMINAL).

São Paulo, 11 de dezembro de 2025.

FRANCISCO LOUREIRO

Corregedor Geral da Justiça e Relator

APELAÇÃO CÍVEL nº 1001516-61.2025.8.26.0390

Apelante: Lusimar Garcia Gomes

Apelado: Oficial de Registro de Imóveis e Anexos da Comarca de Nova Granada

VOTO Nº 43.984

Dúvida registral – Apelação – Usucapião extraordinária – Recurso provido.

I. Caso em Exame

1. Apelação interposta contra sentença que manteve a recusa ao registro de mandado de usucapião extraordinária.

II. Questão em Discussão

2. Discute-se (i) se a gratuidade processual abrange os emolumentos relativos ao registro de usucapião; (ii) se a falta de assinatura do engenheiro no memorial, a ausência de “habite-se” e CND e a indicação errônea de uma das confrontações do bem impedem o registro.

III. Razões de Decidir

3. Ordem judicial não se confunde com título judicial, cabendo ao registrador, na primeira hipótese, esforçar- se ativamente para dar cumprimento ao que lhe foi determinado, abstendo-se de criar óbices excessivos à inscrição.

4. A gratuidade processual concedida no processo de usucapião abrange os emolumentos devidos pelo registro, conforme art. 98, § 1º, IX, do CPC.

5. A falta de assinatura do engenheiro no memorial descritivo e a indicação equivocada de uma das confrontações do bem constituem meras irregularidades que não afetam a declaração de domínio.

6. Não há necessidade de apresentação de “habite-se” e de CND se a construção existente no local não foi objeto da declaração de domínio.

IV. Dispositivo e Tese

7. Recurso provido.

Tese de julgamento: 1. A gratuidade processual abrange os emolumentos do registro de usucapião. 2. Irregularidades formais não impedem o registro do mandado de usucapião.

Legislação Citada:

– CPC, art. 98, § 1º, IX

– Lei nº 6.015/73, art. 213, I, “b”

Jurisprudência Citada:

– CSM/SP, Apelação nº 1006463-83.2023.8.26.0664, Rel. Des. Francisco Loureiro, j. 15/8/2024

– CSM/SP, Apelação nº 0000424-82.2011.8.26.0543, Rel. Des. José Renato Nalini, j. 7/2/2013

– CGJ/SP, Processo nº 167.709/2013, Rel. Des. Hamilton Elliot Akel, j. 27/2/2015

Trata-se de apelação interposta por Lusimar Garcia Gomes contra a r. sentença de fls. 390/392, proferida pelo MM. Juiz Corregedor Permanente do Registro de Imóveis e Anexos de Nova Granada, que manteve a recusa ao registro de mandado de usucapião extraordinária, cuja expedição foi determinada nos autos nº 1001496-12.2021.8.26.0390, que tramitaram perante a Vara Única da Comarca de Nova Granada.

A apelante sustenta, em síntese, que a gratuidade concedida no processo judicial de usucapião abrange os emolumentos relativos ao registo; que o memorial descritivo do bem está regular e devidamente assinado pelo engenheiro responsável; e que a falta de apresentação de “habite-se” e de CND da Receita Federal não pode impedir a inscrição, uma vez que ela decorre de ordem judicial. Pede, ao final, a reforma da sentença, com o devido registro da usucapião declarada judicialmente (fls. 395/400).

O Oficial apresentou contrarrazões (fls. 405/407).

A Procuradoria de Justiça manifestou-se pelo não provimento do recurso (fls. 422/428).

É o relatório.

De acordo com a suscitação da dúvida (fls. 1/5), apresentado a registro mandado de usucapião extraído do processo nº 1001496-12.2021.8.26.0390, que tramitou perante a Vara Única da Comarca de Nova Granada, o registrador indicou os seguintes óbices: a) falta de assinatura do engenheiro responsável pelo croqui indicado na sentença; b) erro na indicação da confrontação do imóvel usucapiendo; c) ausência de “habite-se” e de CND relativos à construção existente no local; d) a gratuidade processual não foi estendida ao ato de registro.

Mantidas as exigências pelo MM. Juiz Corregedor Permanente (fls. 390/392), o interessado interpôs apelação (fls. 395/400).

O recurso deve ser integralmente provido.

De início, necessário que se diferencie título judicial de ordem judicial, ressaltando que no caso em análise se está diante de documento que se enquadra na segunda categoria (fls. 329). Essa distinção não é novidade nesta esfera administrativa, cujos julgados, há tempos, destacam o tratamento diverso a ser dado a cada um deles.

No processo nº 167.709/2013, julgado em 27 de fevereiro de 2015, o então Corregedor Geral da Justiça, Des. Hamilton Elliot Akel, aprovou parecer em que a distinção entre título e ordem judiciais foi assim sintetizada:

O título judicial, embora com alguma mitigação (CSM: Apelação Cível nº 1025290-06.2014.8.26.0100, relator Des. Elliot Akel), também se sujeita à qualificação do registrador. Já a ordem judicial, salvo hipóteses excepcionais de patente ilegalidade, tem de ser necessariamente cumprida, sob pena de desobediência.

Assim, ao receber um título judicial (formal de partilha, certidão de penhora, carta de arrematação), o registrador – respeitados alguns limites como, por exemplo, a não incursão no mérito judicial – é livre para qualificá-lo negativamente sem que isso configure descumprimento de ordem judicial.

Todavia, se o MM. Juízo que expediu o título examinar e afastar a recusa do registrador e, ato contínuo, determinar-lhe o ingresso no registro de imóveis, o que antes era um título torna-se uma ordem judicial, cujo cumprimento não pode ser postergado, sob pena de desobediência”.

Ou seja, em se tratando de ordem judicial, instrumentalizada por mandado (fls. 329), cabe ao registrador esforçar-se ativamente para dar cumprimento ao que lhe foi determinado, abstendo- se de criar óbices à inscrição.

Considerando que no caso em análise houve ordem judicial (fls. 329), todas as exigências devem ser afastadas.

A falta de assinatura do engenheiro responsável no memorial descritivo indicado na sentença (fls. 16 do processo de usucapião, copiada aqui a fls. 23) não impede o registro. Trata-se de mera irregularidade que não impossibilitou a declaração judicial do domínio em favor do interessado.

Se o Juiz de Direito, na esfera jurisdicional, entendeu que o memorial sem assinatura do engenheiro responsável é suficiente para o reconhecimento da usucapião (fls. 317), não é dado ao registrador, após o trânsito em julgado da sentença (fls. 327), se opor ao cumprimento da ordem por esse motivo.

O erro na indicação da confrontação do imóvel usucapiendo também não impede o registro da sentença.

De acordo com o art. 213, I, “b”, da Lei nº 6.015/73, o oficial retificará o registro ou a averbação, inclusive de ofício, nos casos de atualização de confrontação.

Assim, mesmo que o registrador tenha notado que uma das confrontações do imóvel urbano usucapiendo está desatualizada uma vez que a descrição constante no processo judicial menciona matrícula imobiliária que deu origem a um loteamento (fls. 3), cabe a ele descerrar a matrícula decorrente da usucapião para, em seguida, retificar a confrontação, na forma do dispositivo legal acima mencionado.

Em outros termos: confrontação desatualizada não justifica o descumprimento de ordem judicial decorrente de sentença de usucapião.

A ausência de “habite-se” e de CND não afeta a inscrição, porquanto o memorial descritivo de fls. 23 e os croquis de fls. 24 e 25 peças expressamente indicadas no dispositivo da sentença (fls. 317 deste feito, mencionando fls. 15/17 do feito original) não fazem qualquer referência à construção existente no local.

Dessa forma, o Oficial deve descerrar a matrícula do terreno e aguardar que os interessados providenciem a regularização da construção. É dizer, o registro da usucapião não depende da regularização concomitante da edificação existente no local.

Finalmente, como bem destacado pela apelante, a gratuidade processual se estende, sim, aos emolumentos devidos pelo ato de registro.

O art. 98, § 1º, IX, do Código de Processo Civil não deixa margem à dúvida de que a gratuidade concedida no processo judicial de usucapião abrange os emolumentos necessários para o registro da sentença. Preceitua o dispositivo do CPC acima mencionado:

Art. 98. A pessoa natural ou jurídica, brasileira ou estrangeira, com insuficiência de recursos para pagar as custas, as despesas processuais e os honorários advocatícios tem direito à gratuidade da justiça, na forma da lei.

§ 1º A gratuidade da justiça compreende:

(…)

IX – os emolumentos devidos a notários ou registradores em decorrência da prática de registro, averbação ou qualquer outro ato notarial necessário à efetivação de decisão judicial ou à continuidade de processo judicial no qual o benefício tenha sido concedido.

Embora a sentença da usucapião seja meramente declaratória de um direito de propriedade preexistente, somente com a abertura da matrícula respectiva pode se considerar efetivada a declaração de domínio. Usucapião sem registro impede, por exemplo, a alienação do bem, que é uma das faculdades básicas de que o proprietário dispõe[1].

Não faria sentido permitir que o necessitado requeira a declaração de domínio do imóvel que ocupa de forma gratuita para, ao final, dificultar o registro do mandado respectivo, ignorando decisão judicial anterior e exigindo a renovação de análise a respeito da condição financeira do interessado. Parece evidente que aquele que não tem condição de suportar as custas do processo de usucapião, não poderá arcar com os emolumentos relativos ao registro da sentença respectiva.

Embora não fosse a questão principal em julgamento, a extensão do benefício da justiça gratuita aos emolumentos devidos pelo registro da sentença de usucapião foi recentemente garantida em acórdão de minha relatoria julgado por este Conselho Superior:

Por outro lado, não se desconhece a impossibilidade de encaminhamentos de títulos eletrônicos pelo e-Protocolo sem o pagamento de depósito prévio, ainda que o usuário do sistema seja beneficiário da Justiça Gratuita. O tema foi objeto de procedimento iniciado perante a Corregedoria Geral da Justiça do Estado de São Paulo, com encaminhamento da questão ao Egrégio Conselho Nacional de Justiça pois, atualmente, os serviços de registro de imóveis pelos meios eletrônicos estão sendo prestados pelo Operador Nacional do Sistema de Registro Eletrônico de Imóveis (ONR), nos termos dos Provimentos CNJ nº 89/2019 e nº 109/2020.

Até que se resolva a controvérsia, portanto, para encaminhamento de títulos oriundos de processos judiciais eletrônicos, caberá à parte beneficiária da Justiça Gratuita, ora apelante, requerer a expedição de mandado de usucapião em meio físico, por ofício de Justiça (Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça, Tomo I, arts. 221 a 223 e 1.273), para respectivo protocolo, pelo interessado, diretamente no balcão da Serventia Extrajudicial, facultado o envio, por meio eletrônico, diretamente pelo juízo“. (CSM/SP Apelação nº 1006463-83.2023.8.26.0664, j. em 15/8/2024).

E de forma mais específica, este Conselho Superior ampliou a gratuidade concedida judicialmente ao registro da usucapião constitucional:

Sob outro prisma, constou do mandado judicial, a condição da interessada de beneficiária da justiça gratuita (fls. 28). Ao lado disso – subsumindo-se a situação por ela trazida à hipótese legal de usucapião especial de imóvel urbano, usucapião constitucional pro moradia, pro casa, pro habitatio, previsto no artigo 183 da CF/1988 -, aplica-se a regra do § 2.° do artigo 12 do Estatuto da Cidade, in verbis:

Art. 12. São partes legítimas para a propositura da ação de usucapião especial urbana:

(…)

§ 2.º O autor terá os benefícios da justiça gratuita e da assistência judiciária gratuita, inclusive perante o cartório de registro de imóveis (grifei)

Por conseguinte, os emolumentos são inexigíveis. Quero dizer: também a outra exigência questionada pela interessada, a única agora remanescente, é injustificável. A propósito, a abordagem de tal assunto, com enfoque na espécie de usucapião tratada neste procedimento de dúvida, dá outro fundamento para afastar a exigência relativa ao ITBI, ofensiva – pois com ela incompatível – à ratio inspiradora da norma constitucional, dirigida à tutela da moradia e à realização da função social da propriedade” (CSM/SP Apelação nº 0000424-82.2011.8.26.0543, Rel. Des. José Renato Nalini, j. em 7/2/2013).

Todavia, o art. 98, § 1º, IX, do Código de Processo Civil, que não estava em vigor quando do julgamento acima transcrito, é incisivo no sentido de que a gratuidade concedida judicialmente espraia seus efeitos sobre os emolumentos devidos em decorrência do registro necessário à efetivação de decisão judicial, o que certamente alcança a inscrição da sentença de usucapião, seja qual for a modalidade da declaração de domínio.

É o caso, portanto, de afastamento das exigências indicadas pelo Oficial e mantidas pelo MM. Juiz Corregedor Permanente na r. sentença proferida.

Ante o exposto, pelo meu voto, dou provimento à apelação para julgar improcedente a dúvida e determinar o registro do mandado.

FRANCISCO LOUREIRO

Corregedor Geral da Justiça e Relator

Nota:

[1] Art. 1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha.

(DJEN de 17.12.2025 – SP)