CSM|SP: Registro de imóveis – Suscitação de dúvida – Integralização de capital social com imóveis por contrato de constituição de sociedade (instrumento particular registrado na jucesp) – Exigência registrária de comprovação de ITBI sobre “diferença” entre valor declarado no negócio e valor venal de referência municipal – Tema repetitivo 1113 do STJ: presunção do valor declarado, vedação de arbitramento prévio por “valor de referência” e necessidade de processo administrativo (CTN, arts. 148 e 149) para eventual desconstituição – Atribuição do oficial limitada à verificação da existência do recolhimento tributário, não à exatidão do quantum, salvo irregularidade manifesta – Contribuinte que demonstrou ter cientificado o fisco municipal acerca da operação e dos valores – Cobrança de eventual diferença a cargo do município em via própria – Dúvida improcedente – Recurso provido.

ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Cível nº 1066838-25.2025.8.26.0100, da Comarca de São Paulo, em que é apelante GONÇALVES & LHANO HOLDING DE ADMINISTRAÇÃO DE BENS LTDA, é apelado 6º OFICIAL DE REGISTRO DE IMÓVEIS DA COMARCA DA CAPITAL.
ACORDAM, em Conselho Superior da Magistratura do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão: “Deram provimento, v u.”, de conformidade com o voto do Relator, que integra este acórdão.
O julgamento teve a participação dos Exmos. Desembargadores FERNANDO TORRES GARCIA (PRESIDENTE TRIBUNAL DE JUSTIÇA) (Presidente), BERETTA DA SILVEIRA (VICE PRESIDENTE), VICO MAÑAS (DECANO), TORRES DE CARVALHO(PRES. SEÇÃO DE DIREITO PÚBLICO), HERALDO DE OLIVEIRA (PRES. SEÇÃO DE DIREITO PRIVADO) E CAMARGO ARANHA FILHO(PRES. SEÇÃO DE DIREITO CRIMINAL).
São Paulo, 11 de dezembro de 2025.
FRANCISCO LOUREIRO
Corregedor Geral da Justiça e Relator
APELAÇÃO CÍVEL nº 1066838-25.2025.8.26.0100
Apelante: Gonçalves & Lhano Holding de Administração de Bens Ltda
Apelado: 6º Oficial de Registro de Imóveis da Comarca da Capital
VOTO Nº 43.993
Direito registral – Apelação – Registro de imóveis – Procedência do recurso.
I. Caso em Exame
1. Apelação interposta contra sentença que manteve a recusa de registro de instrumento particular de contrato de constituição de sociedade, em que integralizado o capital social com imóveis. A sentença exigiu comprovação de pagamento do ITBI.
II. Questão em Discussão
2. Discute-se a exigência de comprovação do pagamento do ITBI sobre a diferença entre o valor dos bens imóveis indicado no negócio jurídico e o valor de referência desses mesmos bens.
III. Razões de Decidir
3. O Superior Tribunal de Justiça, nos autos do Recurso Especial nº 1.937.821/SP, fixou as seguintes teses para o Tema Repetitivo 1113: “a) a base de cálculo do ITBI é o valor do imóvel transmitido em condições normais de mercado, não estando vinculada à base de cálculo do IPTU, que nem sequer pode ser utilizada como piso de tributação; b) o valor da transação declarado pelo contribuinte goza da presunção de que é condizente com o valor de mercado, que somente pode ser afastada pelo fisco mediante a regular instauração de processo administrativo próprio (art. 148 do CTN); c) o Município não pode arbitrar previamente a base de cálculo do ITBI com respaldo em valor de referência por ele estabelecido unilateralmente”. Prevalecendo o valor do negócio informado pelo interessado e sendo de competência do Fisco Municipal exigir eventual diferença de tributo, mediante o processo administrativo próprio, não há como se legitimar a exigência do Oficial de Registro de Imóveis pela comprovação do recolhimento do ITBI sobre a diferença entre o valor do imóvel indicado no negócio jurídico e o que consta no Município a título de valor venal de referência, notadamente quando o contribuinte demonstra ter comunicado o Município acerca da transferência do bem a título de integralização de capital por valor inferior ao valor venal de referência.
4. Nada impede que o ente tributante apure e faça a cobrança em via própria do valor correto que entende devido.
IV. Dispositivo e Tese
5. Recurso provido.
Tese de julgamento: Não é atribuição do Oficial de Registro controlar a exatidão do imposto de transmissão recolhido quando o contribuinte demonstra que cientificou o Fisco Municipal a respeito do negócio jurídico, a quem cabe, nos termos das teses fixadas pelo Superior Tribunal de Justiça para o Tema Repetitivo 1113, tomar providências para eventual cobrança de diferença do ITBI.
Legislação Citada:
Lei nº 6.015/73, art. 289; Código Tributário Nacional, art. 134, VI, art. 148 e art. 149.
Jurisprudência Citada:
STJ, Tema Repetitivo 1113; Apelação Cível n.º 268.549, rel. Des. Andrade Junqueira, j. 2.5.1978; Apelação Cível n.º 9.674-0/0, rel. Des. Milton Evaristo dos Santos, j. 10.6.1989; Apelação Cível n.º 28.382-0/7, rel. Des. Antônio Carlos Alves Braga, j. 7.12.1995; Apelação Cível n.º 0002604-73.2011.8.26.0025, rel. Des. José Renato Nalini, j. 20.9.2012; Apelação Cível n.º 1001415-15.2021.8.26.0309, rel. Des. Ricardo Anafe, j. 22.11.2021; Apelação Cível nº 1014481-63.2023.8.26.0577, rel. Des. Fernando Antonio Torres Garcia, j. 15.12.2023; Apelação Cível n.º 1093315-27.2021.8.26.0100, rel. Des. Fernando Antonio Torres Garcia, j. 11.2.2022.
Trata-se de apelação interposta por Gonçalves & Lhano Holding de Administração de Bens Ltda. contra a r. sentença proferida pela MMª Juíza Corregedora Permanente do 6º Oficial de Registro de Imóveis de São Paulo que, na dúvida suscitada, manteve a recusa de ingresso, no fólio real, de seu instrumento particular de contrato de constituição da sociedade empresária, registrado na Junta Comercial do Estado de São Paulo, em que integralizado o capital social com nove imóveis, sendo sete matriculados na referida serventia (nºs. 2.797, 35.612, 76.472, 101.301, 103.407, 251.830 e 253.423).
A r. sentença (fls. 179/185) julgou procedente a dúvida suscitada para manter o óbice registrário, sob o entendimento de que: (i) aos registradores imobiliários é imposto o dever de exigir a comprovação do recolhimento do imposto de transmissão de bem imóvel – ITBI para registro da transferência da titularidade do domínio junto à serventia predial, conforme item 117 e subitem 117.1 do Capítulo XX das NSCGJ, do artigo 289 da Lei n° 6.015/73 e do artigo 134, inciso VI, do Código Tributário Nacional; e (ii) não há, no presente caso, comprovação do recolhimento do ITBI sobre a parcela do valor dos imóveis que superou de forma flagrante o montante do capital integralizado.
Em apelação (fls. 187/205), o recorrente requer o afastamento dos óbices registrários, alegando que o mesmo contrato social que formalizou a integralização dos 9 (nove) imóveis foi apresentado para registro em diferentes serventias, sem que elas tenham suscitado qualquer óbice. Aduz que se trata de uma sociedade empresária limitada unipessoal sem exploração direta de atividades imobiliárias. Afirma que é materialmente impossível aferir qualquer preponderância de atividade imobiliária porque teve suas atividades iniciadas no ato de sua constituição, ou seja, em março de 2025, insistindo, então, na imunidade tributária. Defende a inexistência de indício ou alegação de que a diferença entre o valor da integralização e o valor venal de referência tenha sido destinada à formação de reserva de capital. Aduz que a própria autoridade fiscal competente (Prefeitura) emitiu declarações formais atestando a não incidência do ITBI sobre a operação de integralização para cada um dos imóveis, pedindo, ao final, a reforma da sentença.
A Douta Procuradoria de Justiça opinou pelo não provimento do recurso (fls. 271/275).
É o relatório.
Apresentado a registro, no fólio real, o instrumento particular de contrato de constituição da sociedade empresária limitada unipessoal “Gonçalves & Lhano Holding de Administração de Bens Ltda.” (fls. 41/52), registrado na Jucesp, para integralização de seu capital social com nove imóveis, entre os quais sete deles matriculados no 6º Oficial de Registro de Imóveis da Capital (nº 2.797, 35.612, 76.472, 101.301, 103.407, 251.830 e 253.423), sobreveio a nota de exigência nº 874.262, com o seguinte teor (fls. 8/9):
“Trata-se do instrumento particular de contrato de constituição da sociedade limitada unipessoal, datado de 05 de fevereiro de 2025, registrado na Junta Comercial do Estado de São Paulo JUCESP sob NIRE nº 35266903401, em 12 de março de 2025, apresentado em forma de certidão autenticada digitalmente e assinada em 13 de março de 2025, completado com o requerimento datado de 3 de abril de 2025, tendo por objeto os imóveis matriculados sob nºs 2.797, 35.612, 76.472, 101.301, 103.407, 251.830 e 253.423, nesta Serventia Imobiliária. Feita a análise do título, verificou-se que:
1- O interessado deverá apresentar as guias do ITBI (Imposto de Transmissão de Bens Imóveis Inter-Vivos e Direitos a Eles Relativos), acompanhadas dos comprovantes de pagamento, com relação a parcela do valor dos Imóveis que superou o capital integralizado, nos termos do que dispõe a PN SF nº 01/2021 e artigo 289 da Lei 6.015/73, e constante no item “2” das Declarações nºs 2025-023073/NI, 2025.023072/NI, 2025-023078/NI, 2025-023079/NI, 2025-023080/NI, 2025-023082/NI e 2025-023083/NI.
É importante ressaltar que conforme orientação da Prefeitura Municipal de São Paulo, nos casos em que a integralização de capital tenha sido formalizada mediante instrumento particular de contrato social ou alteração contratual, a data a ser preenchida na guia de ITBI é a do próprio instrumento particular, e não a do registro do ato na Junta Comercial.
2- Não foi possível validar a assinatura digital constante no requerimento apresentado, por meio da plataforma “Verificador de Conformidade do Padrão de Assinatura Digital ICP Brasil” devido ao fato do requerimento ser nato digital impresso.
Deste modo, para que o mesmo tenha acesso ao fólio real, a parte interessada deverá apresentá-lo em mídia digital (pendrive ou CD), devidamente assinado com certificado que atenda aos requisitos da ICP – Brasil, obedecendo às condições previstas nos itens 365 a 374 do Capítulo XX, das Normas de Serviço da Egrégia Corregedoria Geral da Justiça, ou alternativamente, poderá ser apresentado assinado fisicamente com firma reconhecida, nos termos do artigo 221, II, da Lei Federal nº 6.015/73.
Diante do exposto, o título ora examinado recebe qualificação negativa, estando sujeito a novas exigências no ato da reapresentação.”
Durante a vigência da prenotação, o título foi reapresentado, restando superada a segunda exigência, mantida tão somente à relativa ao recolhimento do ITBI, razão pela qual o interessado solicitou o encaminhamento da questão para solução por meio de Suscitação de Dúvida.
Na dúvida suscitada, foi proferida a r. sentença de procedência (fls. 179/185), sob entendimento da necessidade da comprovação do recolhimento do ITBI sobre a parcela do valor dos imóveis que superou o montante do capital integralizado.
O óbice não poderia impedir o ingresso do título no fólio real.
Como constou do item 1 da Nota Devolutiva (fls. 08), o Oficial exigiu a comprovação do recolhimento do ITBI sobre a diferença do valor que excedeu o limite do capital social integralizado, tomando por base as Certidões de Dados Cadastrais dos Imóveis IPTU 2025 (fls. 109 a 115).
Como acima dito, a exigência deveria ser afastada, pelas razões abaixo articuladas.
O Superior Tribunal de Justiça fixou as seguintes teses sobre a base de cálculo do ITBI, em caráter vinculativo (Tema Repetitivo 1113):
“a) a base de cálculo do ITBI é o valor do imóvel transmitido em condições normais de mercado, não estando vinculada à base de cálculo do IPTU, que nem sequer pode ser utilizada como piso de tributação;
b) o valor da transação declarado pelo contribuinte goza da presunção de que é condizente com o valor de mercado, que somente pode ser afastada pelo fisco mediante a regular instauração de processo administrativo próprio (art. 148 do CTN);
c) o Município não pode arbitrar previamente a base de cálculo do ITBI com respaldo em valor de referência por ele estabelecido unilateralmente.” (sublinhei)
Dentro desse contexto, não cabe realmente ao Oficial questionar o preço do negócio jurídico dispositivo, a base de cálculo do ITBI daí resultante (pautada pela declaração negocial dos contratantes), impor, ainda que amparado em legislação municipal, a observância da base de cálculo do IPTU ou, conforme o caso, do valor venal de referência fixado pelo Município e, nessa senda, exigir, como condição para o registro do título atinente ao instrumento particular de contrato de constituição da sociedade empresária limitada unipessoal “Gonçalves & Lhano Holding de Administração de Bens Ltda.”, por meio do qual houve a integralização do capital social mediante a conferência, pelo sócio José Abílio Fernandes Lhano, dos imóveis objetos das matrículas nº 2.797, 35.612, 76.472, 101.301, 103.407, 251.830 e 253.423 daquela serventia (fls. 88/89, 91/92, 74/75, 77/78, 83/84, 80/81 e 86, respectivamente), a comprovação do recolhimento do ITBI sobre a diferença que teria excedido o capital social.
Note-se que não se afirma e nem se nega aqui a constitucionalidade da lei municipal. Apenas e tão somente se aponta o contraste com precedente de natureza normativa do Superior Tribunal de Justiça a respeito do tema, a ser seguido em caráter normativo pelos tribunais inferiores.
A questão posta é de sistema jurídico, e não de crise de constitucionalidade. O que se discute, em última análise, é se faz sentido obrigar as partes a impetrarem milhares de mandados de segurança, assoberbando o Poder Judiciário, para fazer valer tema repetitivo do Superior Tribunal de Justiça, que se encontra em contraste com a jurisprudência administrativa que prestigia normas municipais.
Na lição de Karl Engish, na base de todas as regras hermenêuticas para harmonizar normas aparentemente conflitantes, figura como verdadeiro postulado o princípio da coerência da ordem jurídica (Introdução ao Pensamento Jurídico, Lisboa: Fundação Kalouste Gulbenkian, 6ª Edição, p. 313).
Lembre-se que a noção de sistema constitui um dos principais traços do direito ocidental moderno, gerando um novo paradigma científico e substituindo com vantagem o velho critério exegético dos Códigos Civis do Século XIX (Claus-Wilhelm Canaris. Pensamento Sistemático e Noção de Sistema na Ciência do Direito, 2ª Edição Fundação Calouste Gulbenkian).
Além disso, cabe destacar que são reiteradas as manifestações deste Conselho no sentido de que a fiscalização que cabe ao delegatário de serviço extrajudicial não vai além da aferição da existência ou não do recolhimento do tributo, sendo descabido controle da correção do valor recolhido, salvo hipótese de flagrante irregularidade.
Nesse sentido, a propósito, inspirando-a e forjando-a, a Apelação Cível n.º 268.549, rel. Des. Andrade Junqueira, j. 2.5.1978 (“se o recolhimento foi inferior ao devido, a matéria diz respeito ao fisco … e não ao oficial do Registro de Imóveis”), a Apelação Cível n.º 9.674-0/0, rel. Des. Milton Evaristo dos Santos, j. 10.6.1989, e a Apelação Cível n.º 28.382-0/7, rel. Des. Antônio Carlos Alves Braga, j. 7.12.1995 (“no caso…, a qualificação do Oficial, na matéria concernente ao imposto de transmissão, não vai além da aferição sobre seu recolhimento, e não sobre a integralidade de seu valor”), prestigiadas, em consolidação dessa intelecção, pela Apelação Cível n.º 0002604-73.2011.8.26.0025, rel. Des. José Renato Nalini, j. 20.9.2012, pela Apelação Cível n.º 1001415-15.2021.8.26.0309, rel. Des. Ricardo Anafe, j. 22.11.2021, e pela Apelação Cível nº 1014481-63.2023.8.26.0577, rel. Des. Fernando Antonio Torres Garcia, j. 15.12.2023.
É oportuno ainda realçar, em reforço da impropriedade da exigência ora discutida, que o Município de São Paulo foi informado da incorporação ao patrimônio de Gonçalves & Lhano Holding de Administração de Bens Ltda. de 100% dos imóveis, pelo valor de R$ 69.397,28, conforme a Declaração nº 2025-023073/NI (fls. 58), pelo valor de R$ 111.035,64, conforme a Declaração nº 2025-023072/NI (fls. 60), pelo valor de R$ 208.191,84, conforme a Declaração nº 2025-023078/NI (fls. 62), pelo valor de R$ 54.948,00, conforme a Declaração nº 2025-023079/NI (fls. 64), pelo valor de R$ 20.000,00, conforme a Declaração nº 2025-023080/NI (fls. 66), pelo valor de R$ 277.589,13, conforme a Declaração nº 2025-023082/NI (fls. 68) e pelo valor de R$ 69.397,28, conforme a Declaração nº 2025-023083/NI (fls. 70), de sorte que nada foi omitido ao Fisco Municipal.
Quer dizer, o Fisco Municipal foi cientificado de que todos os imóveis apresentam valor venal superior ao que foi integralizado, como exemplo, o imóvel objeto da matrícula 251.830 que tem valor venal equivalente a R$ 4.746.634,00 e foi integralizado pelo valor de R$ 277.589,13, nada impedindo, portanto, que a Fazenda busque, na esfera própria, o valor que entenda devido a título de ITBI, desde que o faça nos termos do art. 149 do Código Tributário Nacional e de precedente desta E. Corte, expresso na Apelação Cível n.º 1093315-27.2021.8.26.0100, rel. Des. Fernando Antonio Torres Garcia, j. 11.2.2022.
Indiscutível que os valores atribuídos podem ser afastados pelo fisco, com cobrança de ITBI sobre eventual diferença que verificar, mas essa discussão deve ser objeto de processo administrativo próprio.
Ante o exposto, pelo meu voto dou provimento à apelação para julgar improcedente a dúvida.
FRANCISCO LOUREIRO
Corregedor Geral da Justiça e Relator
(DJEN de 17.12.2025 – SP)