CSM|SP: Registro de imóveis – Dúvida – Escritura pública de compra e venda com cessões – Existência de compromisso de compra e venda anteriormente registrado em favor de terceiro – Desnecessária apresentação do instrumento de cessão ou cancelamento do compromisso – Compromisso não impede a lavratura/registro da escritura definitiva nem viola a continuidade quando o alienante coincide com o titular tabular (arts. 195 e 237 da LRP) – Eventual ineficácia apenas relativa perante o promissário (art. 1.418 do CC), sem invalidar o negócio nem obstar o ingresso – Recurso provido.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Cível nº 1075645-34.2025.8.26.0100, da Comarca de São Paulo, em que é apelante VALDOMIRO GUMERCINDO DOS SANTOS, é apelado 8º OFICIAL DE REGISTRO DE IMÓVEIS DA COMARCA DA CAPITAL.
ACORDAM, em Conselho Superior da Magistratura do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão: “Deram provimento, v u.”, de conformidade com o voto do Relator, que integra este acórdão.
O julgamento teve a participação dos Exmos. Desembargadores FERNANDO TORRES GARCIA (PRESIDENTE TRIBUNAL DE JUSTIÇA) (Presidente), BERETTA DA SILVEIRA (VICE PRESIDENTE), XAVIER DE AQUINO (DECANO), TORRES DE CARVALHO(PRES. SEÇÃO DE DIREITO PÚBLICO), HERALDO DE OLIVEIRA (PRES. SEÇÃO DE DIREITO PRIVADO) E CAMARGO ARANHA FILHO(PRES. SEÇÃO DE DIREITO CRIMINAL).
São Paulo, 5 de setembro de 2025.
FRANCISCO LOUREIRO
Corregedor Geral da Justiça e Relator
APELAÇÃO CÍVEL nº 1075645-34.2025.8.26.0100
Apelante: Valdomiro Gumercindo dos Santos
Apelado: 8º Oficial de Registro de Imóveis da Comarca da Capital
VOTO Nº 43.893
Direito registral – Apelação – Registro de imóveis – Recurso provido.
I. Caso em Exame
1.Apelação interposta contra sentença que manteve a qualificação negativa à escritura pública de venda e compra com cessões. Registro de compromisso de venda e compra junto à matrícula. Exigência de apresentação do instrumento de compromisso de compra e venda firmado pelo compromissário, não presente no título, ao fundamento de ofensa à continuidade registral.
II. Questão em Discussão
2. A questão em discussão consiste em determinar se o registro de compromisso de venda e compra compromete a continuidade registral, impedindo o registro da escritura pública de venda e compra.
III. Razões de Decidir
3. O compromisso de compra e venda não impede a lavratura e registro de escritura de compra e venda definitiva, sendo desnecessária a participação do promitente comprador ou o cancelamento do registro do compromisso.
4. O imóvel está registrado em nome dos alienantes constantes no título, não havendo violação ao princípio da continuidade, pois o alienante no título é o titular no registro.
IV. Dispositivo e Tese
5. Recurso provido.
Tese de julgamento: 1. O compromisso de compra e venda não impede o registro de escritura de compra e venda. 2. A continuidade registral é mantida quando o alienante no título é o titular no registro.
Legislação Citada:
– Código Civil, art. 1.418.
– Lei de Registros Públicos n° 6.015/73, arts. 195 e 237.
Jurisprudência Citada:
– CSM Apelação Cível n° 0060889- 91.2012.8.26.0100.
– CSM Apelação 0025566-92.2011.8.26.0477, Rel. José Renato Nalini, 10/12/2013.
Cuida-se de apelação interposta por VALDOMIRO GUMERCINDO DOS SANTOS em face da r. sentença de fls. 117/122, proferida pela MMª Juíza Corregedora Permanente do 8º Oficial de Registro de Imóveis da Capital que, em procedimento de dúvida, manteve a qualificação negativa à escritura pública de venda e compra com cessões lavrada em 07/04/2003, em que os Espólios de Francisco de Paula Peruche e de Zaida Pereira Peruche venderam o imóvel objeto da matrícula nº 217.862 ao apelante, figurando como intervenientes Luiz Donizetti Floriano e sua mulher Ivone Floriano.
A apelação busca a reforma da sentença, alegando que a fundamentação da decisão não deve prevalecer, vez que a qualificação negativa promovida pelo Oficial está baseada em precedentes que não guardam relação ao caso dos autos. Acrescenta que o registro da escritura pública em questão não afronta o princípio da continuidade registrária, haja vista ter sido outorgada pelos titulares tabulares constantes do fólio real. Destaca que a possibilidade de registro decorre do disposto no art. 1.418 do Código Civil, conferindo a possibilidade do vendedor transmitir seus direitos a terceiros, sendo dispensável a concordância do promissário comprador como condição ao registro da escritura, tendo em vista que o registro do compromisso não suprime o atributo de disponibilidade dominial do titular (fls. 128/140).
A Douta Procuradoria Geral de Justiça opinou pelo improvimento da apelação (fls. 160/162).
É o relatório.
A apelação merece provimento.
De acordo com os autos, o apelante apresentou para registro a escritura pública de venda e compra com cessões, lavrada em 07/04/2003, pelo 12º Tabelião de Notas de São Paulo (livro 1953, fls. 141/146), em que figuram como outorgantes vendedores os Espólios de Francisco de Paula Peruche e de Zaida Pereira Peruche, como intervenientes cedentes, Luiz Donizetti Floriano e sua mulher, Ivone Floriano, como compromissária cedente a Pró-Lar Mudanças e Transportes Ltda. e como outorgado comprador o ora apelante, casado com Neusa Maria Martins dos Santos, tendo por objeto o imóvel da matrícula n. 217.862 do 8º Registro de Imóveis de São Paulo.
Segundo o Registrador, o imóvel foi objeto de requerimentos para abertura de matrícula, o que foi deferido e redundou na matrícula 217.862, oportunidade em que houve o trasladamento do compromisso de compra e venda em favor da Pró-Lar Mudanças e Transportes Ltda, em decorrência da averbação 2.881 feita à margem da inscrição do loteamento nº 39, no 2º Registro Imobiliário.
Também destacou o Registrador que a escritura pública em questão já havia sido anteriormente prenotada sob os nºs 477.864 em 06.03.2008, 877.954, em 25.02.2025 e, por último, pelo protocolo objeto deste procedimento (prenotação 884.635), quando emitida a seguinte nota devolutiva (fls. 47/48):
“Trata-se de escritura de venda e compra com cessões, agora, apresentada por certidão e assinada digitalmente, tendo como vendedores os ESPÓLIOS de FRANCISCO DE PAULA PERUCHE e ZAIDA PEREIRA PERUCHE; como intervenientes cedentes LUIZ DONIZETE FLORIANA e sua mulher IVONE FLORIANO; como compromissária e cedente a PRÓ- LAR MUDANÇAS E TRANSPORTES LTDA. E compradores VALDOMIRO GUMERCINDO DOS SANTOS casado com NEUSA MARIA MARTINS DOS SANTOS, envolvendo o imóvel da matrícula 217.862, cuja qualificação resultou no seguinte:
O imóvel da matrícula 217.862 encontra-se na titularidade dominial dos ESPÓLIOS de FRANCISCO DE PAULA PERUCHE e ZAIDA PEREIRA PERUCHE e, conforme averbação lançada sob nº 1 na referida matricula, o imóvel foi compromissado a venda a PRÓ- LAR MUDANÇAS E TRANSPORTES LTDA.
Declara a escritura que a atual compromissária compradora, a PRÓ-LAR, por instrumento particular de cessão de direitos datado de 26/12/1995 (não levado a registro) cedeu e transferiu os seus direitos em relação ao imóvel aos intervenientes cedentes LUIZ DONIZETE FLORIANA e sua mulher IVONE FLORIANO e estes os cederam e transferiram na escritura aos atuais Compradores.
Portanto, diante do princípio da continuidade registrária de que tratam os artigos 195 e 237 da Lei de Registros Públicos n° 6.015/73, pede-se apresentar, para análise e registro, o instrumento particular de cessão de direitos datado de 26/12/1995 (com reconhecimento de firma de Todas as Partes) o qual resultou na aquisição dos direitos em relação ao imóvel pelos intervenientes cedentes LUIZ e IVONE, requerendo a sua protocolização, inicialmente para análise conjunta com a escritura de venda e compra.” (grifo meu).
Pois bem.
A certidão da matrícula 217.862/8º RI (fls. 21/22) indica que a titularidade do imóvel pertence aos Espólios de Francisco de Paula Peruche e Zaida Pereira Peruche. Pela Av-1/217.862, o imóvel foi compromissado à venda à Pró-Lar Mudanças e Transportes Ltda.
Da escritura pública, consta que a compromissária compradora, Pró-Lar Mudanças e Transportes Ltda., por meio de instrumento particular de cessão de direitos firmado em 26/12/1995 (não levado a registro) cedeu e transferiu seus direitos sob o imóvel aos intervenientes cedentes Luiz Donizetti Floriano e sua mulher, Ivone Floriano, os quais, por sua vez, os cederam e transferiram a Valdomiro Gumercindo dos Santos, casado com Neusa Maria Martins dos Santos.
Como se observa, o Oficial exigiu a apresentação do instrumento particular pelo qual a Pró-Lar Mudanças e Transportes Ltda cedeu e transferiu os direitos sobre o imóvel aos intervenientes cedentes Luiz Donizetti Floriano e sua mulher Ivone Floriano, a fim de dar cumprimento à continuidade registral, insistindo na tese de que necessário o prévio registro do instrumento de cessão, sob pena de ofensa ao princípio da continuidade (artigo 237 da LRP e itens 47 e 51 Cap. XX das NSCGJ).
Sem razão, contudo.
A ausência da anuência da compromissária compradora na escritura pública ou a ausência do instrumento particular de compromisso de venda e compra não comprometem a continuidade do registro.
Isto porque, prevalece o entendimento de que o compromisso de compra e venda não impede a lavratura e registro de escritura de compra e venda definitiva ou transmissão judicial em favor de terceiro, sendo que o registro de tal título independe da participação do promitente comprador ou cancelamento do registro de tal negócio jurídico.
Ainda, o compromisso de compra e venda continua eficaz, gerando ao promitente comprador direito real contra o titular de domínio de exigir a lavratura de escritura definitiva.
Assim, o registro do compromisso i) não suprime o atributo de disponibilidade dominial do legitimado tabular, mas (ii) conserva suficiente eficácia prenotante para beneficiar o direito real na aquisição. Há a possibilidade do registro de escritura pública entabulada entre o proprietário do imóvel e terceiros, ainda que conste registro de instrumento de promessa, sem que isso caracterize violação ao princípio da continuidade.
A orientação deste Conselho Superior da Magistratura já caminhava no sentido da superação da doutrina tradicional neste tema, conforme precedente da Apelação Cível n° 0060889 91.2012.8.26.0100:
“Outro aspecto que deve ser levado em consideração é o seguinte. Suponha-se que o interessado houvesse adquirido o imóvel não de algum dos cedentes, mas do proprietário. Imagine-se que, não obstante a cadeia de sucessão de cessões, o interessado tivesse ido à fonte, ao proprietário, e pagado o preço, adquirindo o domínio do bem. Outorgada a escritura, ela seria registrada? A resposta é positiva, dada a validade do negócio, e não se cogitaria de quebra de continuidade. Ora, se aquilo que poderia ter sido obtido, em tese, no plano do direito material, o foi no plano do direito processual – por meio da propositura de adjudicação compulsória diretamente contra o proprietário -, parece evidente que não se pode dar respostas diferentes a situações semelhantes. Da mesma, maneira, que aquela escritura poderia ser registrada, malgrado a existência da cadeia, de cedentes, também, pode ser registrada, a sentença.
O raciocínio encontra, guarida, ainda, no art. 1.418 do Código Civil:
Art. 1.418. O promitente comprador, titular de direito real, pode exigir do promitente vendedor, ou de terceiros, a quem os direitos deste foram cedidos, a outorga da escritura definitiva, de compra, e venda, conforme o disposto no instrumento particular; e, se houver recusa, requerer ao juiz a adjudicação do imóvel.
Ao permitir que o promitente comprador, titular de direito real – ou seja, os cedentes que constam, da matrícula do imóvel – possa, exigir de terceiros, a quem os direitos foram cedidos, a outorga da escritura definitiva, o legislador deixou claro que o negócio que deu margem ao ajuizamento da ação de adjudicação compulsória, embora, válido, pode ser declarado ineficaz em relação àquele comprador. Francisco Eduardo Loureiro acentua, com propriedade, que, doravante, os “novos atos de disposição ou de oneração praticados pelo promitente vendedor em beneficio de terceiros, ainda que de boa fé, são ineficazes frente ao promitente comprador.” (Código Civil comentado: doutrina e jurisprudência. Ministro Cezar Peluso (coord.). 2a ed. São Paulo: Manole, 2008. p. 1.453)
A validade dos atos de disposição permanece. Haverá ineficácia apenas se os cedentes, antes promitentes compradores, se insurgirem contra eles, o que, no caso concreto – alienações ocorridas há quase cinquenta anos – é absolutamente improvável.
Em resumo, obtida sentença, substitutiva da vontade, em ação ajuizada contra o titular do domínio, e garantida, a possibilidade de declaração de ineficácia do negócio, caso se comprove fraude, não se vulnera, o direito de nenhum dos envolvidos nas alienações nem o princípio da continuidade.
Na mesma direção:
Como já decidido por este E Conselho, acolhendo voto de minha lavra. (Processo 0020761-10.2011.8.26-0344, julgado em 25/10/12, da Comarca de Marília) e respeitados os precedentes da 1ª Vara de Registros Públicos desta Capital, em sintonia com a posição do Registrador, o princípio da continuidade, com a transmissão da propriedade pelos titulares de domínio sem a observância de compromisso de venda e compra registrado em favor de terceiros, não será vulnerado.
De todo modo, a possível falta de conhecimento dos compromissados compradores, a sua ocasional oposição à transmissão da propriedade do imóvel aos adquirentes e a eventual inoponibilidade das cessões de direito, com afastamento de sua repercussão sobre a situação jurídica dele, são circunstâncias despidas de força para comprometer a validade da compra e venda definitiva, para frear o acesso do título ao álbum imobiliário: quando muito, terão potência para, relativizar a eficácia, não para atestar a invalidade da transferência coativa da propriedade. Citando Marco Aurélio S. Viana: “não se justifica a exigência, de registro prévio do contraio senão como forma, de tutelar o promitente comprador contra a alienação por parte do promitente vendedor, limitando ou reduzindo o poder de disposição deste, ao mesmo tempo que arma o adquirente de sequela, admitindo que obtenha a escritura até mesmo contra, terceiro, na forma indicada no art. 1.418.” (Comentários ao novo Código Civil: dos direitos reais. Sálvio de Figueiredo Teixeira, (coord.). Rio de Janeiro: Forense, 2003. p. 695 v. XVI.)
Assim sendo, uma vez constituído o direito real de aquisição, Francisco Eduardo Loureiro acentua, com propriedade: doravante, os “novos atos de disposição ou de oneração praticados pelo promitente vendedor em benefício de terceiros, ainda, que de boa-fé, são ineficazes frente ao promitente comprador” (Código Civil comentado: doutrina e jurisprudência. Ministro Cezar Peluso (coord). 2.a ecl. São Paulo: Manole, 2008. p. 1.453.). Realço: ineficazes, não inválidos. Quero dizer: se o registro do instrumento particular de compromisso de venda e compra, desnecessário para obtenção da sentença, substitutiva do contrato definitivo, não impede o promitente vendedor de transferir a propriedade a terceiros – embora seja idóneo para comprometer a eficácia, deste negócio jurídico -, impõe, na mesma linha, de entendimento, admitir que o registro de escritura de venda, e compra, pelos sucessores dos titulares do domínio prescinde do cancelamento do registro do compromisso de venda e compra, ainda que o promitente comprador não tenha, participado do negócio jurídico posterior. (CSM Apelação 0025566- 92.2011.8.26.0477 Rel. José Renato Nalinij. 10/12/2013)”
Assim, como o imóvel está registrado em nome dos Espólios de Francisco de Paula Peruche e Zaida Pereira Peruche, não há que se falar em violação ao princípio da continuidade, porque aquele que consta no título como alienante é quem consta no registro como titular do direito transferido, conforme exige o art. 195 da Lei 6.015/73.
Destaca-se que no caso concreto as partes informaram a transmissão dos direitos de compromisso de venda e compra ao adquirente consignado no título, o que afasta qualquer fumaça de má-fé.
Em suma, o registro do título não cria antinomia de direitos reais, permitindo a outorga da escritura definitiva aos últimos cessionários dos direitos de promissários compradores na cadeia de transmissões.
Sob a ótica da qualificação do título, não há óbice ao ingresso da escritura pública em discussão, razão pela qual a sentença merece ser reformada e a dúvida julgada improcedente.
Ante o exposto, pelo meu voto, DOU PROVIMENTO à apelação para julgar improcedente a dúvida.
FRANCISCO LOUREIRO
Corregedor Geral da Justiça e Relator
(DJEN de 22.09.2025 – SP)