CSM|SP: Apelação Cível – Dúvida Registral – Registro de Imóveis – Escritura de doação de 25% da nua-propriedade – Cláusula de reversão não pode favorecer terceiros (art. 547, parágrafo único, CC) – Impenhorabilidade e incomunicabilidade de caráter personalíssimo não se transmitem aos 25% doados – Necessidade de retificação da escritura para evitar erro interpretativo e preservar a segurança jurídica – Pedido subsidiário de registro parcial afastado – Manutenção da desqualificação registrária – Recurso desprovido.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Cível nº 1015176-70.2024.8.26.0451, da Comarca de Piracicaba, em que são apelantes DIVA MARIA MORAES NASCIMENTO BISCALQUIN, SILVIA REGINA MORAES NASCIMENTO LEPERA e MILTON NASCIMENTO JÚNIOR, é apelado PRIMEIRO OFICIAL DE REGISTRO DE IMÓVEIS E ANEXOS DA COMARCA DE PIRACICABA.

ACORDAM, em Conselho Superior da Magistratura do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão: “Negaram provimento, v u.”, de conformidade com o voto do Relator, que integra este acórdão.

O julgamento teve a participação dos Exmos. Desembargadores FERNANDO TORRES GARCIA (PRESIDENTE TRIBUNAL DE JUSTIÇA) (Presidente), BERETTA DA SILVEIRA (VICE PRESIDENTE), XAVIER DE AQUINO (DECANO), TORRES DE CARVALHO (PRES. SEÇÃO DE DIREITO PÚBLICO), HERALDO DE OLIVEIRA (PRES. SEÇÃO DE DIREITO PRIVADO) E CAMARGO ARANHA FILHO (PRES. SEÇÃO DE DIREITO CRIMINAL).

São Paulo, 30 de outubro de 2025.

FRANCISCO LOUREIRO

Corregedor Geral da Justiça e Relator

APELAÇÃO CÍVEL nº 1015176-70.2024.8.26.0451

Apelantes: Diva Maria Moraes Nascimento Biscalquin, Silvia Regina Moraes Nascimento Lepera e Milton Nascimento Júnior

Apelado: Primeiro Oficial de Registro de Imóveis e Anexos da Comarca de Piracicaba

VOTO Nº 43.950

Direito Civil – Apelação em procedimento de dúvida – Registro de Imóveis – Dúvida procedente.

I. Caso em Exame

1. Apelação interposta contra sentença que negou o registro de escritura pública de doação de 25% da nua-propriedade de imóvel.

II. Questão em Discussão

2. Discute-se o alcance de cláusulas de reversão, de impenhorabilidade e de incomunicabilidade devidamente inscritas na matrícula do bem, considerando o teor de texto constante da escritura de doação.

III. Razões de Decidir

3 A cláusula de reversão não pode favorecer terceiros, na forma da norma cogente do art. 547, parágrafo único, do Código Civil.

4. As cláusulas de impenhorabilidade e incomunicabilidade possuem natureza personalíssima e não se aplicam aos 25% da nua-propriedade cuja doação se pretende.

5. Necessária a retificação da escritura, com a finalidade de evitar dispositivos que possam levar o intérprete a erro e gerem insegurança jurídica.

IV. Dispositivo e Tese

6. Recurso desprovido.

Tese de julgamento: 1. A cláusula de reversão não pode favorecer terceiros. 2. As cláusulas de impenhorabilidade e incomunicabilidade têm caráter personalíssimo e não continuam em vigor após a alienação do bem pelo beneficiário.

Legislação Citada:

– Código Civil, art. 547.

Trata-se de apelação interposta por Diva Maria Moraes Nascimento Biscalquin, Sílvia Regina Moraes Nascimento Lepera e Milton Nascimento Júnior contra a r. sentença de fls. 47/49, proferida pela MM. Juíza Corregedora Permanente do 1º Registro de Imóveis e Anexos de Piracicaba, que, mantendo a exigência apresentada pelo Oficial, negou o registro de escritura pública de doação de 25% da nua- propriedade do imóvel matriculado sob nº 124.966 daquela serventia.

Após considerações a respeito de doação anterior devidamente registrada na matrícula, sustentam os apelantes que não houve estipulação de cláusula de reversão em favor de terceiros e que não há mais qualquer restrição em relação aos 25% do bem doados por Lúcia a seus irmãos, tendo os doadores primitivos concordado com isso.

Pedem, ao final, a reforma de sentença para que seja determinado o registro da escritura pública de doação. De forma subsidiária, requerem o registro da escritura, desconsiderando-se o trecho considerado contrário à lei (fls. 53/76).

A Procuradoria de Justiça manifestou-se pelo não provimento do recurso (fls. 165/167).

É o relatório.

Milton Nascimento e Teresinha Alves de Moraes Nascimento doaram a nua-propriedade do imóvel atualmente matriculado sob n° 124.966 do 1º Registro de Imóveis de Piracicaba a seus quatro filhos (Lúcia Helena Moraes Nascimento Vitti, Diva Maria Moraes Nascimento Biscalquin, Sílvia Regina Moraes Nascimento Lepera e Milton Nascimento Júnior), reservando-se a si o usufruto do bem (fls. 26/30).

Cada um dos filhos, portanto, se tornou titular da nua- propriedade de 25% do bem imóvel matriculado sob nº 30.082 do 1º Registro de Imóveis de Piracicaba, que atualmente corresponde à matrícula nº 124.966 da referida serventia.

A integralidade da referida doação foi feita com cláusulas de reversão, com fundamento no art. 547 do Código Civil[1] (cf. av.2 da matrícula nº 124.966 fls. 30), de impenhorabilidade e incomunicabilidade (cf. av.3 da matrícula nº 124.966 fls. 30/31)

Agora, pretendem os apelantes o registro da escritura pública de doação copiada a fls. 8/12, por meio da qual Lucia Helena Moraes Nascimento Vitti doa a seus irmãos, Diva Maria Moraes Nascimento Biscalquin, Silvia Regina Moraes Nascimento Lepera e Milton Nascimento Júnior, sua parte no bem (25% da nua-propriedade).

O registro não foi admitido nem pelo Oficial nem pela MM. Juíza Corregedora Permanente, em virtude do seguinte trecho da escritura de doação: “que as cláusulas restritivas (Av.8) e a cláusula de reversão (R.7) continuam íntegras, mas agora, exclusivamente em relação aos donatários remanescentes, Diva Maria Moraes Nascimento Biscalquin, Silvia Regina Moraes Nascimento Lepera e Milton Nascimento Júnior” (fls. 11).

E a desqualificação do título está correta.

Com efeito, a estipulação constante na escritura de doação acima transcrita está, por duas razões, em desacordo com a legislação civil em vigor.

O primeiro deles se refere ao alcance da cláusula de reversão.

Não se discute a possibilidade de alienação de bem doado com cláusula de reversão. Sobre o tema, ensina Nelson Rosenvald:

Assim, ainda que a cláusula de reversão não torne o bem inalienável, podendo o donatário, livremente, aliená-lo (vendê-lo ou doá-lo), na hipótese, a transmissão será de propriedade resolúvel e a subsequente morte do beneficiário antes da morte do doador gera a extinção da titularidade” (Código Civil comentado: doutrina e jurisprudência : Lei n. 10.406 de 10.01.2002 / coordenador Cezar Peluso. 18. Ed. Santana do Parnaíba, SP : Manole, 2024, p. 574).

O negócio objeto da escritura de fls. 8/12, portanto, por meio da qual Lucia Helena doa sua parte no imóvel a seus irmãos, é válido.

A desqualificação, nesse ponto, se deve à modificação da cláusula de reversão estipulada em escritura anterior, já registrada, no bojo de nova escritura de doação.

De acordo com a cláusula de reversão averbada sob nº 2 na matrícula nº 124.966, transportada da matrícula nº 30.082 (fls. 30), caso algum dos quatro donatários faleça antes da morte dos doadores, a fração da nua-propriedade doada ao falecido retornará ao patrimônio dos doadores. A morte resolve a propriedade do donatário que faleceu na exata proporção do que lhe coube na doação.

No entanto, a escritura de fls. 8/12, ao estipular que a cláusula de reversão continua íntegra apenas em relação a Diva Maria, Silvia Regina e Milton Júnior, leva o intérprete a concluir que eventual morte de Lucia Helena antes da dos doadores não gera efeito algum. Tal disposição, porém, viola norma cogente. Sem o cancelamento da cláusula de reversão, mesmo doando sua parte no bem aos irmãos, é a pré-morte de Lúcia Helena que ocasionará o retorno de seus 25% no bem ao patrimônio dos doadores.

Se a doação houvesse sido registrada, cada irmão teria um terço da nua propriedade do imóvel. Desses 33,333%, 25% seriam fruto da doação original e o evento futuro e incerto que resolveria essa parte da propriedade seria a pré-morte do próprio titular original da fração. Os 8,333% restantes reger-se-iam de modo totalmente diverso. Essa pequena fração seria fruto da doação da irmã e o evento futuro e incerto que resolveria essa parte da propriedade seria a pré-morte de Lúcia Helena.

Registrada a segunda doação, a pré-morte de Lúcia Helena faria com que toda a parte por ela recebida e depois doada aos irmãos voltasse ao patrimônio dos pais (Milton e Terezinha). Todos os três irmãos, dessa forma, perderiam 8,333% do bem para os pais.

Da forma como foi redigido, o trecho da escritura leva à conclusão que a reversão passa a favorecer terceiros em relação à segunda doação, o que a legislação civil expressamente proíbe (“Parágrafo único. Não prevalece cláusula de reversão em favor de terceiro“).

A segunda razão da desqualificação diz respeito à indevida manutenção das cláusulas de impenhorabilidade e incomunicabilidade sobre os 25% doados por Lúcia Helena.

Isso porque essas cláusulas restritivas possuem caráter personalíssimo, restringindo a propriedade apenas daquele que recebeu a doação.

Uma vez doados os 25% que cabem a Lúcia Helena anotando-se que não há estipulação de inalienabilidade , as cláusulas restritivas desaparecem. Assim, os 25% da nua-propriedade doados aos irmãos 8,333% para cada serão recebidos sem as restrições relativas à impenhorabilidade e à incomunicabilidade. Dizendo de outro modo, as cláusulas restritivas alcançam apenas uma geração, não podendo surtir efeitos quando o beneficiário transmitir o bem a terceiros.

Não havendo formal imposição das cláusulas sobre o objeto da nova doação (25% da nua-propriedade), não se pode admitir, em trecho da escritura denominado “Declarações dos intervenientes anuentes”, a validade de estipulação no sentido de “que as cláusulas restritivas (…) continuam íntegras, mas agora, exclusivamente em relação aos donatários remanescentes, Diva Maria Moraes Nascimento Biscalquin, Silvia Regina Moraes Nascimento Lepera e Milton Nascimento Júnior” (fls. 11).

Anote-se, ainda, que o fato de os doadores originais (Milton e Teresinha) terem constado no título como intervenientes anuentes (fls. 8/12) não soluciona a questão.

No caso da reversão, havia necessidade de um cancelamento expresso da cláusula.

No caso das cláusulas restritivas, se impunha expressa estipulação no sentido de que a impenhorabilidade e a incomunicabilidade se aplicariam aos 25% da nua-propriedade doados aos irmãos.

Finalmente, o pedido subsidiário de registro da escritura, desconsiderando-se o trecho considerado contrário à lei não vinga.

Com efeito, o registro da escritura na matrícula é feito de forma bastante resumida, não havendo como se determinar a inscrição com explicações detalhadas a respeito da validade das cláusulas constantes no título. E o título com as falhas aqui apontadas permanecerá acessível ao público, de modo que qualquer interessado na aquisição/constrição do imóvel poderá solicitar certidão da escritura pública, o que lhe dará acesso a um título que contém trecho em desacordo com a legislação civil em vigor, podendo levá-lo a interpretações equivocadas a respeito do alcance das cláusulas de reversão, de impenhorabilidade e de incomunicabilidade.

A segurança jurídica que o sistema registral busca proteger não admite solução como essa.

Desse modo, com razão o Oficial, que desde o início da suscitação da dúvida apresentou como remédio a retificação da escritura viciada (fls. 5).

A manutenção da r. sentença prolatada se impõe.

Ante o exposto, pelo meu voto, nego provimento à apelação.

FRANCISCO LOUREIRO

Corregedor Geral da Justiça e Relator

Notas:

[1] Art. 547. O doador pode estipular que os bens doados voltem ao seu patrimônio, se sobreviver ao donatário.

Parágrafo único. Não prevalece cláusula de reversão em favor de terceiro.

(DJEN de 04.11.2025 – SP)