CSM|SP: Registro de imóveis – Dúvida – Escritura de doação com reserva de usufruto – Óbice fundado na especialidade objetiva, porque a matrícula originária (n. 20.623) foi encerrada após retificação administrativa consensual e desmembramento em duas novas matrículas (n. 62.812 e 62.813) – Possível o registro de título anterior à retificação quando não há dúvida sobre a identificação do bem, aplicando-se o art. 213, §13, I, da LRP e NSCGJ, Cap. XX, 136.27, I – Doação de 1/3 de parte ideal: o desmembramento não altera o objeto do negócio, que passa a incidir como 1/3 sobre cada uma das novas matrículas – Mitigação instrumental do princípio da especialidade objetiva; inexistência de risco à segurança jurídica – Recurso provido.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Cível nº 1000996-88.2024.8.26.0438, da Comarca de Penápolis, em que são apelantes CAMILLA TELES VIDAL DE PAULA e LUCAS TELES VIDAL DE PAULA, é apelado OFICIAL DE REGISTRO DE IMÓVEIS E ANEXOS DA COMARCA DE PENÁPOLIS.
ACORDAM, em Conselho Superior da Magistratura do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão: “Deram provimento ao recurso para julgar improcedente a dúvida e determinar o registro do título, v u.”, de conformidade com o voto do Relator, que integra este acórdão.
O julgamento teve a participação dos Exmos. Desembargadores FERNANDO TORRES GARCIA (PRESIDENTE TRIBUNAL DE JUSTIÇA) (Presidente), BERETTA DA SILVEIRA (VICE PRESIDENTE), XAVIER DE AQUINO (DECANO), TORRES DE CARVALHO(PRES. SEÇÃO DE DIREITO PÚBLICO), HERALDO DE OLIVEIRA (PRES. SEÇÃO DE DIREITO PRIVADO) E CAMARGO ARANHA FILHO(PRES. SEÇÃO DE DIREITO CRIMINAL).
São Paulo, 11 de setembro de 2025.
FRANCISCO LOUREIRO
Corregedor Geral da Justiça e Relator
APELAÇÃO CÍVEL n.º 1000996-88.2024.8.26.0438
Apelantes: Camilla Teles Vidal de Paula e Lucas Teles Vidal de Paula
Apelado: Oficial de Registro de Imóveis da Comarca de Penápolis
VOTO Nº 43.891
Direito registral – Escritura de doação com reserva de usufruto – Registro recusado – Dúvida julgada procedente em primeira instância – Recurso provido.
I. Caso em exame. 1. Os recorrentes, donatários, não se conformando com o julgamento procedente da dúvida, questionam o óbice oposto ao registro da escritura de doação, suposta afronta à especialidade objetiva.
II. Questão em discussão. 2. A retificação de bem imóvel posterior à lavratura da escritura de doação é, caso resulte em desmembramento, obstáculo ao registro do título nas novas matrículas abertas?
III. Razões de decidir. 3. A divisão do bem imóvel objeto da doação, decorrente de retificação administrativa consensual, não é óbice ao registro da escritura anteriormente lavrada, pois é certo que os dois bens imóveis dela resultantes correspondem atualmente ao prédio doado. 4. A perda de identidade do bem imóvel doado, consequência da divisão, não impossibilitou a identificação do objeto da doação dos bens imóveis. 5. Não há qualquer dúvida quanto à identificação do imóvel doado, perfeitamente individualizado e inconfundível com qualquer outro 6. O legislador mitigou o rigor do princípio da especialidade objetiva no art. 213, § 13, I, da Lei n.º 6.015/1973, que tem por função identificar com perfeição e segurança o objeto da relação jurídica. Interessa ao registro não apenas identificar com precisão quem transmite e quem recebe a titularidade de direitos reais, mas também o que se transmite. No caso concreto, não há risco à segurança jurídica e mais se perde negando o registro. A solução do provimento do recurso prestigia o caráter instrumental do registro.
IV. Dispositivo. 7. Recurso provido; dúvida julgada improcedente, registro determinado.
Tese de julgamento: A escritura pública de doação anterior à retificação do bem imóvel doado pode ser levada a registro, ausente qualquer dúvida relacionada à identificação do bem imóvel alcançado pela doação, em que pese o desmembramento posterior ao ato notarial.
Legislação citada: Lei n.º 6.015/1973, art. 213, § 13, I; NSCGJ, t. II, Cap. XX, subitem 136.27, I.
Ao negar o registro da escritura de doação com reserva de usufruto e ao suscitar a dúvida, expondo as razões determinantes da desqualificação registral, o Oficial do RI de Penápolis se reportou ao princípio da especialidade objetiva; ponderou que a matrícula n.º 20.623 referida no título foi encerrada, após a retificação do bem imóvel que lhe correspondia, subdividido em dois, então identificados nas matrículas n.º 62.812 e n.º 62.813; daí a necessidade de retificação da escritura.
Os interessados, donatários, ora recorrentes, não se conformam. Escoram-se no art. 213, § 13, I, da Lei n.º 6.015/1973, regra de acordo com a qual, não havendo dúvida quanto à identificação do bem imóvel, o título anterior à retificação pode ser levado a registro. Por conseguinte, irresignados com a r sentença de fls. 75-76, interpuseram a apelação de fls. 81-89.
A d. Procuradoria-Geral de Justiça, em seu parecer de fls. 102-105, opinou pelo desprovimento do recurso.
O recurso, encaminhado à E. Corregedoria Geral da Justiça, foi, em atenção à r. decisão de fls. 106, redistribuído para este C. Conselho Superior da Magistratura, competente para dele conhecê-lo.
É o relatório.
1. O dissenso versa sobre o registro da escritura de doação com reserva de usufruto de fls. 11-18, lavrada o dia 5 de julho de 2016, por meio da qual ANTONIA VIDAL DE PAULA doou, com reserva de usufruto, aos donatários, ora recorrentes, CAMILLA TELES VIDAL DE PAULA e LUCAS TELES VIDAL DE PAULA, a parte ideal equivalente a 1/3 do bem imóvel rural matriculado sob o n.º 20.623 do RI de Penápolis, denominado Sitio Águas Claras, além de outros imóveis.
O bem imóvel acima identificado, do qual também era proprietário João Daniel Vidal de Paula, casado com Regina Aparecida de Almeida Teles de Paula, aí então da parte ideal correspondente a 2/3 do todo, não mais existe, por força de desmembramento resultante de retificação administrativa consensual, ocorrida posteriormente à doação, mas antes do título ser levado a registro.
Desmembrado, o imóvel primitivo deu origem aos imóveis descritos nas matrículas n.º 62.812 e n.º 62.813. A matrícula original foi encerrada.
À luz desse contexto, apresentado o título ao Oficial, o registro foi recusado, condicionado à retificação da escritura de doação, para que fosse ajustada a identidade dos bens imóveis doados, de modo a espelhar a atual situação registral, a reportar-se, assim, aos dois novos imóveis, aos surgidos da retificação e subsequente desmembramento da gleba objeto da matrícula n.º 20.623. Escorou-se, consequentemente, no princípio da especialidade objetiva (fls. 1-4 e 32).
2. O óbice oposto deve ser afastado.
Em virtude do desmembramento da gleba original em dois imóveis, com o encerramento da matrícula n.º 20.623, deu esta origem a duas novas matrículas de nos. 62.812 e 62.813.
É verdade que a escritura de doação faz menção à matrícula maior da gleba original, espelhando a situação jurídica existente à época da celebração do negócio jurídico, mas com importante peculiaridade: a escritura já individualiza o imóvel doado, parte da gleba maior, se antecipando ao posterior desmembramento, que seria requerido em momento ulterior.
Disso decorre que a simples menção à matrícula maior não impede o registro intencionado, mormente porque não há dúvida a respeito da identificação dos bens imóveis objeto de doação.
A perda de identidade do bem imóvel original, que não mais existe, uma vez que deu origem a duas matrículas em virtude do desmembramento, não impossibilita a identificação dos bens imóveis ao final abrangidos pela doação.
Ao contrário. Está absolutamente claro que os dois prédios doados compunham o imóvel originalmente matriculado em gleba maior. Em razão do princípio da unitariedade, eixo do fólio real – cada imóvel uma matrícula, cada matrícula um imóvel – não persiste mínima dúvida acerca de suas identidades e origem.
Em conformidade com o art. 213, § 13, I, da Lei n.º 6.015/1973, reproduzido pelo subitem 136.27, I, do Cap. XX das NSCGJ, o título precedente à retificação poderá ser levado a registro desde que requerido pelo adquirente, promovendo-se aí o registro em conformidade com a nova descrição, caso, tal como aqui, inexistente dúvida quanto à identificação (não em relação à identidade) do bem imóvel, in concreto, dos imóveis.
Cuida-se de mitigação útil ao princípio da especialidade objetiva. A especialidade objetiva tem por função identificar com precisão não somente a titularidade dos direitos reais, mas também o objeto da relação jurídica. Interessa ao registro não somente quem transmite e quem recebe a titularidade de direitos, mas também o que se transmite e se onera.
Atingida tal finalidade, que assegura a segurança jurídica a que se preordenam os registros públicos, o art.. 213, § 13, I, da Lei n.º 6.015/1973 permite que a retificação ulterior ao título receba inteligente interpretação: o registro será admitido, desde que não persista dúvida de que o imóvel transmitido ou onerado é o mesmo objeto da retificação posterior.
Dito de outro modo, a perda de total e completa coincidência entre o imóvel descrito no título e o descrito atualmente na matrícula imóvel, após a retificação, não impede o registro, pois a função do principio da especialidade se encontra preservada, qual seja, a segurança sobre objeto da relação jurídica.
No caso concreto, a doação teve por objeto partes ideais correspondentes a 1/3 dos bens imóveis matriculados sob os n.ºs 62.812 e 62.813 do RI Penápolis.
A doação envolveu fração, parte ideal sobre o todo, e não uma parte fisicamente certa e determinada do imóvel matriculado sob o n.º 20.623.
No que interessa, teve por objeto parte ideal sobre a totalidade da coisa, logo, o desmembramento ocorrido, a divisão decorrente da retificação, não é impeditiva do registro visado.
O que era 1/3 do imóvel cuja matrícula foi encerrada é, agora, indiscutível, 1/3 de cada um dos dois bens imóveis decorrentes do desmembramento posterior.
A falta de coincidência entre a descrição expressa no título, onde lançada com base na matrícula posteriormente encerrada, e as descrições contidas nas novas matrículas não é, na hipótese vertente, e aí por força de ponderação legislativa, mitigação do rigor do princípio da especialidade objetiva, obstáculo ao registro bloqueado pelo Oficial.
Na verdade, a doação que tinha por objeto 1/3 parte ideal do todo ingressará no registro como 1/3 parte ideal de cada um dos bens imóveis objeto do desmembramento. Em resumo, não há mutação do objeto da relação jurídica.
Nessa linha, e sob essa perspectiva, é de rigor, dando provimento à apelação, determinar a inscrição visada. O princípio da especialidade objetiva não é um fim se mesmo. In casu, não há risco à segurança jurídica; a propósito, mais se perde negando o registro; assim, prestigia-se o caráter instrumental do registro.
Ante o exposto, pelo meu voto, dou provimento ao recurso e, assim, julgando improcedente a dúvida, determino o registro do título de fls. 11-18, escritura de doação com reserva de usufruto, nas matrículas n.º 62.812 e n.º 62.813 do RI de Penápolis.
FRANCISCO LOUREIRO
Corregedor Geral da Justiça e Relator
(DJEN de 22.09.2025 – SP)