Jurisprudência selecionada: Doação entre cônjuges. Regime patrimonial híbrido: ao regime da separação legal imposto pelo art. 258, parágrafo único, II, do Código Civil, os nubentes acresceram, mediante convenção antenupcial, a incomunicabilidade dos aquestos. Imóvel adquirido pelo doador já na constância de seu casamento com a donatária. Imóvel não integrou a comunhão em virtude do regime convencional de separação completa. Não há falar, portanto, na espécie, em eventual burla ao regime de separação de bens imposto pela lei, pois no regime da separação convencional, inexiste impedimento a que o titular disponha como bem lhe aprouver dos bens de sua propriedade exclusiva. Não há, no negócio jurídico que se quer levar a registro, eiva formal que ao registrador incumbisse apontar na tarefa de verificação de legalidade, recordando-se que não lhe é dado, na qualificação registral, adentrar o exame de eventuais vícios intrínsecos do título, porventura susceptíveis de macular de anulabilidade o ato jurídico.
APELAÇÃO CÍVEL N.º 12.428-0/6 – SANTA BÁRBARA D’OESTE
Excelentíssimo Senhor Desembargador Corregedor Geral:
I – Tratam os autos de Apelação (fls. 44/55), interposta por ORLANDO FURLAN e ANTONIA OLGA MONDONI FURLAN contra a R. sentença do MM Juiz Corregedor Permanente do Cartório de Registro de Imóveis da Comarca de SANTA BÁRBARA D’OESTE, que, julgando procedente Dúvida suscitada pelo Serventuário, indeferiu o registro de escritura pública de doação apresentada pelos ora recorrentes (fls. 36/40).
O título instrumenta a doação feita pelo cônjuge varão, Orlando Furlan, à cônjuge mulher, Antonia Olga Mondoni Furlan, da nua propriedade sobre o imóvel matriculado sob o n.º 1.473. Denegou-lhe o acesso o MM. Juiz porque, sendo o doador e a donatária casados entre si pelo regime da separação legal de bens, imposta pelo art. 258, II, do C. Civil, a doação vulnera o regime patrimonial de bens, não podendo, por isso, ser registrada.
Recorrendo, os interessados deduzem, inicialmente, preliminar de nulidade na R. decisão, porque não apreciara alegada incompetência do registrador para opor óbice da espécie, concernente ao “mérito da doação”. Sustentam, ainda, que a lei civil não impede doações entre cônjuges como a de que ora se trata, invocando precedentes jurisprudenciais e doutrinários segundo os quais comunicam-se, mesmo no regime de separação obrigatória, os bens havidos na constância do casamento por mútuo esforço dos cônjuges.
O parecer da Curadoria de Registros Públicos local é pelo acolhimento do apelo (fls. 57/58). A D. Procuradoria Geral da Justiça, ao contrário, opina pelo improvimento da irresignação (fls. 65/66).
É o relatório.
II – Passo a opinar.
II.a – De ressaltar, “a priori”, que não há falar em eventual anulamento da R. sentença, por haver deixado de apreciar matéria prejudicial de mérito. A questão concernente a se saber se o Cartório Imobiliário podia recusar o registro pelo motivo a final acolhido diz respeito ao próprio mérito da controvérsia registrária, balisada pelo limite da verificação formal de legalidade de que se incumbe o registrador.
II.b – O doador é casado com a donatária sob regime de completa separação de bens. Consoante se vê da certidão de pacto antenupcial registrado no Livro n.º 03, de Registro Auxiliar, do próprio Ofício Predial de Santa Bárbara D’oeste (fls. 05), os nubentes convencionaram, em acréscimo ao regime legal da separação que lhes era imposto pelo artigo 258, parágrafo único, inciso II, do Código Civil, a completa separação também no tocante aos aquestos, isto é, aos bens que viessem a ser adquiridos na constância do matrimônio. O regime patrimonial no casamento dos apelantes, portanto, é o da separação legal, com o “plus” da incomunicabilidade dos aquestos, adotada convencionalmente, de maneira a afastar a incidência da Súmula n.º 377 do S.T.F.
II.c – A qualificação afeta ao registrador abrange, como se sabe, o controle da legalidade formal dos atos jurídicos que lhe são submetidos a registro. Esse controle, nada obstante amplo, circunscreve-se à detecção daqueles vícios susceptíveis de inquinar de nulidade o ato jurídico que se instrumenta no título apresentado; não se faculta ao Oficial obstar o registro em razão de eiva que configure mera anulabilidade do ato ou do negócio jurídico. Compete ao registrador, assim, vedar acesso, por vício da legalidade, apenas àquelas mutações jurídico-reais que a lei veda com a cominação de nulidade.
II.d – Resta saber, portanto, se está presente, “in casu”, o óbice de legalidade que se acolheu em primeiro grau como impeditivo do registro.
Questão controversa na doutrina é a concernente à licitude das doações entre cônjuges casados sob o regime da separação legal de bens (art. 258, parágr. único, do C. Civil). Grande parte de nossos mais ilustres civilistas efetivamente vislumbra – como assinalou o magistrado sentenciante – a marca de nulidade em tais doações, entendimento cujo lastro mais relevante é o que caracteriza, nessas hipóteses, um ladeamento da proibição legal, uma forma oblíqua de anular, por meio das doações entre cônjuges, o regime da separação de bens que a lei quis impor. Não se sustentaria essa orientação, quer parecer, sob enfoque de uma exegese literal do texto da lei civil, porquanto a vedação de doar estatuída no art. 226 só se dirige, em caráter restritivo, ao regime de separação imposto pelo art. 258, parág. único, inciso I, do mesmo “codex”, não se estendendo, em interpretação literal, a outras hipóteses de casamento celebrado sob o regime obrigatório de separação de bens, dentre elas a “do maior de sessenta anos e da maior de cinqüenta anos”, que interessa de perto ao caso dos autos. Para Elvino Silva Filho, de outra parte, não haveria impedimento, “ou proibição legal, exceção feita ao art. 226, combinado com o item I do par. único do art. 258 do C.C., que um cônjuge, após o casamento, e dentro da sua reação disponível, efetue a doação de imóvel do seu domínio particular ao outro cônjuge”. E aduz interessante argumento: “Se ele poderia dispor do imóvel por testamento, por que não poderá fazê-lo, por ato ‘inter vivos’, na doação?” (“Efeitos da Doação no Registro de Imóveis”, artigo in Revista de Direito Imobiliário do I.R.I.B. vol. 19/20, pág. 27).
A espécie sob exame, porém, não justifica opção entre tais correntes interpretativas.
É que, ao tempo da aquisição do imóvel pelo ora doador, já era ele casado com a donatária pelo regime patrimonial híbrido a que acima se aludiu (fls. 22/23, 11/13). Disto decorre que a não comunicação do bem ao cônjuge derivou – não do regime legal de separação previsto no art. 258, parág. único, II, do C. Civil -, mas da absoluta separação, abrangente de aquestos, resultante da convenção antenupcial. Inexistisse o regime convencional de separação eleito pelos cônjuges, e o imóvel, adquirido a título oneroso, ter-se-ia comunicado à mulher, nos exatos termos do enunciado de n.º 377 da Súmula do S.T.F., “verbis”, “No regime de separação legal de bens, comunicam-se os adquiridos na constância do casamento”.
Isto quer dizer – reitere-se – que a exclusão do bem de eventual comunhão patrimonial é devida ao regime convencional, não ao regime de separação legal que, como quer que seja, seria aplicável. É irrelevante, portanto, para a espécie dos autos, que os interessados fossem obrigados por lei ao regime da separação em seu matrimônio. O regime de bens a ser aqui considerado é, tão só, o da separação convencional. E, neste último regime, são inteiramente lícitas as doações que um cônjuge faça ao outro, inexistindo óbice de nulidade e não havendo cogitar de tangenciamento da lei na circunstância de um dos cônjuges dispor do que lhe toca com exclusividade.
Por tais razões, não é detectável, na pretensão registrária, vício de nulidade que ao registrador fosse dado argüir no exercício do controle amplo de legalidade que lhe incumbe. Mesmo a se encampar, “ad argumentandum”, a corrente que afirma impedir o regime obrigatório de separação de bens que um cônjuge faça doação ao outro, não seria de se estender essa premissa aos aquestos, em relação aos quais a criação pretoriana, estatuindo sua comunicabilidade, presumir a “affectio societatis” a conjunção de esforços como fator determinante do aumento patrimonial.
III – Opino, diante do exposto, por que se dê provimento à presente Apelação, para que, julgada improcedente a Dúvida, se determine o registro do título em causa.
À superior consideração de Vossa Excelência.
São Paulo, 27 de maio de 1.991.
(a) AROLDO MENDES VIOTTI, Juiz Auxiliar da Corregedoria
A C Ó R D Ã O
Vistos, relatados e discutidos estes autos de APELAÇÃO CÍVEL N.º 12.428-0/6, da Comarca de SANTA BÁRBARA D’OESTE, em que são apelantes ORLANDO FURLAN e ANTONIA OLGA MONDONI FURLAN e apelado o OFICIAL DO CARTÓRIO DE REGISTRO DE IMÓVEIS DA COMARCA.
A C O R D A M os Desembargadores do Conselho, Superior da Magistratura, por votação unânime, em dar provimento ao recurso.
Trata-se de Apelação deduzida por ORLANDO FURLAN e ANTONIA OLGA MONDONI FURLAN contra a R. sentença do M.M. Juiz Corregedor Permanente do Cartório de Registro de Imóveis de SANTA BÁRBARA D’OESTE, que, julgou procedente Dúvida, indeferiu o registro, no Ofício Imobiliário, de escritura pública de doação, na qual figura como doador o primeiro recorrente, e como donatária a segunda.
O M.M. Juiz recusou acesso ao título porque os recorrentes (doador e donatária) são casados entre si pelo regime da separação legal de bens, de maneira que, a teor de precedentes doutrinários que colaciona, é ilícita a doação entre cônjuges em tais condições, vulnerando os princípios inerentes à separação legal; na hipótese, os recorrentes também celebraram pacto antenupcial, estatuindo a incomunicabilidade dos aquestos, daí porque a doação afrontaria o regime de bens que elegeram.
Em primeiro grau, o Ministério Público é pelo provimento do apelo, opinando a D. Procuradoria Geral da Justiça, ao contrário por que se mantenha a R. sentença.
O parecer do M.M. Juiz Auxiliar é no sentido de se dar provimento ao recurso.
É o relatório.
Os recorrentes são casados entre si sob regime patrimonial híbrido: ao regime da separação legal imposto pelo art. 258, parágrafo único, II, do Código Civil, os nubentes acresceram, mediante convenção antenupcial, a incomunicabilidade dos aquestos.
Além disso, o imóvel ora doado foi adquirido pelo doador já na constância de seu casamento com a donatária.
Isto quer dizer que, fosse tão só o regime da separação legal o aqui aplicável, o problema não se colocaria, porque o bem, conquanto adquirido apenas pelo varão, ter-se-ia comunicado à mulher, nos termos do verbete n.º 377 da Súmula do Supremo Tribunal Federal.
O imóvel não integrou a comunhão em virtude do regime convencional de separação completa.
Não há falar, portanto, na espécie, em eventual burla ao regime de separação de bens imposto pela lei. E no regime da separação convencional, inexiste impedimento a que o titular disponha como bem lhe aprouver dos bens de sua propriedade exclusiva.
Não há, no negócio jurídico que se quer levar a registro, eiva formal que ao registrador incumbisse apontar na tarefa de verificação de legalidade, recordando-se que não lhe é dado, na qualificação registral, adentrar o exame de eventuais vícios intrínsecos do título, porventura susceptíveis de macular de anulabilidade o ato jurídico.
Por tudo isso, dá-se provimento à apelação, determinando-se o registro do título.
Custas na forma da lei.
Participaram do julgamento, com votos vencedores, os Desembargadores ANICETO LOPES ALIENDE, Presidente do Tribunal de Justiça e ODYR JOSÉ PINTO PORTO, Vice-Presidente do Tribunal de Justiça.
São Paulo, 12 de agosto de 1991.
(a) ONEI RAPHAEL, Corregedor Geral da Justiça e Relator.