CSM|SP: Direito Registral – Registro de Imóveis – Dúvida registral prejudicada – Apelação não conhecida – Orientações para futura prenotação – Fica prejudicada a dúvida quando o interessado não impugna todas as exigências formuladas na nota devolutiva, o que impede o exame do mérito na via recursal – Ainda assim, para orientação de novo ingresso: (i) requerimento assinado digitalmente por Defensor(a) Público(a) goza de presunção de veracidade e legitimidade, dispensada conferência de atributos técnicos quando apresentado fisicamente (CF, art. 134; LC-SP 988/2006, art. 162, IV; STF, ADI 6.852); (ii) partilha desigual com torna configura transmissão onerosa, com incidência de ITBI (CF, art. 156, II; LC Municipal 224/2008, arts. 201, I, e 203, VI; precedentes do CSM); (iii) averbação prévia de edificação é desnecessária quando houver correspondência suficiente entre o título e a matrícula, preservada a especialidade objetiva – Mantida a autonomia do Registrador para qualificação (Lei 8.935/94, art. 28) – Recurso não conhecido.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Cível nº 1017447-52.2024.8.26.0451, da Comarca de Piracicaba, em que é apelante SUELI FRANCISCO DO CARMO, é apelado 1º OFICIAL DE REGISTRO DE IMÓVEIS E ANEXOS DA COMARCA DE PIRACICABA.
ACORDAM, em Conselho Superior da Magistratura do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão: “Não conheceram do recurso de apelação, v u.”, de conformidade com o voto do Relator, que integra este acórdão.
O julgamento teve a participação dos Exmos. Desembargadores FERNANDO TORRES GARCIA (PRESIDENTE TRIBUNAL DE JUSTIÇA) (Presidente), BERETTA DA SILVEIRA (VICE PRESIDENTE), XAVIER DE AQUINO (DECANO), TORRES DE CARVALHO(PRES. SEÇÃO DE DIREITO PÚBLICO), HERALDO DE OLIVEIRA (PRES. SEÇÃO DE DIREITO PRIVADO) E CAMARGO ARANHA FILHO(PRES. SEÇÃO DE DIREITO CRIMINAL).
São Paulo, 14 de agosto de 2025.
FRANCISCO LOUREIRO
Corregedor Geral da Justiça e Relator
APELAÇÃO CÍVEL nº 1017447-52.2024.8.26.0451
Apelante: Sueli Francisco do Carmo
Apelado: 1º Oficial de Registro de Imóveis e Anexos da Comarca de Piracicaba
VOTO Nº 43.877
Direito registral – Registro de imóveis – Formal de partilha extraído de ação de divórcio – Requerimento assinado digitalmente por defensora pública – Presunção de veracidade e legitimidade – Prerrogativa para requisição de providências da defensoria pública – Partilha desigual com torna – Incidência de ITBI – Título que encontra correspondência com o fólio real – Prévia averbação de edificação desnecessária – Dúvida prejudicada – Recurso não conhecido – Análise das exigências para orientação de futura prenotação.
I. Caso em exame
1. Trata-se de apelação interposta contra sentença que julgou prejudicada a dúvida suscitada. A parte apelante questiona o resultado, sustentando que o requerimento foi assinado digitalmente por Defensor Público, o que dispensa reconhecimento de firma; que houve decisão para que o imóvel fosse reconhecido como bem comum do casal ou como doação; que a exigência de averbação prévia de edificação é indevida.
II. Questões em discussão
2. As questões centrais em discussão são: (i) a possibilidade de aferição dos atributos da assinatura eletrônica, pois o requerimento foi assinado eletronicamente e apresentado fisicamente; (ii) a possibilidade de inclusão na partilha de imóvel pertencente a apenas um dos cônjuges; (iii) a necessidade de averbação prévia de construção.
III. Razões de decidir
3. O Registrador tem autonomia para recusar títulos que não atendam os requisitos legais. 4. A falta de impugnação de todas as exigências torna a dúvida prejudicada, o que não impede análise daquela questionada para orientação de futura prenotação. 5. No mérito, a dúvida seria procedente, pois o título veicula partilha desigual com torna (transmissão onerosa de bem), o que faz incidir ITBI, tributo de competência municipal. Contudo, as exigências relativas à adequação da assinatura da Defensora Pública e à prévia averbação de edificação não seriam mantidas.
IV. Dispositivo e Tese
6. Recurso não conhecido.
Tese de julgamento: “1. A falta de impugnação de todas as exigências torna a dúvida prejudicada, o que não impede análise daquela questionada para orientação de futura prenotação. 2. Requerimento assinado digitalmente por Defensor Público, mesmo que apresentado em via física, possui presunção de veracidade e legitimidade, o que dispensa a conferência de atributos de validade. 3. É prerrogativa da Defensoria Pública, prevista em lei, a requisição de providências com o objetivo de garantir assistência integral e efetiva. 4. A análise de desproporção na partilha da meação deve considerar a totalidade do patrimônio do casal. 5. Partilha desigual com torna é causa de incidência de ITBI. 6. Prévia averbação de edificação desnecessária, ante a correspondência entre o imóvel objeto do título e aquele descrito na matrícula”.
Legislação e jurisprudência relevantes:
– CF, arts. 134 e 156, II; Lei Complementar do Estado de São Paulo n.988/2006, art. 162, IV; Lei Complementar n.224/2008 do Município de Piracicaba, arts. 201, I, e 203, VI.
– CSM, Apelação n. 220.6/6-00; Apelação n. 1171475-61.2024.8.26.0100; Apelação n. 1154601-35.2023.8.26.0100; Apelação n. 1000020-77.2024.8.26.0116; Apelação n. 1019680-34.2018.8.26.0224; Apelação n. 413-6/7; Apelação n. 0003968-52.2014.8.26.0453; Apelação n. 0005176-34.2019.8.26.0344 e Apelação n. 1001015-36.2019.8.26.0223 – STF, ADI n. 6.852, Rel. Min. Edson Fachin, j. 21.02.2022.
Trata-se de apelação interposta por Sueli Francisco do Carmo contra r. sentença proferida pela MM. Juíza Corregedora Permanente do 1º Oficial de Registro de Imóveis de Piracicaba, que julgou prejudicada a dúvida suscitada em razão de recusa de registro de formal de partilha judicial na matrícula n.57.143 daquela serventia (fls.356/359; prenotação n.463.320 – fls.296/298).
Fê-lo a sentença porque “a interessada teceu considerações quanto à regularidade formal do requerimento, bem como da partilha realizada. Não obstante, permaneceu silente sobre a exigência relacionada à descrição do imóvel” (fls.356/359).
A parte apelante sustenta que o requerimento foi assinado digitalmente por Defensor Público, o qual goza de fé-pública, pelo que dispensado o reconhecimento de firma; que também apresentou, posteriormente, requerimento assinado em via física, que não foi aceito; que requereu aditamento do formal de partilha para que o imóvel fosse declarado bem comum do casal ou, subsidiariamente, que fosse reconhecida a doação do imóvel no acordo celebrado entre as partes, o que foi acolhido pelo juízo competente, que sinalizou que o acordo é título hábil para transmissão da propriedade; que a nota devolutiva não exigiu a prévia averbação de que o bem seria de propriedade comum do casal; que a doação realizada por acordo homologado judicialmente é válida, ainda que o doador se negue a lavrar escritura pública; que a existência de edificação no terreno não impede o registro do título (fls.367/378).
A Procuradoria de Justiça manifestou-se pelo não provimento do recurso (fls.408/409).
É o relatório.
Inicialmente, é importante ressaltar que o Registrador, titular ou interino, dispõe de autonomia e independência no exercício de suas atribuições, podendo recusar títulos que entender contrários à ordem jurídica e aos princípios que regem sua atividade (art. 28 da Lei n. 8.935/1994), o que não se traduz como falha funcional.
De fato, no sistema registral, vigora o princípio da legalidade estrita, pelo qual somente se admite o ingresso de título que atenda aos ditames legais.
Em outras palavras, o Oficial, quando da qualificação registral, perfaz exame dos elementos extrínsecos do título à luz dos princípios e normas do sistema jurídico (aspectos formais), devendo obstar o ingresso daqueles que não se atenham aos limites da lei.
É o que se extrai do item 117 do Cap. XX das Normas de Serviço:
“Incumbe ao oficial impedir o registro de título que não satisfaça os requisitos exigidos pela lei, quer sejam consubstanciados em instrumento público ou particular, quer em atos judiciais”.
A apelação, contudo, não pode ser conhecida, já que a dúvida está prejudicada.
Com efeito, a nota devolutiva referente à prenotação n.462.320, de 17/06/2024 (fls.296/298), apresentou as seguintes exigências:
“1. ANÁLISE DOS ASPECTOS DIGITAIS DO TÍTULO – Quanto a análise de padrões técnicos (formato dos arquivos/documentos digitais, assinaturas eletrônicas, certificados digitais, etc) dos documentos apresentados, foram considerados INAPTOS:
Requerimento INAPTO: Documento, aparentemente, gerado e assinado eletronicamente que, no entanto, foi impresso e apresentado fisicamente (em papel), smj, não possibilitando a aferição dos atributos/assinaturas eletrônicas.
A.1 Trata-se de documento que, aparentemente, foi gerado e assinado eletronicamente (nato digital), posteriormente impresso, não permitindo, portanto, a aferição/verificação do(s) atributos(s)/assintatura(s) eletrônica(s) e arquivamento no banco de dados da serventia do documento original assinado pelo respectivo emissor/subscritor. Assim, em se tratando de documento nativo digital, para ingresso no registro de imóveis, deverá ser apresentado o arquivo no formato PDF/A contendo as assinaturas em conformidade ao padrão ICP-Brasil de todas as partes e testemunhas (caso constem do documento).
(…)
2. O Título apresentado cuida da partilha dos bens decorrente do divórcio de Sueli do Carmo Vitalino e Israel Roberto Vitalino, tendo por objeto, além de outros bens, o imóvel da matrícula 57143, o qual foi atribuído exclusivamente à Sueli do Carmo Vitalino.
Da análise/qualificação, além das exigências apontadas, quanto aos aspectos digitais do requerimento, restaram mais as seguintes exigências/divergências:
2.1.De acordo com a matrícula 57143, o respectivo imóvel é de propriedade particular apenas de Israel Roberto Vitalino, tendo em vista que o bem foi adquirido por ele ainda no estado civil de solteiro (conforme título datado de 20/03/2000, registrado sob o nº 4) e seu casamento com Sueli do Carmo Vitalino foi realizado posteriormente (17/03/2001) pelo regime da comunhão parcial de bens. (…)
2.1.1.Por consequência, referido imóvel não poderia ser levado à partilha em decorrência do divórcio, por não tratar-se de bem comum do casal e por não haver nenhuma decisão judicial expressa reconhecendo que o referido imóvel trata-se de propriedade do casal.
2.1.2..Alternativamente, os ex-cônjuges poderão se valer de negócio jurídico que julgarem conveniente, tipificando-o nos termos do artigo 167 da Lei Federal nº 6.015/73 (Lei de Registros Públicos) e contendo os requisitos legais pertinentes, a ser tomado por termo nos autos (caso assim entenda o respectivo juízo), fazendo prova, inclusive, de eventuais recolhimentos tributários quanto à transmissão de 100% do imóvel de propriedade de Israel Roberto Vitalino em favor de Sueli do Carmo Vitalino, ou se formalizado por meio de escritura pública pelo tabelião de notas, em cumprimento ao acordo dos autos.
2.1.2.1. Caso eventual negócio jurídico que venha a ser realizado pelas partes compreenda transmissão a título oneroso (compra e venda, dação em pagamento, etc), deverá ser juntada a respectiva prova de recolhimento do ITBI ao Município. (…)
2.1.2.1. Caso eventual negócio jurídico que venha a ser realizado pelas partes compreenda transmissão a título gratuito (doação), deverá ser juntada a prova de isenção ou recolhimento do ITCMD (guias de recolhimento), Declaração do ITCMD e “Certidão de Homologação” emitida pela Secretaria da Fazenda do Estado. (…)
2.2. Verifica-se da matrícula 57143, que o imóvel consiste apenas de um terreno. No título foi mencionada a edificação do prédio nº 444 da Rua Jacinto Roberto Penedo, devendo, portanto, proceder à averbação de construção, por meio de requerimento formulado pelos proprietários, com firmas reconhecidas, constando o valor atribuído à edificação, juntando o Visto de Conclusão e Certidão Negativa de Débito (CND) Relativos a Tributos Federais e a Dívida Ativa da União de obra de construção civil, expedida pela Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil (RFB), respectivos. (…)
2.3. O título havia sido protocolizado anteriormente sob os nºs 447739, de 10/07/2023 e 459390, de 17/04/2024, cuja validade das prenotações expiraram em 07/08/2023 e 16/05/2024, respectivamente, motivo porque o arrazoado/requerimento de suscitação de dúvida (que, inclusive, não atende aos aspectos digitais) não é considerado nesse momento. Eventual suscitação de dúvida deverá ser requerida após a formulação de exigência com prenotação válida (art. 198 da Lei Federal 6.015/1973). O interessado poderá reingressar o título, dentro do prazo de vigência desta prenotação (vigência até 17/07/2024) com o requerimento de suscitação com firma reconhecida e endereçada ao oficial, fazendo referência à exigência ora formulada no protocolo 462320, de 17/07/2024”.
Verifica-se, assim, que foram três os óbices: 1) impossibilidade de aferição dos atributos da assinatura eletrônica no requerimento, vez que o documento foi assinado eletronicamente, mas apresentado de forma física; 2) inexistência de decisão judicial expressa reconhecendo que o imóvel da matrícula n.57.143 é de propriedade do casal. A inclusão na partilha de imóvel pertencente a apenas um dos cônjuges configura negócio jurídico (gratuito ou oneroso) independente, devendo ser comprovado o recolhimento do tributo devido; 3) necessidade de averbação prévia de construção na matrícula n.57.143 como condição para o registro da partilha.
Ao ofertar impugnação (fls.304/309), a parte se insurgiu apenas contra os dois primeiros óbices, o que implica concordância tácita com a terceira exigência (averbação prévia da construção) e, consequentemente, prejudica a dúvida:
“A dúvida registrária não se presta para o exame parcial das exigências formuladas e não comporta o atendimento de exigência depois de sua suscitação, pois a qualificação do título é feita, integralmente, no momento em que é apresentado para registro. Admitir o atendimento de exigência no curso do procedimento da dúvida teria como efeito a indevida prorrogação do prazo de validade da prenotação e, em consequência, impossibilitaria o registro de eventuais outros títulos representativos de direitos reais contraditórios que forem apresentados no mesmo período. Em razão disso, a aquiescência do apelante com uma das exigências formuladas prejudica a apreciação das demais matérias que se tornaram controvertidas. Neste sentido decidiu este Colendo Conselho Superior da Magistratura na Apelação Cível n.º 60.460.0/8, da Comarca de Santos, em que foi relator o Desembargador Sérgio Augusto Nigro Conceição, e na Apelação Cível n.º 81.685-0/8, da Comarca de Batatais, em que foi relator o Desembargador Luís de Macedo” (CSM, Apelação n. 220.6/6-00).
Nada impede, porém, que se analisem os óbices impugnados para orientação de futura prenotação.
No mérito, a dúvida seria procedente, ainda que apenas uma das exigências formuladas subsista.
Vejamos os motivos.
Relativamente à assinatura digital produzida no requerimento de suscitação de dúvida, a parte recorrente alega que, além da via física assinada eletronicamente, “também foi entregue cópia do documento assinado em via física para o respectivo cartório (…)” (fl.370).
O que se vê é que o requerimento de suscitação de dúvida foi assinado digitalmente pela Defensora Pública em 10 de junho de 2024 (fls.301/302).
A Defensoria Pública é instituição essencial à função jurisdicional do Estado e a seus membros é atribuída a defesa dos direitos individuais e coletivos de pessoas necessitadas no âmbito judicial e extrajudicial, conforme a regra do artigo 134, caput, da Constituição Federal.
Assim, sendo o Defensor Público ocupante de cargo público e atuando dentro de suas competências, o documento por ele subscrito, seja em formato digital ou físico, possui presunção de veracidade, o que afasta necessidade de aferição dos atributos de sua assinatura ou reconhecimento de autenticidade.
Ademais, no caso em apreço, a Defensora Pública requereu a suscitação de dúvida a fim de dirimir os óbices levantados e, assim, atingir a efetivação dos direitos de sua assistida no processo judicial, conforme prerrogativa prevista no artigo 162, inciso IV, da Lei Complementar n.988/2006:
“Artigo 162 – São prerrogativas dos membros da Defensoria Pública do Estado, além daquelas definidas na legislação federal:
IV – requisitar, a quaisquer órgãos públicos estaduais, exames, certidões, cópias reprográficas, perícias, vistorias, diligências, processos, documentos, informações, esclarecimentos e demais providências necessárias ao exercício de suas atribuições, podendo acompanhar as diligências requeridas“. Acerca da matéria, o STF já se posicionou, concluindo que a regra é constitucional porque viabiliza a prestação de assistência jurídica integral e efetiva:
“EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. DIREITO CONSTITUCIONAL E OUTRAS MATÉRIAS DE DIREITO CONSTITUCIONAL E OUTRAS MATÉRIAS DE DIREITO PÚBLICO. DEFENSORIA PÚBLICA. LEI COMPLEMENTAR 80/1994. PODER DE REQUISIÇÃO. GARANTIA PARA O CUMPRIMENTO DAS FUNÇÕES INSTITUCIONAIS. GARANTIA CONSTITUCIONAL DE ASSISTÊNCIA JURÍDICA INTEGRAL E EFETIVA. ADI 230/RJ. ALTERAÇÃO DO PARÂMETRO DE CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE. ADVENTO DA EC 80/2014. AUTONOMIA FUNCIONAL E ADMINISTRATIVA DAS DEFENSORIAS. IMPROCEDÊNCIA. 1. O poder atribuído às Defensoria Públicas de requisitar de qualquer autoridade pública e de seus agentes, certidões, exames, perícias, vistorias, diligências, processos, documentos, informações, esclarecimentos e demais providências necessárias ao exercício de suas atribuições, propicia condições materiais para o exercício de seu mister, não havendo falar em violação ao texto constitucional. 2. A concessão de tal prerrogativa à Defensoria Pública constitui verdadeira expressão do princípio da isonomia e instrumento de acesso à justiça, a viabilizar a prestação de assistência jurídica integral e efetiva. 3. Não subsiste o parâmetro de controle de constitucionalidade invocado na ADI 230/RJ, que tratou do tema, após o advento da EC 80/2014, fixada, conforme precedentes da Corte, a autonomia funcional e administrativa da Defensoria Pública. 4. Ação Direta de Inconstitucionalidade julgada improcedente” (ADI 6.852, Relator Ministro Edson Fachin, j. em 21/02/2022).
Insta salientar, ainda, que as normas infralegais apontadas pelo Oficial como fundamento para a recusa do requerimento não podem se sobrepor ao ditame constitucional (princípio da hierarquia), notadamente quando não há dúvida de que a Defensora Pública atuou no processo judicial em que formado o título. Ou seja, quando não há qualquer suspeita sobre a autenticidade da assinatura contida no requerimento.
Portanto, a exigência não poderia ser mantida.
No que diz respeito à segunda exigência, o título consiste em formal de partilha extraído de ação de divórcio (autos n.1021615-73.2019.8.26.0451), acompanhado de documentos, o qual foi prenotado sob o n.462.320 em 17/06/2024.
No processo judicial, houve homologação de acordo celebrado em audiência de conciliação nos seguintes termos (fls.310/312):
“(…) 7.Partilha: O casal decide a partilha dos bens da seguinte forma: a) os direitos relativo ao imóvel situado na Rua Jacinto Roberto Penedo, nº 444 Bairro Mário Dedini, em Piracicaba/SP, fica de propriedade exclusiva da Requerente que assume a responsabilidade pelo pagamento integral das dívidas relativas ao bem, passadas, presentes e futuras, o Imóvel localizado à Avenida Paranapanema, quadra 5, lote 7, Rosana distrito de Primavera/SP fica de propriedade exclusiva da Requerido que assume a responsabilidade pelo pagamento integral das dívidas relativas ao bem, passadas, presentes e futuras, os móveis e utensílios de Rosana/SP que guarnecem a residência do casal ficam para a Requerido, b) o automóvel GM/Zafira Elite, ano 2005/2006, placas MEW-2941, fica de propriedade exclusiva da Requerente assume a responsabilidade pelo pagamento das dívidas relativas ao bem, passadas, presentes e futuras; que o Requerido assume 50% (cinquenta por cento) das dívidas ref a transferência do carro e do IPVA do ano c) os móveis e utensílios que guarnecem a residência do casal ficam para a Requerente, o automóvel Toyota/Etios SDX ano 2017/2018 placas BBF-1628 fica de propriedade exclusiva da Requerido que assume a responsabilidade pelo pagamento das dívidas relativas ao bem, passadas, presentes e futuras d) desde que cumpridas as obrigações ora pactuadas, as partes quitam-se, mutuamente, para nada mais ser reclamado a título de partilha ou sobrepartilha de bens, seja quanto aos bens e direitos ora relacionados, seja quanto a outros bens e direitos não relacionados (…)”. Ocorre que Sueli e Israel foram casados pelo regime da comunhão parcial e o imóvel situado na rua Jacinto Roberto Penedo, n. 444, descrito na matrícula n.57.143, foi adquirido pelo varão enquanto solteiro (R.4 – fl.299), de modo que não pode ser considerado como bem comum a ser partilhado em razão do divórcio.
Aos bens comuns do casal foram atribuídos os seguintes valores: direitos de posse sobre o imóvel situado na rua Paranapanema, quadra 5, lote 7, Rosana, Primavera/SP – R$ 40.000,00; automóvel GM Zafira R$ 27.546,00 e automóvel Toyotta Etios R$ 59.437,00 (fls. 314/315).
Assim, o patrimônio bruto comum dos divorciandos equivalia a R$126.983,00.
A partir da partilha dos bens comuns, Sueli recebeu R$ 27.546,00 e Israel R$99.437,00, ou seja, R$71.891,00 a mais.
A fim de compensar a partilha nitidamente desigual, foi acordado que Sueli ficaria com o imóvel da matrícula n.57.143, avaliado em R$60.057,50, o que caracteriza transmissão onerosa inter vivos, passível de incidência de ITBI, tributo de competência municipal, previsto no art. 156, II, da CF[1].
Dizendo de outro modo, a partilha foi desigual e o imóvel próprio do marido – adquirido antes do casamento – foi objeto de dação em pagamento para a esposa, como torna, o que faz incidir tributação.
Nesse sentido:
“DIREITO TRIBUTÁRIO. FORMAL DE PARTILHA. EXCESSO DE MEAÇÃO COM TORNA REGISTRO CONDICIONADO AO RECOLHIMENTO DO ITBI. DÚVIDA JULGADA PROCEDENTE. APELO DESPROVIDO. I. Caso em exame. 1. O interessado, irresignado com o juízo de desqualificação registral que recaiu sobre o formal de partilha apresentado a registro, em especial, com a exigida comprovação do recolhimento de ITBI, requereu suscitação de dúvida, impugnando o excesso de meação e ponderando que a partilha não teve por objeto patrimônio imobiliário. 2. Julgada procedente a dúvida, recorreu. II. Questões em discussão. 3. A amplitude objetiva do patrimônio a ser valorado na aferição do excesso de meação. 4. A configuração da disparidade da partilha da meação e da hipótese de incidência do imposto de transmissão. III. Razões de decidir. 5. A desproporção da partilha da meação deve ser avaliada à luz da totalidade do patrimônio comum, patrimônio coletivo do casal, ou seja, não deve levar em conta apenas o patrimônio imobiliário. 6. A partilha foi desigual. Embora as dívidas do casal tenham sido repartidas na mesma proporção, os direitos reais de aquisição sobre bens imóveis e os bens móveis discriminados na convenção de divórcio foram atribuídos unicamente ao divorciando, que, em contrapartida, obrigou-se a compensar financeiramente a divorcianda. 7. O excesso de meação, caracterizado, ocorreu mediante pagamento de torna, qualificando-se assim como oneroso o negócio de partilha, situação a ensejar a incidência do ITBI, cujo recolhimento deve ser controlado pela Oficial. 8. O título judicial, tal como exibido, sem demonstração do pagamento do tributo, não admite registro. IV. Dispositivo. 9. Recurso desprovido. Tese de julgamento: 1. A desproporção da partilha da meação deve considerar a totalidade do patrimônio do casal, patrimônio coletivo, e não somente o patrimônio imobiliário. 2. A partilha desigual da meação com torna é causa de incidência de ITBI; ausente contrapartida, na falta assim de prestação correspectiva, o excesso de meação dá ensejo ao ITCMD. Legislação citada: CF, arts. 155, I, e 156, II; Lei do Município de São Paulo n.º 11.154/1991, art. 2.º, VI. Jurisprudência citada: TJSP, Apelação/Remessa Necessária n.º 1012763-39.2020.8.26.0576, rel. Des. Mônica Serrano, j. 10.2.2021, Apelação/Remessa Necessária n.º 1038844-42.2020.8.26.0053, rel. Des. Raul De Felice, j. 29.11.2021, Apelação n.º 1071093-12.2021.8.26.0053, rel. Des. Silva Russo, j. 12.1.2023, Remessa Necessária nº 1058944-81.2021.8.26.0053, rel. Des. Marcelo L Theodósio, j. 8.2.2023, Apelação/Remessa Necessária nº 1026398-02.2023.8.26.0053, rel. Des. Silva Russo, j. 18.9.2023, Apelação/Remessa Necessária n.º 1001526-73.2022.8.26.0176, rel. Des. Ricardo Chimenti, j. 1.º.11.2023, Apelação/Remessa Necessária n.º 1074978-63.2023.8.26.0053, rel. Des. Tania Mará Ahualli, j. 16.4.2024, Apelação n.º 1070881-20.2023.8.26.0053, rel. Des. João Alberto Pezarini, j. 3.7.2024, e Apelação n.º 1010120-86.2024.8.26.0053, rel. Des. Ricardo Chimenti, j. 26.7.2024; CSM/TJSP, Apelação Cível n.º 1060800-12.2016.8.26.0100, rel. Des. Pereira Calças, j. 6.6.2017, e Apelação Cível n.º 1053923-75.2024.8.26.0100, rel. Des. Francisco Loureiro, j. 19.9.2024” (CSM; Apelação n. 1171475-61.2024.8.26.0100; de minha relatoria; j. em 01/07/2025).
“REGISTRO DE IMÓVEIS – DÚVIDA REGISTRAL – JULGADA PROCEDENTE – RECUSA DE INGRESSO DE FORMAL DE PARTILHA, EXTRAÍDO DE PROCESSO DE DIVÓRCIO, POR FALTA DE RECOLHIMENTO DE ITBI CÔNJUGE QUE, UTILIZANDO PATRIMÔNIO PRÓPRIO, PAGA AO OUTRO VALOR COMO FORMA DE COMPENSAÇÃO PELA PARTILHA DESIGUAL SITUAÇÃO TÍPICA DE TORNA, COM NATUREZA JURÍDICA DE NEGÓCIO ONEROSO DE AQUISIÇÃO DE BENS – HIPÓTESE DE INCIDÊNCIA PREVISTA NO ARTIGO 2º, VI, DA LEI DO MUNICÍPIO DE SÃO PAULO N.º 11.154/91 – EXIGÊNCIA MANTIDA – RECURSO NÃO PROVIDO” (CSM; Apelação n. 1154601-35.2023.8.26.0100; de minha relatoria; j. em 05/04/2024).
Do mesmo modo dispõe a Lei Complementar n.224/2008, do Município de Piracicaba:
“Art. 201 O Imposto Sobre Transmissão de Propriedade “Inter-Vivos”, a qualquer título, por ato oneroso, de bens imóveis e de direitos reais sobre eles tem como fato gerador:
I – a transmissão de bem imóvel por natureza ou por acessão física;”
“Art. 203 O imposto incidirá especificamente sobre:
VI – as divisões de patrimônio comum ou partilha, quando for atribuído a um dos cônjuges, separado ou divorciado, valor dos bens imóveis acima da respectiva meação”.
Note-se que este Conselho Superior já afastou a incidência do ITBI em hipótese de partilha igualitária porque esta deve envolver todo o patrimônio comum do casal (não apenas o patrimônio imobiliário[2]). No caso em tela, porém, como já visto, a partilha envolveu bem particular de um dos cônjuges para acerto dos quinhões, o que caracteriza transmissão onerosa (torna).
Sobre o tema, o E. Supremo Tribunal Federal, há mais de seis décadas, ainda antes da Lei do Divórcio, aprovada em 1977, editou a Súmula n.116, admitindo o imposto de reposição, in verbis: “em desquite ou inventário, é legítima a cobrança do imposto de reposição, quando houver desigualdade nos valores partilhados“.
Note-se, ainda, que o título veio acompanhado de homologação de declaração de isenção de ITCMD (fls.190/192 e 325/328), quando o imposto incidente é o ITBI.
Justamente em razão do dever do Oficial de Registro de fiscalizar o recolhimento dos impostos incidentes sobre os atos que praticar (art. 30, XI, da Lei nº 8.935/94 e art. 289 da Lei nº 6.105/73), necessária será a comprovação, perante a serventia extrajudicial, do pagamento do tributo correto, que pode ser substituída por prova de que houve concessão de isenção.
Não se questiona, portanto, que a homologação do acordo celebrado entre as partes é título suficiente para ingresso perante o Registro de Imóveis. Ou seja, não há necessidade de documentação do negócio jurídico por meio de escritura pública, o que nunca foi exigido pelo Oficial.
Vale observar que, na tentativa de superar tal óbice, a parte apelante peticionou nos autos da ação de divórcio, requerendo que que o imóvel de matrícula n.57.143 fosse reconhecido expressamente como de propriedade comum do casal ou, subsidiariamente, que fosse reconhecida a transação como doação homologada judicialmente (fls.208/209, 231/233, 256, 331/332 e 333/335).
Contudo, o juízo competente não deferiu qualquer dos pedidos (fls.272 e 336), limitando-se a dizer que “o acordo devidamente homologado é título hábil para a transmissão da propriedade e registro. A questão tributária como ressaltou a DPE já foi objeto de análise pela Procuradoria (fls. 179)”.
Neste contexto, resta evidente que o acordo manteve- se como homologado, configurando partilha desigual com torna, que encontra óbice no Direito Registrário para ingresso.
Vale lembrar que o título judicial não é imune à qualificação registral, a qual, se restar negativa, não configura desobediência. Em outras palavras, a origem judicial não basta para garantir ingresso automático dos títulos no fólio real, cabendo ao Oficial qualificá-los conforme os princípios e regras que regem sua atividade (Apelação n. 413-6/7; Apelação n. 0003968-52.2014.8.26.0453; Apelação n. 0005176-34.2019.8.26.0344 e Apelação n. 1001015-36.2019.8.26.0223).
Por fim, quanto à exigência de prévia averbação da construção predial, embora não impugnada, não subsistiria.
Em que pese ausente anotação sobre a construção na matrícula n.57.143, o bem foi identificado no acordo como “imóvel situado na Rua Jacinto Roberto Penedo, nº 444 Bairro Mário Dedini, em Piracicaba/SP” (fl.311).
Quando possível a identificação do imóvel objeto do título, mesmo com descrição precária, o registro não fica impedido, bastando que haja correspondência suficiente com o fólio real, o que preserva o princípio da especialidade objetiva:
“REGISTRO DE IMÓVEIS – DÚVIDA JULGADA PROCEDENTE – INSTRUMENTO PARTICULAR DE ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA DE BEM IMÓVEL – BEM NEGOCIADO CONSISTENTE DE CASA INTEGRANTE DE CONDOMÍNIO (ART. 8º DA LEI 4.591/64) – ÁREA CONSTRUÍDA NA UNIDADE QUE DIVERGE DO AVISO DE IMPOSTO PREDIAL E DO LAUDO DE AVALIAÇÃO – DIVERGÊNCIA QUE NÃO IMPEDE A INSCRIÇÃO – TÍTULO QUE REPETE A METRAGEM CONSTANTE DO REGISTRO DA INCORPORAÇÃO E DA AVERBAÇÃO DA EDIFICAÇÃO, PRESERVANDO- SE A ESPECIALIDADE OBJETIVA – ESPECIALIDADE OBJETIVA SE AFERE MEDIANTE COTEJO ENTRE O TÍTULO E OS DADOS CONSTANTES DO REGISTRO IMOBILIÁRIO – EXISTÊNCIA DE DOCUMENTOS ESTRANHOS AO FÓLIO REAL NÃO PRESTAM PARA AFERIR A ESPECIALIDADE – ÓBICE AFASTADO – RECURSO PROVIDO” (CSM; Apelação Cível 1000020-77.2024.8.26.0116; de minha relatoria; j. em 10/09/2024).
“REGISTRO DE IMÓVEIS – Dúvida julgada procedente – Escritura pública de compra e venda de terreno em que consignado que os adquirentes têm ciência da existência de “área construída” que será objeto de futura regularização – Exigências consistentes na retificação do recolhimento do imposto de transmissão “inter vivos” – ITBI, ou comprovação de que não incidente sobre o valor da construção, com complementação dos emolumentos que foram objeto de depósito prévio – Princípio da rogação – Construção não descrita no título e que não teve a averbação requerida – Registro viável – Recurso provido” (CSM; Apelação nº 1019680-34.2018.8.26.0224, Rel. Des. Geraldo Francisco Pinheiro Franco, j. Em 14/11/2019).
Possível, portanto, que o título seja levado a registro e, posteriormente, a parte interessada proceda à averbação da construção, o que não dependerá da participação do ex-cônjuge.
Diante do exposto, pelo meu voto e porque prejudicada a dúvida, não conheço o recurso de apelação.
FRANCISCO LOUREIRO
Corregedor Geral da Justiça e Relator
Notas:
[1] Art. 156. Compete aos Municípios instituir impostos sobre: II – transmissão “inter vivos”, a qualquer título, por ato oneroso, de bens imóveis, por natureza ou acessão física, e de direitos reais sobre imóveis, exceto os de garantia, bem como cessão de direitos a sua aquisição (…)”.
[2] “Registro de Imóveis – Recusa de ingresso de formal de partilha por falta de recolhimento de ITBI – Valor do patrimônio imobiliário dividido desigualmente entre os herdeiros – Hipótese de incidência prevista no artigo 2º, VI, da Lei do Município de São Paulo n.º 11.154/91 – Exigência descabida – Quinhões que devem ser analisados como um todo para fins de incidência de imposto – Inocorrência de transmissão “inter vivos” de imóvel por ato oneroso – Inaplicabilidade do artigo 289 da Lei nº 6.015/73 e do inciso XI do artigo 30 da Lei nº 8.935/94 – Apelação provida” (CSM/SP – Apelação nº 1060800-12.2016.8.26.0100 j. em 06/06/2017 – Rel. Des. Manoel de Queiroz Pereira Calças).
(DJEN de 27.08.2025 – SP)