Lei 11.441/2007 – Aspectos práticos da Separação, Divórcio, Inventário e Partilha Consensuais.

Zeno Veloso*

I – Introdução

A Lei nº 11.441, de 4 de janeiro de 2007, alterou completamente – e para melhor, muito melhor – o panorama do direito brasileiro com relação aos temas que veio regular – a separação, o divórcio, o inventário e a partilha – que, desde então, puderam ser feitos por via administrativa, através de escritura pública, observados os requisitos mencionados na aludida lei, representando negócios jurídicos com eficácia plena, por si mesmos, abrindo-se, pois, a faculdade de serem resolvidas essas questões fora do Poder Judiciário.

No art. 1º, a Lei nº 11.441/2007 deu nova redação ao art. 982 do Código de Processo Civil, que ficou assim: “Havendo testamento ou interessado incapaz, proceder-se-á ao inventário judicial; se todos forem capazes e concordes, poderá fazer-se o inventário e a partilha por escritura pública, a qual constituirá título hábil para o registro imobiliário. Parágrafo único. O tabelião somente lavrará a escritura pública se todas as partes interessadas estiverem assistidas por advogado comum ou advogados de cada uma delas, cuja qualificação e assinatura constarão do ato notarial”. Aqui, a referida lei regulou tema relativo ao Direito das Sucessões.

O art. 3º da Lei nº 11.441/2007 acrescentou o art. 1.124-A no Código de Processo Civil, verbis: “A separação consensual e o divórcio consensual, não havendo filhos menores ou incapazes do casal e observados os requisitos legais quanto aos prazos, poderão ser realizados por escritura pública, da qual constarão as disposições relativas à descrição e à partilha dos bens comuns e à pensão alimentícia e, ainda, ao acordo quanto à retomada pelo cônjuge de seu nome de solteiro ou à manutenção do nome adotado quando se deu o casamento. § 1º A escritura não depende de homologação judicial e constitui título hábil para o registro civil e o registro de imóveis. § 2º O tabelião somente lavrará a escritura se os contratantes estiverem assistidos por advogado comum ou advogados de cada um deles, cuja qualificação e assinatura constarão do ato notarial. § 3º A escritura e demais atos notariais serão gratuitos àqueles que se declararem pobres sob as penas da lei”. Neste ponto, a citada lei normatizou matéria integrante do Direito de Família.

Os poucos artigos da Lei nº 11.441/2007 têm gerado efeitos incontáveis, regendo situações diversas, inimagináveis por seus autores, mostrando que a lei, muitas vezes, elege o seu destino, abre veredas, segue caminhos próprios e é mais sábia do que o legislador.

Como apareceram muitas divergências quanto à aplicação da referida lei – e algumas dúvidas e objeções foram apresentadas pelos que renegam o novo e preferem manter a mesmice, o atraso -, os Tribunais de alguns Estados emitiram provimentos editando regras interpretativas e estabelecendo preceitos relativos à aplicação da Lei nº 11.441/2007. Entretanto, muitas regras dos diversos Tribunais eram conflitantes entre si, gerando desconforto, perplexidade, insegurança. O Conselho Nacional de Justiça – CNJ resolveu intervir, considerando a necessidade de adoção  de medidas uniformes quanto à aplicação dessa lei em todo o território nacional, com vistas a prevenir e evitar conflitos, e editou a Resolução no35, de 24 de abril de 2007, que é de leitura e conhecimento obrigatórios para quem deseja estudar o assunto.

A Resolução no35 do CNJ alcançou o objetivo de pacificar a matéria, superando as dificuldades que surgiram com a descoincidência entre os provimentos estaduais, mas, sem dúvida, algumas regras que ela contém são de direito material, autênticas normas substanciais, que só poderiam ser emitidas pelo Congresso Nacional, e com a sanção do Presidente da República. Enquanto a Lei 11.441/2007 tem somente 5 artigos, sendo que o art. 4° afirma que ela entra em vigor na data de sua publicação e o art. 5° revoga o parágrafo único do art. 983 da Lei n° 5.869 de 11 de janeiro 1973 – Código de Processo Civil, restando os 3 primeiros artigos para tratar do tema de inventário, partilha, separação consensual e divórcio consensual, a Resolução n° 35/2007 do CNJ, para regulamentar esses três dispositivos, pasmem, tem 54 artigos!

Não há nenhum exagero ao afirmar que a Lei nº 11.441/2007 é de extrema importância, introduziu um avanço notável, representa verdadeiro marco no direito brasileiro, porque faculta aos interessados adotar um procedimento abreviado, simplificado, fora do Poder Judiciário, sem burocracia, sem intermináveis idas e vindas. O cidadão passou a ter razoável certeza do momento em que começa e da hora em que acaba o procedimento, a solução de seu problema. E isso é fundamental, sobretudo quando se trata de superar a crise dolorosa e aguda na relação familiar.

Se o afeto acabou, o relacionamento amoroso findou, o casamento faliu, marido e mulher, com a separação e o divórcio, apenas querem legalizar uma situação já existente, pretendem somente formalizar o desmoronamento da vida conjugal. Se, afinal, o desencontro, irremediavelmente, ocorreu, o desenlace é inevitável, o viver juntos tornou-se insuportável, o legislador não tem de criar obstáculos e dificuldades para que se chegue, prontamente e com segurança, ao desfecho do impasse, mas, ao contrário, precisa facilitar a materialização da dissolução da união que, na vida e na prática, já acabou. A separação ou o divórcio não é a causa ou a doença, mas o remédio para o mal. Um remédio amargo, talvez. Mas, às vezes, é preciso tomar medicamento travoso para curar a enfermidade.

Durante um longo e tenebroso tempo, e sob o argumento falacioso de que “era preciso manter a paz e a tranqüilidade das famílias”, o divórcio foi proibido em nosso País, como se isso pudesse garantir o amor eterno. Tratava-se de influência da religião, outrora oficial. No direito canônico, o casamento é considerado sacramento e não se admite a dissolução do vínculo conjugal válido, fora da morte, e apenas se concede a separação quoad thorum et habitationem, equivalente ao antigo desquite e à atual separação.

Graças, sobretudo, à atuação de um homem admirável, grande político e jurista, Nélson Carneiro – o pai do moderno Direito de Família legislado do Brasil -, conseguimos superar a questão, vencer as adversidades e o divórcio, desde 1977, é permitido. Mas foi mantido o desquite, com mudança nome: separação judicial.

Tanto a separação judicial – como a própria denominação indica -, quanto o divórcio só eram obtidos através de ação judicial, com todos os percalços, dificuldades e angústias dos que precisam resolver alguma pendência na Justiça.

A Lei nº 11.441/2007 alterou profundamente o quadro. Mantida a possibilidade de se recorrer à Justiça, que, aliás, é garantia constitucional, permitiu, sob determinadas condições e havendo acordo entre as partes, que a separação e o divórcio, bem como o inventário e a partilha sejam feitos administrativamente, por acordo de vontades, através de simples escritura pública, estabelecendo, portanto, uma solução negocial. Houve, inequivocamente, a desjudicialização(!) da matéria.

Portanto, na interpretação da Lei nº 11.441/2007 esses fatos e essas razões têm de ser observados, precisam ser considerados. Trata-se de uma lei que veio facilitar, baratear, simplificar, descomplicar, desburocratizar. O que for estabelecido na escritura de separação e divórcio, de inventário e partilha tem de ter a mesma força e vigor do que a sentença judicial respectiva. Ou é assim – e tem de ser assim -, ou de nada teria adiantado o esforço.

Adiante, apresento o que chamo “primeiras reflexões sobre a nova lei”, que já externei em vários seminários e congressos, por todo o País. Como não sou – e não quero ser – “dono da verdade”, minhas conclusões a respeito da Lei nº 11.441/2007 ficam submetidas à reflexão e ao debate. Eu ensino com o coração de estudante; eu ensino para aprender.

II – Comentários

1. Alguns autores opinaram que a Lei nº 11.441/2007 incorreu em omissão porque não previu que as questões referentes à união estável pudessem ser resolvidas por escritura pública. A crítica não procede. A união estável é uma situação de fato. Observados os requisitos do art. 1.723 do Código Civil, a entidade familiar está constituída, automaticamente, por força de lei, independentemente de qualquer formalidade, sem necessidade de algum papel ou documento. O Código Civil, art. 1.725, permite que, por contrato escrito, os companheiros escolham o regime de bens que vigora entre eles, diferente do regime legal, que é o da comunhão parcial de bens. Nada impede que os companheiros celebrem um contrato – por escritura pública ou instrumento particular – reconhecendo a existência de união estável entre eles, adotando cláusulas, regulando alguns aspectos de seu relacionamento. Ademais, se a afetividade terminar, a dissolução da união estável dá-se pela só extinção da vida em comum, pelo término da convivência. E nada impede – ao contrário, tudo milita para que isso ocorra – que os ex-companheiros celebrem um contrato, expressando o fim de sua união, estabelecendo os efeitos patrimoniais dessa dissolução – partilha de bens, obrigação alimentícia – e outras disposições.

Em suma, praticamente tudo que se pode fazer e estatuir, por escritura pública, para formalizar a separação consensual e o divórcio consensual das pessoas que se casaram, pode ser realizado e estabelecido, por escritura pública, para confirmar o desfazimento da união dos que optaram em constituir família sem o vínculo matrimonial.

E essa conclusão se aplica às relações homoafetivas. O casal homossexual pode, é claro, celebrar uma escritura pública, declarando, formalmente, seu relacionamento familiar, segundo sua orientação sexual, que tem de ser respeitada, que não pode ser objeto de preconceito e discriminação. Esse pacto de convivência é legítimo. Do mesmo modo, pode a parceria homossexual outorgar escritura pública reconhecendo a extinção do relacionamento e a separação dos conviventes, estatuindo, inclusive, efeitos patrimoniais. Mas se houver filho comum (no caso de adoção conjunta, o que a jurisprudência vem admitindo), e se o filho é menor, a extinção do relacionamento homoafetivo precisa ser objeto de ação judicial.

2. Para que o casal promova sua separação, via administrativa, através de escritura pública, não pode ter filhos menores ou filhos maiores que sejam incapazes. E é preciso observar o prazo do art. 1.574 do Código Civil, ou seja, os cônjuges precisam estar casados há mais de um ano.

Se o casal tem filho com menos de 18 anos, que, entretanto, foi emancipado, consoante o art. 5º, parágrafo único, incisos I a V, do Código Civil, pode separar-se por escritura pública. A emancipação faz cessar a incapacidade; a pessoa emancipada fica habilitada à prática de todos os atos da vida civil. Não há interesse de incapaz a ser resguardado pelo Ministério Público e pelo juiz, e, por isso, não há razão ou motivo para proibir que os pais de um filho emancipado promovam a sua separação pela via administrativa.

O legislador sinalizou, claramente, que não quer que a separação e o divórcio sejam realizados administrativamente, por escritura pública, se o casal tem filho menor ou incapaz. A dissolução da vida conjugal, nesse caso, tem de seguir, inexoravelmente, o procedimento judicial. É que todas as questões relativas aos filhos pequenos (crianças, adolescentes) ou maiores, mas incapazes – guarda, visita, alimentos e outras disposições – têm de ser feitas com a fiscalização do Ministério Público e direta intervenção do juiz, além de participação de equipe interdisciplinar, se for o caso.

Cristiano Chaves de Farias (O novo procedimento da separação e do divórcio – de acordo com a Lei n°.11.441/07, Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2007, p.134) opina que se o casal tem prole, ainda incapaz, comum, poderá deliberar a dissolução de suas núpcias por meio de escritura pública, “dês que o pacto ajustado não verse sobre eventuais direitos dos filhos, que são indisponíveis”. Assim, o casal poderia, através de escritura pública, ajustar a partilha dos bens comuns, os alimentos devidos reciprocamente e a eventual permanência do nome de casado, deixando para resolver as questões atinentes à guarda e visita dos filhos e aos alimentos devidos a eles (além de outras eventuais indagações) na via judicial, através de ações próprias. Embora louvando a criatividade da idéia do autor, que almeja facilitar a solução da crise conjugal, deixando para juízo sucessivo a decisão sobre os interesses dos filhos, confesso que tenho grande dificuldade de aderir à sua tese, na falta de uma disposição legal expressa a esse respeito.

Apesar da vedação expressa que faz a lei para a utilização da separação ou do divórcio extrajudicial se o casal tem filhos menores, ou filhos maiores, mas incapazes, Rolf Madaleno (Curso de Direito de Família, Forense: Rio de Janeiro, 2008, n. 6.35.3, p. 253) pondera que em nada interfere a separação ou o divórcio extrajudicial se o casal já cuidou de acordar em demanda precedente os interesses pertinentes à guarda, visitas e aos alimentos da sua prole menor ou incapaz, ou mesmo se já tratou desses itens em uma antecedente separação consensual de corpos homologada e transitada em julgado. Essa opinião de Rolf tem respaldo no direito comparado, especialmente na legislação portuguesa, como será visto logo a seguir, e coincide com a lição de Cristiano Chaves de Farias, acima apontada, a respeito da qual já dei o meu parecer, que é extensivo ao magistério do professor Madaleno.

No direito português, a separação de pessoas e bens, por mútuo consentimento, é requerida por ambos os cônjuges, sem indicação de causa, e pode ser judicial ou administrativa, esta última na Conservatória do Registro Civil, se o casal não tiver filhos menores, ou se, havendo esses filhos, o poder paternal já estiver judicialmente regulado. As mesmas regras se aplicam ao divórcio por mútuo consentimento (cf. Código Civil português, arts. 1.773,2; 1.778-A, 1; 1.794). Portanto, lá como aqui, não é mais exigível, de modo absoluto, uma declaração judicial, mediante sentença, para a dissolução da sociedade conjugal (separação) ou para a extinção do casamento (divórcio).

E se a esposa estiver grávida, pode separar-se por escritura pública? A Lei n° 11.441/2007 diz que a via administrativa para a dissolução da vida conjugal só é possível se não houver filhos menores ou incapazes. A meu ver, a disposição inclui o nascituro. O nascituro não é um vegetal, uma coisa qualquer, mas uma pessoa que está por nascer. Todo ser humano menor de 18 anos recebe proteção especial, não só depois, como antes do nascimento. A personalidade civil começa do nascimento com vida, mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro (CC, art. 2°). Sim, há direitos que não dependem do nascimento com vida. O primeiro deles é o direito à própria vida, e mais: direito à integridade física, à saúde, aos alimentos, direito de ser reconhecido, de ser adotado, de estar submetido ao poder familiar, à curatela, de receber doação, direito sucessório. O nascituro já adquiriu o status de filho. Silmara J.A. Chinelato e Almeida (Tutela civil do nascituro, São Paulo: Saraiva, 2000, p. 222) enuncia: “Tendo em vista que o nascituro é um ser humano, é plenamente  defensável  poder ser incluído no conceito  de criança do Estatuto da Criança e do Adolescente, segundo interpretação sistemática do ordenamento jurídico”. Sem o servilismo de uma compreensão literal-gramatical, e, ao contrário, fazendo uma interpretação  teleológica, finalística, dando uma exegese extensiva, com leitura do texto conforme a Constituição Federal, não tenho dúvida de concluir que, se o casal estiver esperando um filho, se há uma criança in fieri, a separação por via administrativa não é admissível. Como diz Ferrara, citado por Carlos Maximiliano, os fatos de igual natureza devem ser regulados de modo idêntico. Neste assunto, a semelhança das hipóteses supera a mera semelhança, é mais do que parecença, chegando à equivalência, à igualdade (cf. Christiano Cassetari. Separação, divórcio e inventário por escritura pública: teoria e prática. 2ª ed., São Paulo: Método, 2007, p. 32 e 33).

3. É possível que na escritura pública o separando seja representado por procurador. Mas o mandato tem de ser outorgado por instrumento público, para atender a exigência do art. 657, primeira parte, do Código Civil, e deve conter poderes especiais. O mandato em termos gerais não pode ser utilizado para a representação numa escritura pública de separação.  O art. 1.542 do Código Civil deve ser aplicado, analogicamente. Por sinal, num sistema jurídico, como o nosso, que admite a celebração do próprio casamento por procuração, que razão haveria para que a separação e o divórcio não pudessem ser feitos com a utilização de mandato? Alerte-se que a circunstância de estar o cônjuge representado por procurador não dispensa a presença do advogado que, na forma da lei, deve assistir as partes, conforme mostrarei a seguir.

4. Na escritura de separação ou de divórcio (bem como na de inventário e partilha consensuais), os contratantes têm de ser assistidos por advogado comum ou advogado de cada um deles. A presença desse profissional, legalmente habilitado na Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, é exigência capital, solenidade impostergável, cuja preterição invalida a escritura, fulminando-a de nulidade, consoante o art. 166, inciso V, do Código Civil.

Não há necessidade de as partes entregarem uma procuração ao advogado. A meu ver, já há o mandato tácito, previsto no art. 656 do Código Civil, caracterizado pela própria presença do advogado, assistindo seu cliente, fiscalizando o ato, assinando a escritura pública.

5. A Lei nº 11.441/2007 permitiu o emprego da via administrativa não somente para a separação consensual – que extingue a sociedade conjugal – como para o divórcio consensual – que rompe o vínculo matrimonial, dissolve o próprio casamento.

No direito brasileiro, em regra, o divórcio é obtido por conversão, e é chamado divórcio indireto: decorrido um ano do trânsito em julgado da sentença que houver decretado a separação judicial, ou da decisão concessiva da medida cautelar de separação de corpos, qualquer das partes poderá requerer sua conversão em divórcio (Constituição Federal, art. 226, § 6º, primeira parte; Código Civil, art. 1.580, caput). O divórcio direto pode ocorrer no caso de comprovada separação de fato por mais de dois anos (Constituição Federal, art. 226, § 6º, segunda parte; Código Civil, art. 1.580, § 2º).

Admitindo a Lei nº 11.441/2007, com o art. 1.124-A, que introduziu no Código de Processo Civil, a utilização de escritura pública de divórcio consensual, e não tendo  feito qualquer distinção, isso vale para a conversão da separação em divórcio, como para o divórcio direto, com base na comprovada separação de fato do casal, por mais de dois anos. Neste último caso, a comprovação do transcurso do lapso temporal mínimo de dois anos de separação de fato pode ser feita por todos os meios admitidos em direito. A prova testemunhal será a mais utilizada. Além da declaração das partes, sob as penas da lei (que, a meu ver, goza da presunção de que é verdadeira, e devia ser suficiente, bastante), duas testemunhas comparecem à escritura, atestando, confirmando que os cônjuges estão separados de fato há mais de dois anos.

No futuro, quando já existirem muitas separações feitas por escritura pública, em conseqüência do que faculta a Lei nº 11.441/2007, o divórcio indireto poderá ser acordado, por escritura pública, não só depois de um ano do trânsito em julgado da sentença que houver decretado a separação judicial, ou da decisão concessiva da medida cautelar de separação de corpos, como depois de ter passado um ano da lavratura da escritura pública de separação consensual.

Aproveito a oportunidade para afirmar que apóio o movimento de alteração de nossa legislação – que, no caso, tem de passar por uma emenda constitucional – para acabar com essa dualidade: separação e divórcio, de modo que a ruptura da vida conjugal ocorra apenas pelo divórcio. Paulo Lôbo (Direito Civil – Famílias, São Paulo: Saraiva, 2008, n. 8.1, p. 127) expõe que essa duplicidade de tratamento legal não mais se sustenta e, nesse sentido, o Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM elaborou anteprojeto de emenda constitucional, que iniciou sua tramitação como projeto na Câmara dos Deputados, para dar nova redação ao preceito constitucional, suprimindo-se a referência à separação, com previsão exclusiva ao divórcio direto amigável ou litigioso. A chamada “PEC do Divórcio” (n° 413-C) já foi aprovada na Câmara dos Deputados e está dependendo das votações no Senado Federal (cf. Constituição Federal, art. 60, § 2°). Maria Berenice Dias (Manual de Direito das Famílias, 4ª edição, São Paulo: RT, n. 17.1, p. 269) diz que a separação é instituto que traz em suas entranhas a marca de um conservadorismo atualmente injustificável: “É quase um limbo: a pessoa não está mais casada, mas não pode casar de novo”, concluindo que a dispensabilidade da dupla via para pôr fim ao matrimônio é evidente.

6. Diz o novo art. 1.124-A do CPC que da escritura pública constarão as disposições relativas à descrição e à partilha dos bens comuns, à pensão alimentícia e, ainda, ao acordo quanto à retomada pelo cônjuge de seu nome de solteiro ou à manutenção do nome adotado quando se deu o casamento.

Não se pense que essas cláusulas devam constar, obrigatoriamente, nessas escrituras. Como promover a partilha de bens comuns, se o casal não tem bens a partilhar? Como fixar o valor da pensão alimentícia, se ninguém vai pagar pensão? Como estabelecer que o cônjuge voltará a usar o nome de solteiro, ou manterá o nome que adotou com o casamento, se não houve alteração do nome com o matrimônio?…

Em suma, as aludidas disposições constarão nas escrituras se for possível, necessário, dependendo do caso concreto, do interesse das partes.

Mesmo que existam bens comuns, por exemplo, os interessados podem querer não dividi-los, continuando a propriedade em condomínio, e a divisão poderá ser feita futuramente, por acordo, ou judicialmente. A comunhão se transmuda em condomínio, e a todo tempo será lícito ao condômino exigir a divisão da coisa comum, o que pode dar-se amigável ou judicialmente (actio communi dividundo, dos romanos). Aplicam-se à divisão do condomínio, no que couber, as regras de partilha de herança (cf. Código Civil, arts. 1.320 e 1.321).

Tratando-se de separação judicial consensual, o Código de Processo Civil, art. 1.121, parágrafo único, admite que a separação seja homologada sem a partilha de bens. O Código Civil, art. 1.581, enuncia que o divórcio pode ser concedido sem que haja prévia partilha de bens. Na III Jornada de Direito Civil, patrocinada pelo Conselho da Justiça Federal, foi aprovado o Enunciado nº 255, incidente sobre o art. 1.575 do Código Civil: “Não é obrigatória  a partilha  de bens  na separação  judicial”. Essa tendência deve ser observada nos casos de separação consensual e divórcio consensual, realizados por escritura pública.

O fundamental é resolver a questão pessoal; o problema patrimonial pode ser deixado para depois, e a falta de acordo quanto à divisão dos bens não deve atrapalhar, atrasar ou inviabilizar a separação ou o divórcio. No entanto, nada impede que fique a circunstância mencionada na escritura, ou seja, de que existem bens comuns e a partilha dos mesmos, se for o caso, será realizada no futuro. É conveniente e útil que essa ressalva fique expressa.

7. Mencionei, acima, que as disposições relativas à descrição e à partilha dos bens comuns e à pensão alimentícia e, ainda, ao acordo quanto à retomada pelo cônjuge de seu nome de solteiro ou à manutenção do nome adotado quando se deu o casamento, referidas no art. 1.124-A do CPC, não são obrigatórias, essenciais. Pode haver escritura de separação consensual ou de divórcio consensual sem referência a esses assuntos e, no caso de existirem bens comuns, deixando a divisão dos mesmos para depois; e nada impede que as partes, nas aludidas escrituras, acordem sobre outras questões, resolvam outras pendências, que não as relativas aos temas apontados no dito art. 1.124-A do CPC. Estão, por exemplo, autorizados a fixar pensão alimentícia a um filho maior e capaz; a resolver que determinado imóvel do casal será doado aos filhos comuns, como adiantamento de suas legítimas; a estabelecer que um dos contratantes exercerá direito real de habitação sobre determinado apartamento. Não se infringindo a lei, a ordem pública e os bons costumes, quaisquer disposições ou ajustes são possíveis, com base no princípio da liberdade de contratar, da autonomia da vontade.

8. O Código Civil, art. 1.577, prevê que, seja qual for a causa da separação judicial e o modo como esta se faça, é lícito aos cônjuges restabelecer, a todo tempo, a sociedade conjugal, por ato regular em juízo. Se, porém, o casal já se divorciou, e deseja reconstituir a vida conjugal, tem de casar novamente, pois o divórcio extinguiu não somente a sociedade conjugal, mas o próprio casamento.

A reconciliação dos cônjuges que estão separados pode ser feita por escritura pública. Não houve, quanto a isso, referência expressa na Lei nº 11.441/2007, mas, sem dúvida, está no seu espírito. Uma lei que veio permitir a separação do casal por escritura pública, portanto, sem intervenção judicial, agilizando, simplificando, facilitando o procedimento, sem dúvida, não estaria homenageando a lógica nem prestigiando o bom senso se exigisse a via judicial para a reconciliação. Então, numa interpretação finalística e sistemática  da citada lei, observando-se  os fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum (LICC, art. 5°), entendo que o restabelecimento da sociedade conjugal pode ser feito por escritura pública, sem necessidade de homologação judicial; mas continua indispensável, a meu ver, na reconciliação, a assistência do advogado das partes. Observe-se que o casal que se reconcilia não pode alterar, por força da própria escritura pública, o regime de bens que outrora vigeu.

Embora o novo Código Civil não tenha adotado o princípio da irrevogabilidade e inalterabilidade do regime de bens e, ao contrário, admitiu a mudança do regime, condiciona a alteração a três requisitos: autorização judicial; motivação relevante; ressalva de direitos de terceiros (art. 1.639, § 2º). A norma especial a respeito da matéria, como se vê, exige a intervenção judicial.

9. Se o casal fizer a descrição de seus bens e promover a partilha dos mesmos, e se esta for desigual – por exemplo, um imóvel do patrimônio comum coube, exclusivamente, à mulher; ou, no caso de o casal possuir três imóveis, de valores equivalentes, um dos cônjuges fica com um deles, somente, cabendo os demais ao outro cônjuge -, há incidência de imposto de transmissão. O fato gerador do tributo é a diferença dos quinhões atribuídos aos cônjuges; incide o imposto de transmissão (que se chama, também, imposto de reposição) sobre o que exceder à meação (Súmula 116 do STF).

10. O art. 1.124-A, § 3º, do CPC diz que a escritura e demais atos notariais serão gratuitos àqueles que se declararem pobres sob as penas da lei. Basta, pois, a declaração da parte de que é carente, sem mais nada. Presume-se que a afirmação é verdadeira. Absurdo seria exigir a prova da miséria. Entretanto, o legislador disse menos do que queria e é necessário dar uma interpretação sistemática e teleológica ao texto. A gratuidade tem de ser estendida não só aos “demais atos notariais”, como aos atos registrais e a todos os outros que decorrem da escritura e são necessários para a plena eficácia da mesma. O dispositivo legal, com essa compreensão e amplitude, estará sendo lido de modo progressista, democrático, construtivo, conforme à Constituição Federal.

Mas o que o pobre não vai pagar são as custas, emolumentos notariais e registrais. Terá de pagar o tributo que incidir sobre o ato. Em alguns Estados, são previstos, ainda, selos de segurança e taxas relativas aos atos, destinadas aos tribunais, dos quais os pobres não estão dispensados, salvo provimentos, neste sentido, dos respectivos Tribunais de Justiça.

11. No caso de serem fixados alimentos na escritura pública de separação consensual, do varão em favor da mulher, por exemplo, e não havendo, depois, culposamente, o pagamento de prestações, discute-se se é possível a prisão civil do devedor, com base no art. 5º, inciso LXVII, da Constituição Federal e no art. 733 do Código de Processo Civil. A opinião dominante é a de que a prisão civil, em conseqüência do descumprimento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia, só é admissível quando a obrigação foi estabelecida em título executivo judicial. Se o título executivo é extrajudicial – como o que se origina de obrigação assumida em uma escritura pública, por exemplo -, o não-pagamento da pensão alimentícia não pode ensejar a prisão do devedor (STJ, 3aT., HC 22.401/SP, Rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito, RT, 809/209).

O devedor de alimentos que, podendo, tendo dinheiro para cumprir, simplesmente não paga a pensão, está comprometendo a própria sobrevivência do credor. Pratica, pois, ilícito gravíssimo, que precisa ser reprimido com o máximo rigor. A meu ver, ele tem de ser preso, como meio de coerção – aliás, extremamente eficaz, como bem sabem os que, saindo das puras elucubrações acadêmicas, têm experiência no foro -, com vistas a que ele forneça a verba alimentícia a quem dela necessita para atender necessidades básicas.

O que se decidiu, acordou e estabeleceu na escritura pública de separação ou de divórcio, prevista na Lei nº 11.441/2007, precisa ter a mesma força, o mesmo valor, efeito idêntico ao que teria a sentença do juiz. Se pode ser preso o devedor inadimplente e culposo da pensão que foi estabelecida com a intervenção do Poder Judiciário, seria um disparate não poder ser preso o devedor inadimplente da pensão alimentícia contraída na escritura pública de separação  ou de divórcio consensuais.  O advento da Lei nº 11.441/2007 vai imprimir o entendimento de que a prisão, como meio de coerção do pagamento da obrigação alimentar, pode ser decretada com base no descumprimento do que foi estabelecido na escritura pública.

De qualquer sorte, expõe Cristiano Chaves de Farias (O Novo Procedimento da Separação e do Divórcio (de acordo com a Lei 11.441/07), cit, p. 67), poderá o advogado das partes, preferindo, utilizar-se da via administrativa para dissolver o casamento (deixando de contemplar, em qualquer das cláusulas, a obrigação alimentícia, bem como não constando, também, que as partes renunciam ao direito de receber os alimentos) e garantindo uma rápida modificação do estado civil dos consortes e se valer da via judicial somente para obter a homologação do acordo de alimentos. Nesse caso, o pedido dirigido ao juiz será, unicamente, de homologação de alimentos, deixando a dissolução matrimonial para a via administrativa, através de escritura pública.

12. Copiando o que constava na Lei do Divórcio (Lei nº 6.515/77, art. 3º, § 1º), o Código Civil, art. 1.576, parágrafo único, enuncia que o procedimento judicial da separação caberá somente aos cônjuges, e, no caso de incapacidade, serão representados pelo curador, pelo ascendente ou pelo irmão.

Pode-se admitir uma aplicação por analogia e pensar que o curador ou aqueles parentes do cônjuge incapaz estão autorizados a representá-lo numa escritura pública de separação ou de divórcio, utilizando essa via administrativa para regularizar a extinção da vida conjugal?

A resposta é não. Não é não! O cônjuge incapaz não pode se separar ou se divorciar por escritura pública. Essa via administrativa, extrajudicial, prevista na Lei nº 11.441/2007, pressupõe a capacidade das partes. Trata-se, registre-se bem isso, de um negócio jurídico, ao qual se aplicam todos os requisitos dos negócios jurídicos.

13. A Lei nº 11.441, de 4 de janeiro de 2007, como estatui o art. 4º da mesma, entrou em vigor na data de sua publicação, que se deu no dia 5 de janeiro de 2007. Portanto, trata-se de uma lei sem vacatio legis, contrariando, neste passo, a Lei Complementar nº 95, de 26 de fevereiro de 1998, que prevê, no art. 8º: “A vigência da lei será indicada de forma expressa e de modo a contemplar  prazo razoável para que dela se tenha amplo conhecimento, reservada a cláusula “entra em vigor na data de sua publicação” para as leis de pequena repercussão”. Recentemente, editou-se a Lei n° 12.016, de 7 de agosto de 2009 (Nova Lei do Mandado de Segurança), cujo projeto, há anos, tramitava no Poder Legislativo, e, apesar da extrema gravidade, importância e enorme repercussão da matéria, a citada lei entrou em vigor na data de sua publicação, numa violação, igualmente, do art. 8° da Lei Complementar 95/1998. É preciso denunciar este fato, que vem se repetindo, e representa um desrespeito à cidadania, uma agressão à segurança jurídica.

Essa lei 11.441/2007, então, começou a vigorar no próprio dia em que saiu publicada no Diário Oficial da União, e com efeito imediato e geral. Desde que não existam filhos menores ou incapazes do casal e observados os requisitos legais quanto aos prazos (Código Civil, arts. 1.574, 1.580, caput, e § 2º, a separação e o divórcio consensuais podem ser realizados extrajudicialmente, por escritura pública, como temos visto, e tudo isso se aplica, inclusive, para os casamentos celebrados em data anterior ao do começo da vigência da Lei nº 11.441. Mesmo nos casos em que o marido e a mulher já tivessem ingressado em juízo com a ação de separação por mútuo consentimento ou de divórcio (por conversão ou direto), podem desistir da ação e promover a separação ou o divórcio pelo procedimento administrativo, simplificado, utilizando a faculdade prevista na citada Lei 11.441.

14. O art. 1.124-A, § 1º, do CPC enuncia que a escritura pública de separação consensual ou de divórcio consensual não depende de homologação judicial e constitui título hábil para o registro civil e o registro de imóveis. Quer dizer, a escritura pública vale por si mesma, no que pertine à separação e ao divórcio, e é dotada de eficácia plena. Mas a Lei nº 11.441/2007, também neste ponto, precisa ser interpretada de modo ampliativo. Há outros efeitos, além dos que ocorrem no registro civil e no registro imobiliário, e que são determinados pela escritura pública. Assim, há efeitos que dependem de providências em bancos, instituições financeiras, no departamento de trânsito, na Junta Comercial, em empresas de telefonia, etc., e a escritura pública é suficiente e bastante para que tudo seja feito nesses locais. Não há que se pensar na necessidade de alvará judicial para tais providências. É  fundamental que se compreenda o que quis a Lei no11.441/2007: que a escritura pública, no que se refere à separação, divórcio, inventário e partilha, tenha a mesma importância, o mesmo valor, o mesmo efeito da sentença judicial. Note-se bem: a força e o vigor inerentes ao formal de partilha (ou à carta de adjudicação) ou à sentença de separação ou de divórcio equivalem ao vigor e à força relativos à escritura pública de partilha (ou de adjudicação) ou de separação, ou de divórcio.

15. Por algum motivo, embora não queira mais manter a sociedade conjugal, o casal pode desejar formalizar a separação de corpos, através de escritura pública, por exemplo, para afastar a presunção pater is est, para determinar a extinção de efeitos do regime de bens, para permitir a constituição de união estável, ou, simplesmente, para produzir prova escrita da separação de fato. Como ainda não decorreu o tempo mínimo necessário do casamento (mais de um ano), para que se promova a separação consensual (seja judicial, seja administrativa), e o marido ou a mulher não tem motivo ou não quer requerer a separação litigiosa, a escritura pública que atesta e reconhece a separação de corpos do casal terá serventia e utilidade. Maria Berenice Dias (Manual de Direito das Famílias, cit., n. 17,17, p. 306) adverte que a partir da data da escritura passa a fluir o prazo de um ano para a conversão da separação em divórcio (Código Civil, art. 1.580).

A separação de corpos vem mencionada no art. 1.562 do Código Civil, que integra o Capítulo que trata da invalidade do casamento, e o citado artigo, além de prever essa separação nos casos de nulidade ou de anulação do casamento, refere-se, igualmente, às hipóteses de separação judicial, divórcio direto ou dissolução de união estável.

Mesmo antes do começo da vigência do atual Código Civil, já a jurisprudência assentava que, embora não houvesse autorização legislativa expressa, a separação de corpos podia ser pedida pelos cônjuges enquanto aguardavam o decurso do prazo legal de existência do casamento, essencial para que seja ajuizado o requerimento de separação consensual, e o alvará de separação não fica submetido ao prazo de 30 dias para que seja intentada a demanda principal, inaplicando-se o art. 806 do CPC. A separação de corpos, neste caso, tem feição preventiva e não preparatória, e alguns autores afirmam tratar-se de “medida cautelar satisfativa”.

Toda a construção doutrinária e jurisprudencial a respeito da separação de corpos mediante decisão judicial aplica-se, mutatis mutandis, à separação de corpos consensual, por escritura pública.

Rolf Madaleno (Curso de Direito de Família, n. 6.35.14, p. 268) adverte que a lei n° 11.441/07 não prevê a possibilidade de os cônjuges escriturarem sua precedente separação de corpos extrajudicial, o que não impede que essa separação de corpos consensual seja feita por escritura pública, quando os consortes ainda não podem promover a sua separação consensual por estarem casados há menos de um ano (CC, art. 1.574), argumentando o mestre gaúcho: “Ora, se podem promover a separação de corpos judicial como pré-estréia da sua separação judicial amistosa depois de completado um ano de casamento, para evitarem indesejadas demandas litigiosas, e improcedentes acusações de abandono do lar conjugal e de falta de assistência material, nada mais adequado possam pelas mesmas razões fazer uso de precedente escritura consensual de separação de corpos, para nela ajustar as mesmas cláusulas e preocupações, até substituí-la pela escritura de separação ou de divórcio, atingidos os pressupostos legais de tempo”.

16. Nos termos da Lei n° 11.441, o inventário e partilha por escritura pública só podem ser feitos se todos os interessados forem capazes e concordes, devendo estar assistidos por advogado. Mas a utilização deste expediente, extrajudicial, não pode ocorrer se o falecido deixou testamento. Não importa a forma do testamento – ordinário ou especial – ou da natureza das disposições testamentárias, ou de o testamento já ter sido registrado ou confirmado em juízo e com o “cumpra-se” do juiz (CPC, arts. 1.125 a 1.134). Dada a expressa vedação legal, não há como fugir à conclusão de que a existência do testamento impede a utilização da partilha extrajudicial. Mas se os herdeiros forem capazes, poderão fazer partilha amigável, por escritura pública, na forma do art. 2.015 do Código Civil, mesmo que o autor da herança tenha deixado testamento, todavia, como prevê o art. 1.031 do CPC – com redação dada pelo art. 2oda Lei no11.441/2007 -, a partilha, neste caso, tem de ser homologada pelo juiz. Entretanto, o falecido pode ter morrido sem testamento, mas ter deixado um codicilo (Código Civil, art. 1.881), que é disposição de última vontade, de conteúdo e objeto limitados, e testamento não é. Penso que, neste caso, é possível fazer-se a partilha extrajudicial, por escritura pública (cf. Juliana da Fonseca Bonates, Separação, divórcio, partilhas e inventários extrajudiciais, coordenadores Antônio Carlos Mathias Coltro e Mário Luiz Delgado, São Paulo: Editora Método, 2007, p. 318).

A partilha extrajudicial é prevista no direito de muitos povos. O Código Civil francês, art. 819, prevê: “Si tous les héritiers sont présents et capables, le partage peut être fait dans la forme et par tel acte que les parties jugent convenables” = “Se todos os herdeiros estão presentes e são capazes, a partilha pode ser feita na forma e pelo ato que as partes julguem conveniente”. O Código Civil português, art. 2.102,1, afirma que a partilha pode fazer-se extrajudicialmente, quando houver acordo de todos os interessados, ou por inventário judicial nos termos previstos na lei do processo; a partilha extrajudicial deve ser feita por escritura pública se na herança existirem bens imóveis, como exige o Código do Notariado.

O Código Civil espanhol, art. 1.058, permite que a partilha da herança seja feita extrajudicialmente, se os herdeiros forem maiores, tiverem a livre administração de seus bens e houver acordo unânime (neminediscrepante) de todos eles. O art. 3.462 do Código Civil argentino, reformado pela Lei n. 17.711/68, admite a partilha extrajudicial ou privada, que pode ser feita pelos herdeiros presentes e capazes, desde que haja acordo entre eles. Na Suíça, o art. 607,2, do Código Civil estabelece o princípio da liberdade da convenção em matéria de partilha. No mesmo sentido: art. 2.530 do Código Civil paraguaio; art. 853 do Código Civil peruano; art. 907,1, do Código Civil japonês; art. 838, al.1, do Código Civil de Québec. O art. 2.048 do Código Civil alemão (BGB) e o art. 733, II, do Código Civil italiano afirmam que o testador pode determinar que a partilha seja feita segundo o critério (que deve ser eqüitativo, justo) de um terceiro.

17. Se o inventário é judicial fica submetido às regras de competência estabelecidas no art. 96 do Código de Processo Civil. Em princípio, o foro do domicílio do autor da herança é o competente para o inventário e a partilha. No caso de ser utilizada a escritura pública para promover o inventário e a partilha, já não se aplicam as regras de competência das leis processuais, mas a norma do art. 8oda Lei no8.935, de 18 de novembro de 1994 (Lei dos Notários e dos Registradores), que é lei especial sobre o tema e consagra o princípio da plena liberdade das partes na escolha do tabelião, embora seja proibido que este pratique atos de seu ofício fora do Município para o qual recebeu  delegação  (Lei  no 8.935/94,  art.  9º).  Portanto, independentemente do domicílio do de cujus, ou da situação dos bens hereditários, ou do lugar em que ocorreu o óbito, ou do domicílio das partes, os interessados podem escolher o notário de qualquer Município para redigir a escritura pública de inventário e partilha. Esse princípio da liberdade de escolha do tabelião aplica-se, também, às escrituras de separação e de divórcio consensuais.

Sebastião Amorim e Euclides de Oliveira (Inventários e Partilhas, 20ª ed., São Paulo: Leud, 2006 – Separata – Atualização, p. 11) enunciam que a competência para escrituras de inventário e partilha no Brasil cinge-se aos bens situados no território nacional; essa é a regra para o inventário judicial (arts. 89 e 96 do CPC), que se aplica igualmente à escritura pública: “Os bens situados no estrangeiro não podem ser aqui partilhados. Devem ser objeto de procedimentos autônomos, no país onde se situem”.

No caso de brasileiros que estejam no estrangeiro, e pretendem fazer a separação, o divórcio, o inventário, a partilha, poderão recorrer ao cônsul brasileiro, que exerce funções de tabelionato e de oficial de registro civil, nos termos do art. 18 da Lei de Introdução ao Código Civil. O cônsul, atuando como tabelião, redigirá a escritura, observados os requisitos da Lei nº 11.441/2007. É indispensável a assistência de advogado, legalmente inscrito na Ordem dos Advogados do Brasil.

18. A escritura pública de inventário e partilha pressupõe que todos os herdeiros são capazes e concordes. O herdeiro menor, mas emancipado, está habilitado. E todos têm de comparecer à escritura, assinando-a. Se algum deles não souber ou não puder assinar, outra pessoa assinará por ele, a seu rogo. Os requisitos das escrituras públicas, mencionados no art. 215 do Código Civil, têm de ser observados. A escritura não poderá ser feita se ao menos um dos herdeiros não acordar.

A unanimidade é essencial. O cônjuge sobrevivente, ou como meeiro, como herdeiro, ou, no mínimo, como titular do direito real de habitação (Código Civil, art. 1.831), tem de comparecer à escritura.

19. Mesmo tratando-se de procedimento administrativo, em que, no geral dos casos, o inventário e partilha serão feitos na escritura pública, sem necessidade de mais nada, a não ser as providências registrais e outras, para dar eficácia à escritura, pode haver necessidade da nomeação de inventariante, para que, em nome do espólio – e representando todos os interessados -, pratique alguns atos, resolva algumas questões que ficaram pendentes, como, por exemplo, assinar em favor do comprador a escritura definitiva de compra e venda de um bem que o falecido, em vida, prometeu vender, fazer levantamento de numerário em conta corrente bancária, promover registro da escritura em serviços registrais imobiliários e civis, etc. A indicação do inventariante é facultativa, não obrigatória, e a nomeação do mesmo não precisa seguir, rigorosamente, a ordem apresentada no art. 990 do Código de Processo Civil.

20. Ainda que o autor da herança tenha morrido antes de 5 de janeiro de 2007, data em que começou a vigorar a Lei nº11.441, é possível promover o inventário e a partilha por escritura pública, uma vez que essa lei é de aplicação imediata, como de natureza processual que é, aplicando-se, também, a fatos passados, que não representem direito adquirido, ato jurídico perfeito e coisa julgada (Constituição  Federal, art. 5º, XXXVI; Lei de Introdução ao Código Civil, art. 6º). E, ainda, a morte do autor da herança pode ter acontecido antes mesmo de 11 de janeiro de 2003, quando entrou em vigor o novo Código Civil, e, apesar do longo tempo decorrido, não ter sido promovido o inventário. Do mesmo modo, o inventário e a partilha podem ser feitos por escritura pública, observado o art. 982, segunda parte, do CPC, com a redação da Lei nº 11.441/2007. Há um detalhe, porém: as normas procedimentais a respeito do inventário e partilha são as da lei vigente no momento em que essas providências são tomadas, mas as regras substanciais ou materiais a respeito da sucessão hereditária são as da lei civil em vigor ao tempo da abertura da sucessão, ou seja, do dia em que o hereditando faleceu (Código Civil, arts. 1.787 e 2.041). Portanto, se a abertura da sucessão ocorreu, por exemplo, em 2000, o inventário e a partilha podem ser feitos conforme a Lei nº 11.441/2007, mas as normas materiais da sucessão serão as vigentes ao tempo da morte do de cujus, ou seja, vai ser aplicado o Código revogado, o Código Civil de 1916, e não o atual Código Civil, bem como a legislação tributária que vigorava na mesma época da abertura da sucessão.

21. A Lei nº 11.441/2007 faculta a celebração do inventário e partilha por escritura pública. Partilha, como a expressão indica, pressupõe que haja mais de um herdeiro. Entretanto, como tenho dito em algumas passagens deste escrito, a dita lei tem de receber uma interpretação teleológica, progressiva, construtiva. Assim, no caso de haver um só herdeiro, não pode ser feita a “partilha” dos bens, obviamente, e não é lógico que se invoque essa filigrana verbal para concluir que a Lei no11.441/2007 não é aplicável ao caso. É, sim! O herdeiro único, capaz, titular dos direitos da totalidade da herança, por escritura pública, pode promover o inventário e a adjudicação dos bens deixados pelo de cujus.

22. É possível que seja feita, numa só escritura, a cessão e transferência de direitos hereditários, seguida da partilha. Haverá incidência de imposto de transmissão inter vivos, quanto à cessão de direitos, e de transmissão mortis causa, por causa da sucessão hereditária. Este último tributo é estadual (Constituição Federal, art. 155, I). O imposto de transmissão que tem como fato gerador a cessão de direitos será estadual ou municipal, conforme a cessão seja gratuita (equivalente à doação) ou onerosa (semelhante à compra e venda), respectivamente (Constituição Federal, arts. 155, I, e 156, II). Se a escritura cuidar, apenas, da partilha entre os herdeiros incide, somente, o imposto de transmissão causa mortis.

Avulta a responsabilidade do tabelião, que tem de fiscalizar o pagamento do imposto devido e mencionar a prova da quitação do mesmo, tanto nas escrituras de inventário e partilha, quanto nas escrituras de separação e divórcio, neste último caso, quando houver desigualdade nos quinhões partilhados (supra, nº 9). Em qualquer caso, não pode a escritura ser lavrada e assinada e o imposto cabível ser pago depois. A responsabilidade do notário vem referida no art. 134, VI, do Código Tributário Nacional – CTN. Os notários e registradores precisam ficar muito atentos para a questão do pagamento de impostos relativos às escrituras que redigirem ou registrarem. Nos termos da Lei n° 8.935, de 18 de novembro de 1994, art. 30, XI, são deveres desses delegados de serviço público fiscalizar o recolhimento dos impostos incidentes sobre os atos que devem praticar. Além disso, esses serventuários têm responsabilidade subsidiária pelos tributos que incidirem sobre os ditos atos, consoante o art. 134 do Código Tributário Nacional – CNT (que, por sinal, num erro técnico, chama a esta responsabilidade de solidária).

A Resolução n° 35/2007, do CNJ, art. 22, dentre os documentos que devem ser apresentados para a lavratura de escrituras de inventário e partilha, menciona: “g) certidão negativa de tributos”; “h) certificado de Cadastro de Imóvel Rural – CCIR, se houver imóvel rural a ser partilhado”.

23. O art. 1.784 do Código Civil, consagrando o droit de saisine, afirma que aberta a sucessão, a herança transmite-se, desde logo, aos herdeiros legítimos e testamentários. Aceita a herança, torna-se definitiva a sua transmissão ao herdeiro, desde a abertura da sucessão (CC, art. 1.804, caput). Mas o herdeiro pode renunciar à herança e, então, a transmissão tem-se por não verificada (CC, art. 1.804, parágrafo único). Seguindo antiga tradição de nosso direito e inspirando-se na legislação romana, o art. 426 do Código Civil edita: Não pode ser objeto de contrato a herança de pessoa viva. A proibição dos pactos sucessórios é absoluta. Não pode haver renúncia antes da abertura da sucessão. É inválido, nulo de pleno direito o repúdio de herança de pessoa viva (cf. Caio Mário da Silva Pereira, Instituições de Direito Civil, VI, Direito das Sucessões, atualizador: Carlos Roberto Barbosa Moreira, 15ª ed., 2004, Rio de Janeiro: Forense, n. 434, p. 57; Orlando Gomes, Sucessões, coordenador: Edvaldo Brito, atualizador: Mario Roberto Carvalho de Faria, 14ª ed., 2007, Rio de Janeiro: Forense, n. 26, p. 25). A renúncia da herança deve constar expressamente de instrumento público ou termo judicial (CC, art. 1.806), sendo necessária a autorização do cônjuge do renunciante, salvo se o regime é da separação absoluta (CC, art. 1.647, caput) ou da participação final nos aquestos, se tiver sido convencionado, no pacto antenupcial, a livre disposição dos bens imóveis, desde que particulares (CC, art. 1.656). Na sucessão legítima, a parte do renunciante acresce à dos outros herdeiros da mesma classe e, sendo ele o único desta, devolve-se aos da subseqüente (CC, art. 1.810). Não se pode aceitar ou renunciar a herança em parte, sob condição ou a termo (CC, art. 1.808, caput).

Observadas essas regras sobre o tema, a renúncia de herança- negócio jurídico unilateral, não-receptício, gratuito, irretratável e formal, como expõe Paulo Nader (Curso de Direito Civil, v. 6, Direito das Sucessões que, com muito prazer, prefaciei -, Rio de Janeiro: Forense, 2007, n. 22, p. 97) – pode constar numa escritura pública e, em seguida, na mesma escritura, ser formalizados o inventário e a partilha pelos demais herdeiros, tudo conforme a Lei no11.441/2007.

A renúncia, no melhor sentido técnico-jurídico, é negócio unilateral, tratando-se de uma demissão do direito; é sempre abdicativa. A chamada renúncia translativa ou in favorem (feita a favor de alguém) verdadeira renúncia não é, mas cessão de direitos hereditários (CC, art. 1.793), em que há, inclusive, incidência de imposto de transmissão inter vivos. Na renúncia propriamente dita, não incide tal imposto, pela simples razão de não existir uma transmissão a determinada pessoa; não requer anuência, nem, muito menos, aceitação de quem quer que seja; o renunciante é tido como se nunca tivesse sido herdeiro, e não como se tivesse sido herdeiro e transferido seu direito a outrem.

24. O art. 1.793, § 2º, do Código Civil afirma que é ineficaz a cessão feita pelo co-herdeiro de seu direito hereditário sobre qualquer bem da herança individuado (p. ex. o terreno da rua da Liberdade nº 78; o apartamento no do Edifício Volpi). Note-se: a cessão não é inválida – nula ou anulável -, mas é ineficaz, não produz efeito, é inoponível aos demais herdeiros. Porém, no caso de haver somente um herdeiro, como não há outros interessados (co-herdeiros), não é ineficaz a cessão de direitos que ele fizer a respeito de um bem singular, de um determinado bem da herança. Do mesmo modo, se todos os herdeiros fazem a cessão, é plenamente eficaz essa cessão de bens singularmente determinados. Dita cessão terá de ser formalizada por escritura pública (CC, art. 1.793, caput), incidindo sobre este negócio jurídico o imposto de transmissão inter vivos, devido ao Município ou ao Estado, conforme a cessão tenha sido onerosa ou gratuita. E nada impede, até por uma questão de economia, que, em seguida, aproveitando o mesmo instrumento público, e nos termos da Lei nº 11.441/2007, seja promovida a partilha ou a adjudicação do bem hereditário objeto da cessão, incidindo, agora, o imposto de transmissão mortis causa. Os primitivos herdeiros, posteriormente, judicial ou extrajudicialmente, farão o inventário dos outros bens do espólio e a respectiva partilha.

25. A , ou a adjudicação, feita por escritura pública, consoante a Lei nº 11.441/2007 pode ser realizada ainda que o espólio tenha credores. O art. 1.997 do Código Civil diz que a herança responde pelo pagamento das dívidas do falecido; mas, feita a partilha, só respondem os herdeiros, cada qual em proporção da parte que na herança lhe coube. A responsabilidade da herança pelas dívidas do falecido limita-se às forças desta. Os herdeiros não respondem ultra vires hereditatis, ou seja, além, acima das forças da herança (CC, art. 1.792). Se as dívidas absorverem todo o ativo, os herdeiros nada recebem. São herdeiros sem herança! Essas regras não deixam de valer só pelo fato de estar permitida, agora, a partilha e a adjudicação extrajudiciais. A escritura pública pode conter a ressalva de que ficam resguardados ou garantidos os direitos dos credores, e essa cláusula expressa até seria dispensável, pois os credores têm direitos garantidos por lei. Euclides de Oliveira aborda o assunto e enuncia que o credor do espólio poderá haver diretamente os seus direitos, mediante acordo com os herdeiros, ou constar da escritura pública para oportuno recebimento do crédito reconhecido pelos demais interessados. Adverte o autor que cabe aos herdeiros indicar não só o ativo, mas também o passivo do espólio, nesse caso discriminando as dívidas e os respectivos credores bem como a forma de seu pagamento.

De qualquer forma, conclui: “ainda que não sejam indicados, os credores terão sempre ressalvados os seus direitos, podendo agir por ação própria contra os herdeiros, na medida dos quinhões da herança atribuídos na partilha” (Inventário e partilhas, cit. Separata – Atualização, p. 9). Francisco José Cahali e Karin Regina Rick Rosa apontam que a existência de credores não impede a partilha extrajudicial, como assim também é na partilha judicial, pelos expressos termos do art. 1.035 do Código de Processo Civil, exceção feita, apenas, aos débitos tributários, cuja quitação se faz necessária por força do art. 1.031 do mesmo Código, mas não se pode olvidar, alertam, que o credor do falecido que se sentir prejudicado e frustrado em seu crédito poderá valer-se de todos os meios para invalidar a partilha (como acontece no procedimento judicial), e arrematam: “O patrimônio do falecido é a garantia de seu pagamento, e até mesmo a fraude à execução pode ser invocada para tornar ineficaz a partilha, se os requisitos específicos deste instituto estiverem presentes” (Escrituras públicas: separação, divórcio, inventário e partilha consensuais,São Paulo: RT, 2007, nº 9, p. 96).

26. Se a partilha obedecer ao princípio da igualdade e os quinhões são equivalentes, os herdeiros casados não necessitam da assistência dos respectivos cônjuges na escritura pública. Todavia, se houver renúncia da herança, cessão de direitos ou partilha desigual, com prejuízo do herdeiro, o cônjuge tem de anuir, concordar, assinar a escritura, a não ser, conforme mencionado acima, que o regime de bens seja o da separação absoluta, quando a outorga para a alienação de bens imóveis é dispensável, nos termos do art. 1.647 do Código Civil, e o mesmo se aplica ao regime de participação final nos aquestos, se, no pacto antenupcial, tiver sido convencionada a livre disposição dos bens imóveis particulares, como estabelece o art. 1.656 do Código Civil. Registre-se que, de acordo com o art. 80, II, do Código Civil, considera-se imóvel para os efeitos legais o direito à sucessão aberta, princípio que vem do Código Civil de 1916, art. 44, III.

27. O art. 1.040, incisos I a IV, do CPC indica os casos em que haverá a sobrepartilha. O Código Civil, art. 2.022, enuncia que ficam sujeitos a sobrepartilha os bens sonegados e quaisquer outros bens da herança de que se tiver ciência após a partilha. A sobrepartilha é um complemento da partilha, e correrá nos autos do inventário do autor da herança (CPC, art. 1.041, parágrafo único). Ainda que o inventário tenha sido feito em juízo, ou já tenha sido realizado pela via administrativa, conforme a Lei nº 11.441/2007, havendo necessidade de sobrepartilha, esta pode ser feita por escritura pública, se todos os interessados forem capazes e concordes. A lei que autorizou a fazer a partilha por escritura pública, permite, é óbvio, que se faça a sobrepartilha, que, afinal, é partilha, ainda.

28. Introduziu-se em nosso direito, por uma praxe jurídica há longo tempo estabelecida, para atender necessidades práticas, o inventário negativo, que, vê-se logo, é uma expressão contraditória, em que o segundo vocábulo briga com o primeiro, pois  inventariar  é relacionar  bens,  descrevê-los,  discriminar dívidas. O inventário negativo não foi previsto em nossas leis, mas faz parte do costume jurídico, ressalta meu querido e saudoso mestre Silvio Rodrigues, no livro Direito das Sucessões, 25ª ed., 2002, Saraiva/SP, n. 170, p. 290, que tive a honra de atualizar. No inventário negativo não se vão arrolar bens se, justamente, não há bens. Não se inventaria o nada! O fato concreto que mais justifica o inventário negativo é a necessidade de viúvos ou viúvas, que têm filhos do extinto casal, e querem casar-se novamente, sem que incida o regime obrigatório da separação de bens (Código Civil, art. 1.523, I, c/c art. 1.641, I). Outro caso seria o do herdeiro, que promove inventário negativo para mostrar que o de cujus não deixou patrimônio para garantir pagamento de suas dívidas. Sem que isto tenha sido mencionado expressamente, não há dúvida, entretanto, que a Lei nº 11.441/2007 admite que o chamado inventário negativo seja feito por escritura pública, observados os requisitos da mesma lei.

29. A previsão de que a escritura pública e demais atos notariais serão gratuitos àqueles que se declararem pobres sob as penas da lei consta no § 3º do art. 1.124-A, do CPC. E este artigo, no caput, está tratando da separação consensual e do divórcio consensual. Numa interpretação literal, restritiva, a gratuidade só ocorreria nas escrituras de separação e de divórcio. Mas, com certeza, não é este o espírito da lei, e deve ser dada ao preceito uma interpretação extensiva que, como o nome indica, nas hipóteses em que isto for pertinente, conveniente e justo, dilata-se, estica-se o sentido da regra jurídica, verificando-se que o legislador disse menos do que pretendia (minus dixit quam voluit) e o alcance da lei vai além de suas palavras (cf. meu livro Comentários à Lei de Introdução ao Código Civil – arts. 1º a 6º, 2ª ed., Unama/Belém, 2006, n. 40, p. 96). Assim, a gratuidade prevista no art. 1.124-A do CPC, numa visão sistemática, se estende às escrituras de inventário e partilha; e não só às escrituras e demais atos notariais, como, também, aos atos registrais. Seria patético que o pobre ficasse dispensado de pagar a escritura e tivesse de pagar o registro imobiliário!

30. Diz o art. 982, parte final, do CPC que a escritura pública de inventário e partilha constitui título hábil para o registro imobiliário. Aqui, também, o legislador minus dixit quam voluit. Falei, antes, reafirmo e, até, insisto nisso: a escritura pública prevista na Lei nº 11.441/2007, para os casos nesta tratados, tem igual estatura, idêntica importância e o mesmo efeito da sentença judicial. Todos os efeitos que normalmente são produzidos pelo formal de partilha ou pela carta de adjudicação ocorrem por força da escritura pública de inventário e partilha, celebrada nos termos do art. 982, segunda parte, do CPC, com a redação dada pela Lei nº 11.441/2007. Então, e independentemente de homologação judicial, a escritura pública é dotada de eficácia plena, para tudo que se refira à partilha. Assim, ela tem eficácia no Registro de Imóveis, na Superintendência do Patrimônio da União (SPU), no Registro Civil e onde mais for preciso, quer se trate de órgãos públicos ou de entidades privadas: bancos, entidades financeiras, Detran, companhias telefônicas, Junta Comercial, etc.

31. O Código Civil, art. 1.830, primeira parte, afirma que somente é reconhecido direito sucessório ao cônjuge sobrevivente se, ao tempo da morte do outro não estavam separados judicialmente. Realmente, se já ocorreu a separação judicial, transitada em julgado, cai o fundamento moral e jurídico da sucessão hereditária. Na lição de Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka (Comentários ao Código Civil, coordenador Antônio Junqueira de Azevedo, Saraiva/SP, 2003, v. 20, p. 220), a constância jurídica e fática do casamento é pressuposto para a participação do cônjuge sobrevivo na herança do falecido.

Como fica a situação, agora, diante da Lei nº 11.441/2007, que admite que a separação do casal se faça extrajudicialmente, por escritura pública?

Evidentemente, o art. 1.830 será objeto de uma releitura, para abranger o caso tratado na legislação superveniente. A separação pela via judicial e a separação pela via administrativa têm o mesmo valor e efeitos idênticos. Celebrada a escritura pública de separação (extrajudicial), conforme a Lei nº 11.441/2007, o cônjuge sobrevivente não tem direito sucessório, uma vez que a sociedade conjugal já estava dissolvida.

Alias, inovando com relação ao Código Civil de 1916, mas retroagindo quatrocentos anos e adotando a solução que determinavam as Ordenações Filipinas, de 1603, o Código Civil em vigor, art. 1.830, segunda parte, ordena o afastamento da sucessão do cônjuge sobrevivente se, ao tempo em que o outro faleceu, estava o casal separado de fato há mais de dois anos, salvo prova, neste caso, de que essa convivência se tornara impossível sem culpa do sobrevivente, sendo certo que, em muitos casos, não será fácil produzir a prova de quem teve culpa pela extinção da convivência, considerando, especialmente, que um dos parceiros já morreu. Analiso a questão no livro Código Civil Comentado,coordenador até a 5ª edição, Ricardo Fiúza, e coordenadora da 6ª edição Regina Beatriz Tavares da Silva, São Paulo: Saraiva, 2008, p. 2012.

32. A separação e o divórcio extrajudiciais representam alternativas criadas pela Lei n° 11.441/07, enaltecendo a autonomia das vontades dos cônjuges, ficando dispensada a intervenção judicial, pois tudo se passa perante o tabelião, com assistência do advogado, e o acordo é formalizado numa escritura pública. Jamais, na história do direito positivo brasileiro, a figura do tabelião ou notário ficou tão respeitada e engrandecida, e essa categoria haverá de agir com toda a dedicação e honestidade para justificar a confiança depositada pelo legislador. O art. 46 da Resolução n° 35/2007 do Conselho Nacional de Justiça – CNJ é de máxima importância, prevendo que o tabelião poderá se negar a lavrar a escritura de separação ou divórcio se houver fundados indícios de prejuízo a um dos cônjuges ou em caso de dúvidas sobre a declaração de vontade, fundamentando a recusa por escrito. O art. 32 dessa Resolução já prevê a negativa do tabelião no caso de lavratura de escritura de inventário ou partilha. O notário não é mero expectador, passivo, neutro, dos negócios jurídicos cuja instrumentalização preside, mas é um profissional de direito que deve atuar com toda a sabedoria e empenho para garantir o cumprimento das leis. Aproveitando exemplos dados por Frederico Henrique Viegas de Lima (Família e Jurisdição, coordenadores Eliene Ferreira Bastos e Antônio Fernandes da Luz, Ibdfam – Del Rey: Belo Horizonte, 2008, p. 141), o notário está autorizado a se abster da escrituração se o pacto for ilegal ou contrário à moral, se existe lesão a uma das partes, se viola interesses da Fazenda ou de terceiros. Mas a recusa tem de ser motivada, fundamentada, por escrito, até para que a parte que se sentir prejudicada possa reclamar, recorrer ao Poder Judiciário.

Zeno Veloso, Tabelião de Notas em Belém-PA, Professor de Direito Civil e Direito Constitucional; Doutor Honoris Causa da Universidade da Amazônia; Notório saber reconhecido pela Universidade Federal do Pará; Membro da Academia Paraense de Letras Jurídicas e da Academia Brasileira de Letras Jurídicas; Medalha do Mérito Legislativo da Câmara dos Deputados; Voto de Louvor do Senado Federal; Diretor Regional do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM.

Fonte: Informativo do Colégio Notarial do Brasil – seção São Paulo – Ano XI – n. 131 novembro – 2009