1ª VRP|SP: Registro de imóveis – Dúvida – Escritura pública de compra e venda apresentada via e-Protocolo apenas como cópia digitalizada por particular – Inadmissibilidade – Títulos notariais eletrônicos só podem ingressar se nato-digitais (certidão/traslado em PDF/A ou XML, assinado por tabelião, substituto ou preposto) ou se desmaterializados por notário/registrador, com assinatura ICP-Brasil – Cópia digitalizada pelo portador não ostenta fé pública nem permite aferição de autoria, autenticidade e integridade – Necessária a apresentação do original físico para conferência ou o reingresso pela Central/ONR em formato idôneo – Princípio da legalidade estrita – Óbice mantido – Dúvida procedente.

Sentença

Processo nº: 1108804-65.2025.8.26.0100

Classe – Assunto Dúvida – Registro de Imóveis

Suscitante: 5º Cartório de Registro de Imóveis de São Paulo

Suscitado: Samira Abad Sanchez

Juíza de Direito: Dra. Renata Pinto Lima Zanetta

Vistos.

Trata-se de dúvida suscitada pelo 5º Oficial de Registro de Imóveis de São Paulo, a requerimento de Samira Abad Sanchez, diante de negativa em se proceder ao registro de escritura pública de compra e venda envolvendo o imóvel objeto da matrícula n. 79.274 daquela serventia.

O Oficial informa que em 28/07/2025 foi apresentada para registro uma via digitalizada da escritura pública de compra e venda do imóvel objeto da matrícula n. 79.274, lavrada pelo 23º Tabelião de Notas de São Paulo (livro 5.307, fls. 165/170), prenotado sob n. 415.108; que o título foi devolvido com exigência, contra a qual a suscitada se insurge, solicitando a suscitação de dúvida; que exigência consiste em apresentar o título em formato PDF/A, assinado digitalmente com certificado digital válido, de modo a atender aos padrões e requisitos da ICP-Brasil e à arquitetura e-PING, cujo titular do certificado digital utilizado deve ser Tabelião, substituto ou preposto autorizado, possibilitando a verificação de atributo mediante consulta à base de dados do Colégio Notarial do Brasil, ou, alternativamente, após o reingresso via plataforma ONR, apresentar o título e os documentos que o instruem, no original, fisicamente, para conferência com as cópias digitalizadas apresentadas via e-protocolo, por se tratarem de título e documentos físicos digitalizados e não natos digitais (fls. 01/14).

Documentos vieram às fls. 15/46.

Em impugnação nos autos, a parte suscitada aduziu que o Decreto Federal n. 10.278/2020, em seu artigo 3º, estabelece que documentos digitalizados conforme seus requisitos técnicos terão o mesmo valor legal do documento físico digitalizado; que não há limitação quanto ao signatário da assinatura digital, bastando que seja certificado válido ICP-Brasil; que a Lei Federal n. 14.063/2020 reconhece a assinatura digital ICP-Brasil como meio idôneo para garantir autenticidade, integridade e validade jurídica de documentos eletrônicos, inclusive digitalizados; que o Provimento CNJ n. 149 e as Normas de Serviços da Corregedoria Geral da Justiça do Estado de São Paulo distinguem documentos nato-digitais de documentos digitalizados, sendo que apenas para os primeiros exige-se assinatura do Tabelião; que para os segundos, basta a conformidade técnica, o que foi integralmente observado no caso concreto; que a exigência contraria os princípios da proporcionalidade, razoabilidade, boa-fé objetiva e eficiência administrativa, além de esvaziar a finalidade do próprio sistema e-Protocolo, criado para simplificar e desburocratizar a apresentação de títulos, além de impor à parte custo adicional, sobretudo porque o título já foi validamente emitido em meio físico pelo 23º Tabelião de Notas de São Paulo, cuja autenticidade foi preservada no processo de digitalização conforme os padrões legais; que se prevalecer a interpretação do Oficial, chegar-se-á à conclusão de que nenhuma escritura emitida em formato físico poderia ser apresentada pelo e-Protocolo, esvaziando a finalidade do sistema; e que requer o registro do título apresentado (fls. 37/38 e 47/51). Juntou documentos (fls. 52/68).

O Ministério Público ofertou parecer, opinando pela manutenção do óbice (fls. 71/73).

Sobreveio nova manifestação da parte suscitada (fls. 75/80).

É o relatório. Fundamento e Decido.

De proêmio, cumpre ressaltar que, no sistema registral, vigora o princípio da legalidade estrita, pelo qual somente se admite o ingresso de título que atenda aos ditames legais. Por isso, o Oficial, quando da qualificação registral, perfaz exame dos elementos extrínsecos do título à luz dos princípios e normas do sistema jurídico (aspectos formais), devendo obstar o ingresso daqueles que não se atenham aos limites da lei.

É o que se extrai do item 117, Cap. XX, das NSCGJ: “Incumbe ao oficial impedir o registro de título que não satisfaça os requisitos exigidos pela lei, quer sejam consubstanciados em instrumento público ou particular, quer em atos judiciais“.

No mérito, o pedido é procedente, para manter o óbice.

A Lei n. 6.015/1973 preceitua que a forma do título é indispensável para sua admissão no Registro de Imóveis. Somente podem ser admitidos a registro os títulos hábeis que assumam a forma prevista em lei (artigo 221 da Lei de Registros Públicos).

Assim, a qualificação registral incide, dentre outros tantos requisitos, no exame dos requisitos formais do título apresentado para registro ou averbação de fatos, de atos e de negócios jurídicos, não se admitindo o acesso ao fólio real de documento que não assuma a forma prevista em lei ou apresentado com deficiência formal. A avaliação do título recai diretamente na análise formal do documento apresentado, de sua autenticidade, conteúdo, presunção de validade jurídica, dentre outros aspectos formais.

No caso, a parte interessada apresentou uma via digitalizada da escritura de compra e venda, encerrando contrariedade ao disposto no inciso I do § 1º do artigo 208 do Provimento CNJ n. 149/2023, e no subitem 366.5, Cap. XX, das NSCGJ.

Trata-se, portanto, de digitalização de um ato notarial realizada pelo próprio particular que, a rigor, é uma simples cópia do documento original, e não assume a forma prevista em lei para ser admitido a registro, posto que destituído/desprovido dos atributos próprios do ato notarial – a fé pública, autenticidade, autoria e integridade. Não atende as disposições legais e normativas previstas no artigo 7º, inciso I, da Lei n. 8.935/94, artigos 299, 208 do Código Nacional de Normas da Corregedoria Nacional de Justiça do CNJ, e itens 149, 198, 209, 365 e 366, dos Capítulos XVI e XX das Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça, para a recepção de título encaminhado eletronicamente para a unidade de serviço de registro.

Bem por isso, a ausência de apresentação do documento original não permite ao registrador realizar a qualificação do título apresentado.

As decisões administrativas em matéria registral imobiliária são firmes neste sentido: “A cópia constitui mero documento e não instrumento formal previsto como idôneo a ter acesso ao registro e tendo em vista uma reavaliação qualificativa do título, vedado o saneamento intercorrente das deficiências da documentação apresentada (…)” (Apelação Cível n° 33.624-0/4, Rel. Des. Márcio Bonilha, j. 12/9/1996), merecendo destaque os seguintes precedentes do C. Conselho Superior da Magistratura:

“DÚVIDA. Necessidade de apresentação de documentos originais, não podendo haver registro de cópia de títulos. Ausência de impugnação de todos os itens da nota de devolução. Dúvida prejudicada. Recurso não conhecido. REGISTRO DE IMÓVEIS Imprescindibilidade de recolhimento do imposto de transmissão. Impossibilidade de ingresso registral.” (TJSP; Apelação Cível 1009025-47.2015.8.26.0114; Relator (a): Pereira Calças; Órgão Julgador: Conselho Superior de Magistratura; Data do Julgamento: 20/07/2017).

“REGISTRO DE IMÓVEIS. Dúvida julgada procedente. Escritura pública de compra e venda e cessão, retificada e ratificada por outra escritura. Outorgantes vendedores falecidos – Não apresentação do título original para protocolo. Dúvida prejudicada Recurso não conhecido.” (TJSP; Apelação Cível 1004656-53.2017.8.26.0271; Relator (a): Pinheiro Franco (Corregedor Geral); Órgão Julgador: Conselho Superior de Magistratura; Data do Julgamento: 18/07/2019).

É cediço que a recente Lei n. 14.382/2022, que instituiu o inédito Sistema Eletrônico dos Registros Públicos (SERP), estabeleceu, no artigo 6º, que os oficiais dos registros públicos, quando cabível, receberão dos interessados, por meio do Serp, os extratos eletrônicos para registro ou averbação de fatos, de atos e de negócios jurídicos, nos termos do inciso VIII do caput do art. 7º. O artigo 7º, por sua vez, atribuiu à E. Corregedoria Nacional de Justiça disciplinar o disposto na referida lei, em especial os seguintes aspectos (nossos destaques):

“Art. 7º Caberá à Corregedoria Nacional de Justiça do Conselho Nacional de Justiça disciplinar o disposto nos arts. 37 a 41 e 45 da Lei nº 11.977, de 7 de julho de 2009, e o disposto nesta Lei, em especial os seguintes aspectos:

I – os sistemas eletrônicos integrados ao Serp, por tipo de registro público ou de serviço prestado;

(…)

III- os padrões tecnológicos de escrituração, indexação, publicidade, segurança, redundância e conservação de atos registrais, de recepção e comprovação da autoria e da integridade de documentos em formato eletrônico, a serem atendidos pelo Serp e pelas serventias dos registros públicos, observada a legislação;

IV- a forma de certificação eletrônica da data e da hora do protocolo dos títulos para assegurar a integridade da informação e a ordem de prioridade das garantias sobre bens móveis e imóveis constituídas nos registros públicos;

(…)

VIII – a definição do extrato eletrônico previsto no art. 6º desta Lei e os tipos de documentos que poderão ser recepcionados dessa forma; (…)”

A Lei n. 6.015/1973, com as alterações incluídas pela Lei n. 14.382/2022, dispõe, em seu artigo 1º, § 4º, que as serventias extrajudiciais não poderão recusar a recepção, a conservação ou o registro de documentos em forma eletrônica produzidos conforme os critérios estabelecidos pela Corregedoria Nacional de Justiça:

“Art. 1º. Os serviços concernentes aos Registros Públicos, estabelecidos pela legislação civil para autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos, ficam sujeitos ao regime estabelecido nesta Lei.

(…)

§ 4º. É vedado às serventias dos registros públicos recusar a recepção, a conservação ou o registro de documentos em forma eletrônica produzidos nos termos estabelecidos pela Corregedoria Nacional de Justiça do Conselho Nacional de Justiça.”

O dispositivo acima foi normatizado pela E. Corregedoria Nacional de Justiça no Provimento CNJ n. 149/2023, que instituiu o Código Nacional de Normas da Corregedoria Nacional de Justiça do CNJ, nos seguintes termos:

“Art. 208. Os oficiais de registro e os tabeliães deverão recepcionar diretamente títulos e documentos nato-digitais ou digitalizados, observado o seguinte:

(…)

II – a recepção pelos oficiais de registro ocorrerá por meio:

a) preferencialmente, do Sistema Eletrônico dos Registros Públicos Serp e dos sistemas que o integra (especialmente os indicados nos incisos I a III do § 1º do art. 211 deste Código); ou

b) de sistema ou plataforma facultativamente mantidos em suas próprias serventias, desde que tenham sido produzidos por meios que permitam certeza quanto à autoria e integridade.

§ 1º Consideram-se títulos nato-digitais, para todas as atividades, sem prejuízo daqueles previstos em lei específica: (incluído pelo Provimento n. 180, de 16.8.2024)

(…)

III – a certidão ou o traslado notarial gerado eletronicamente em PDF/A ou XML e assinado por tabelião de notas, seu substituto ou preposto; (incluído pelo Provimento n. 180, de 16.8.2024)

IV os documentos desmaterializados por qualquer notário ou registrador, gerados em PDF/A e assinados por ele, seus substitutos ou prepostos com assinatura qualificada ou avançada; (incluído pelo Provimento n. 180, de 16.8.2024)

(…)

§2.º Consideram-se títulos digitalizados com padrões técnicos aqueles que forem digitalizados em conformidade com os critérios estabelecidos no art. 5.º do Decreto n. 10.278, de 18 de março de 2020, inclusive os que utilizem assinatura eletrônica qualificada ou avançada admitida perante os registros públicos (art. 17, §§ 1º e 2º, da Lei n. 6.015/1973; art. 38, § 2º, da Lei n. 11.977/2009;

Art. 210. Os oficiais de registro ou tabeliães, quando recepcionarem título ou documento digitalizado, poderão exigir a apresentação do original e, em caso de dúvida, poderão requerer, ao juiz, na forma da lei, providências para esclarecimento da autenticidade e integridade. (redação dada pelo Provimento n. 180, de 16.8.2024)”

Logo, para a recepção de título encaminhado eletronicamente ao Registro de Imóveis, não basta apenas a remessa eletrônica do título. É preciso analisar o seu enquadramento como título nato-digital ou título digitalizado e, assim, verificar se há observância dos requisitos legais e normativos.

Como fica evidente, quando se tratar de instrumento notarial (escritura pública, ata notarial, procuração pública, testamento público, carta de sentença notarial), sob a forma de documento eletrônico, somente poderão ser recepcionados, no Registro de Imóveis, os títulos que assumam a forma nativamente digital, isto é, certidão ou traslado notarial assinado por tabelião de notas, seu substituto ou preposto, ou, eventualmente, documento desmaterializado por qualquer notário, assinado por ele, seus substitutos ou prepostos com Certificado Digital ICP- Brasil.

Neste sentido, o Capítulo XVI das NSCGJ prevê que poderá ser extraído traslado ou certidão das notas, sob a forma de documento eletrônico, bem como o documento em papel poderá ser desmaterializado:

“198. Os Tabeliães de Notas, seus substitutos e prepostos autorizados, poderão extrair traslados ou certidões de suas notas, sob a forma de documento eletrônico, em PDF/A, ou como informação estruturada em XML (eXtensible Markup Language), assinados com Certificado Digital ICP-Brasil, tipo A-3 ou superior.

209. A desmaterialização de documentos poderá ser realizada por Tabelião de Notas ou Oficial de Registro Civil das Pessoas Naturais que detenha atribuição.”

“149. Em qualquer caso, terá, como encerramento, a subscrição do tabelião, que portará, por fé, que é cópia do original, e a menção expressa “traslado”, seguida da numeração de todas as páginas, que serão rubricadas, indicando-se o número destas, de modo a assegurar ao Oficial do Registro de Imóveis ou ao destinatário do título, não ter havido acréscimo, subtração ou substituição das peças.”

Destarte, não há previsão para recepção, no Registro de Imóveis, de instrumento notarial desmaterializado pelo próprio portador (que não é Tabelião, Registrador, substituo ou preposto), que, em verdade, representa uma simples cópia digitalizada do original da escritura.

Nas Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça do Tribunal de Justiça de São Paulo, a matéria vem disciplinada nos itens 365 e seguintes do Capítulo XX:

“365. A postagem e o tráfego de traslados e certidões notariais e de outros títulos, públicos ou particulares, elaborados sob a forma de documento eletrônico, para remessa às serventias registrais para prenotação (Livro nº 1 Protocolo) ou exame e cálculo (Livro de Recepção de Títulos), bem como destas para os usuários, serão efetivados por intermédio da Central Registradores de Imóveis.

366. Os documentos eletrônicos apresentados aos serviços de registro de imóveis deverão atender aos requisitos da Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira (ICP-Brasil) e à arquitetura e-PING (Padrões de Interoperabilidade de Governo Eletrônico) e serão gerados, preferencialmente, no padrão XML (Extensible Markup Language), padrão primário de intercâmbio de dados com usuários públicos ou privados e PDF/A (Portable Document Format/Archive), ou outros padrões atuais compatíveis com a Central de Registro de Imóveis e autorizados pela Corregedoria Geral da Justiça de São Paulo.

(…)

366.5. A recepção de instrumentos públicos ou particulares, em meio eletrônico, quando não enviados sob a forma de documentos estruturados segundo prevista nestas Normas, somente será admitida para o documento digital nativo (não decorrente de digitalização) que contenha a assinatura digital de todos os contratantes”.

Diante do exposto, julgo procedente a dúvida suscitada, para manter o óbice registrário.

Deste procedimento não decorrem custas, despesas processuais ou honorários advocatícios.

Oportunamente, ao arquivo. P.R.I.C.

São Paulo, 26 de setembro de 2025.

Renata Pinto Lima Zanetta

Juíza de Direito

(DJEN de 29.09.2025 – SP)