CSM|SP: Direito Registral – Usucapião extrajudicial – Impugnação do proprietário tabular – Existência de litígio judicial sobre contrato de compra e venda não quitado – Impugnação fundamentada – Via administrativa inviável – Prescrição não apreciável na esfera administrativa – Manutenção do óbice, cancelamento da prenotação e extinção do procedimento – Recurso não provido.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Cível nº 1008689-04.2022.8.26.0565, da Comarca de São Caetano do Sul, em que são apelantes EIDE DIAS CAMARGO e MARCOS VIDAL, são apelados RICHARD LIZIDATTI e 1º OFICIAL DE REGISTRO DE IMÓVEIS E ANEXOS DA COMARCA DE SÃO CAETANO DO SUL.
ACORDAM, em Conselho Superior da Magistratura do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão: “Negaram provimento ao recurso de apelação, v.u.”, de conformidade com o voto do Relator, que integra este acórdão.
O julgamento teve a participação dos Exmos. Desembargadores FERNANDO TORRES GARCIA (PRESIDENTE TRIBUNAL DE JUSTIÇA) (Presidente), BERETTA DA SILVEIRA (VICE PRESIDENTE), XAVIER DE AQUINO (DECANO), TORRES DE CARVALHO(PRES. SEÇÃO DE DIREITO PÚBLICO), HERALDO DE OLIVEIRA (PRES. SEÇÃO DE DIREITO PRIVADO) E CAMARGO ARANHA FILHO(PRES. SEÇÃO DE DIREITO CRIMINAL).
São Paulo, 5 de agosto de 2025.
FRANCISCO LOUREIRO
Corregedor Geral da Justiça e Relator
APELAÇÃO CÍVEL nº 1008689-04.2022.8.26.0565
Apelantes: Eide Dias Camargo e Marcos Vidal
Apelados: Richard Lizidatti e 1º Oficial de Registro de Imóveis e Anexos da Comarca de São Caetano do Sul
VOTO Nº 43.854
Direito registral – Apelação – Usucapião extrajudicial – Qualificação negativa – Impugnação do proprietário tabular – Notícia de propositura de ação judicial – Conflito configurado – Impugnação fundamentada – Prescrição que não pode ser reconhecida na via administrativa – Recurso não provido.
I. Caso em exame
1. Trata-se de apelação interposta contra sentença que julgou procedente impugnação do proprietário tabular contra requerimento de usucapião extrajudicial de imóvel e vaga de garagem. A sentença determinou o cancelamento da prenotação e a extinção do procedimento administrativo sob o fundamento de precariedade da posse devido a debate já instaurado na via judicial. 2. A parte apelante sustenta preenchimento dos requisitos legais para acolhimento do pedido, notadamente posse pelo período legal e prescrição do preço.
II. Questão em discussão
3. A questão em discussão consiste em determinar se a impugnação apresentada pelo proprietário tabular é fundamentada, o que impediria o prosseguimento do procedimento administrativo.
III. Razões de decidir
4. A posse dos apelantes decorre de contrato de compra e venda não quitado, o que já se debateu em juízo.
5. A impugnação do proprietário-apelado é, portanto, fundamentada.
6. Existência de litígio, que deve ser resolvido na via judicial: o conflito evidenciado impede prosseguimento pela via administrativa.
IV. Dispositivo e Tese
7. Recurso não provido.
Tese de julgamento: “1. Impugnação fundamentada impede o prosseguimento da usucapião extrajudicial. 2. Prescrição é matéria que não pode ser reconhecida na via administrativa. 3. Existência de litígio torna necessária solução pela via judicial, com garantia de contraditório e ampla defesa”.
Legislação e jurisprudência relevantes:
– Lei n. 8.935/1994, art. 28; Lei n. 6.015/73, art. 216-A; itens 420.2 e seguintes, Capítulo XX, das NSCGJ.
– CSM, Apelação nº 899-6/3; Apelação nº 1001285-66.2020.8.26.0048 e Apelação nº 1002283-96.2023.8.26.0543; CGJ, Recurso Administrativo nº 1035361-15.2020.8.26.0114.
Trata-se de apelação interposta por Marcos Vidal e Eide Dias Camargo Vidal contra a r. sentença proferida pelo MM. Juiz Corregedor Permanente do 1º Oficial de Registros de Imóveis da Comarca de São Caetano do Sul (fl. 479), que julgou procedente a impugnação ofertada por Richard Lizidatti contra requerimento de usucapião extrajudicial de imóvel e de sua vaga de garagem (matrículas n. 12.522 e 12.524 daquela serventia; prenotação n. 109.552 – fl.60).
Fê-lo a sentença por entender que a posse da parte requerente é precária em virtude de debate judicial sobre o cumprimento de obrigação assumida em contrato de compra e venda envolvendo os bens, pelo que determinou o cancelamento da prenotação e a extinção do procedimento administrativo (fl.479).
Embargos de declaração foram rejeitados (fls.482/485 e 487).
Os apelantes sustentam, em resumo, que estão na posse mansa e pacífica dos imóveis desde 1992, ou seja, há mais de trinta anos, o que dispensa apresentação de justo título; que as ações tiveram como objeto a adjudicação compulsória dos bens e foram julgadas improcedentes, de modo que não podem impedir a usucapião extraordinária pela via extrajudicial (causas de pedir diversas); que as obrigações anteriormente assumidas estão prescritas em virtude de ausência de oposição ou cobrança (fls.491/495).
O proprietário-apelado apresentou contrarrazões, argumentando a precariedade da posse; a ocorrência de coisa julgada; a ausência de animus domini; a inadimplência das obrigações advindas do contrato de compra e venda envolvendo os imóveis; a ausência de tempo necessário à prescrição aquisitiva (fls.501/505).
A Procuradoria de Justiça opinou pelo não provimento do recurso (fls.512/514).
Por força da decisão de fls.515/516, o feito foi redistribuído a este C. Conselho Superior da Magistratura.
É o relatório.
Desde logo, necessário observar que o Registrador, titular ou interino, dispõe de autonomia e independência no exercício de suas atribuições, podendo recusar título e requerimento que entender contrários à ordem jurídica e aos princípios que regrem sua atividade (artigo 28 da Lei n. 8.935/1994), o que não se traduz como falha funcional.
Vale observar, ainda, que a existência de outras vias de tutela não exclui a da usucapião administrativa, a qual segue rito próprio, com regulação pelo artigo 216-A da Lei n. 6.015/73, pelo Provimento n. 65/17 do CNJ e pela Seção XII do Cap. XX das NSCGJ.
Assim, como a parte interessada optou por esta última para alcançar a propriedade do imóvel, a análise deve ser feita dentro de seus requisitos normativos.
No mérito, contudo, o recurso não merece provimento. Vejamos os motivos.
No caso concreto, tal como relatado pelo Oficial (fls.01/02), após cumprimento das notificações exigidas pelo ordenamento jurídico, houve impugnação ao pedido de usucapião extrajudicial com apoio em cópia de ações judiciais que evidenciariam a precariedade da posse: a parte requerente adquiriu o imóvel por contrato, mas não quitou a obrigação de pagamento do preço (fls.09/24 e 29/58).
Sabe-se que o procedimento da usucapião extrajudicial tem como principal requisito a inexistência de lide, de modo que, apresentada qualquer impugnação, a via judicial se torna necessária, cabendo à parte suscitada emendar a petição inicial para adequá-la ao procedimento comum nos termos do § 10, do artigo 216-A, da Lei n. 6.015/73.
As Normas de Serviço da Corregedoria do Tribunal de Justiça de São Paulo, prestigiando a qualificação do Oficial de Registro e a importância do procedimento extrajudicial, trouxeram pequena flexibilização a tal regra no seu Capítulo XX, permitindo que seja julgada a fundamentação da impugnação, com afastamento daquela claramente impertinente ou protelatória (destaques nossos):
“420.2. Consideram-se infundadas a impugnação já examinada e refutada em casos iguais pelo juízo competente; a que o interessado se limita a dizer que a usucapião causará avanço na sua propriedade sem indicar, de forma plausível, onde e de que forma isso ocorrerá; a que não contém exposição, ainda que sumária, dos motivos da discordância manifestada; a que ventila matéria absolutamente estranha à usucapião.
420.3. Se a impugnação for infundada, o Oficial de Registro de Imóveis rejeita-la-á de plano por meio de ato motivado, do qual constem expressamente as razões pelas quais assim a considerou, e prosseguirá no procedimento extrajudicial caso o impugnante não recorra no prazo de 10 (dez) dias. Em caso de recurso, o impugnante apresentará suas razões ao Oficial de Registro de Imóveis, que intimará o requerente para, querendo, apresentar contrarrazões no prazo de 10 (dez) dias e, em seguida, encaminhará os autos ao juízo competente.
420.4. Se a impugnação for fundamentada, depois de ouvir o requerente o Oficial de Registro de Imóveis encaminhará os autos ao juízo competente.
420.5. Em qualquer das hipóteses acima previstas, os autos da usucapião serão encaminhados ao juízo competente que, de plano ou após instrução sumária, examinará apenas a pertinência da impugnação e, em seguida, determinará o retorno dos autos ao Oficial de Registro de Imóveis, que prosseguirá no procedimento extrajudicial se a impugnação for rejeitada, ou o extinguirá em cumprimento da decisão do juízo que acolheu a impugnação e remeteu os interessados às vias ordinárias, cancelando-se a prenotação”.
Como visto, na forma do item 420.3, Cap. XX, se o Oficial considerar infundada a impugnação, a rejeitará por meio de ato motivado e prosseguirá com o procedimento, cabendo à parte impugnante a apresentação de recurso. Nesse caso, o requerente será intimado para apresentar suas razões, com encaminhamento do feito à Corregedoria Permanente para apreciação.
Porém, se o Oficial considerar a impugnação fundada, encaminhará os autos ao juízo competente “depois de ouvir o requerente” (item 420.4). Conclui-se, portanto, que, para ouvir o requerente, o Oficial também deverá esclarecer, por ato motivado, porque considerou a impugnação fundada.
A análise das questões pelo Oficial é, assim, relevante para além da mera narrativa dos atos realizados ao longo do procedimento.
Note-se que a parte requerente pode concordar com as razões do Oficial e imediatamente desistir do procedimento extrajudicial, partindo, eventualmente, para as vias ordinárias.
De qualquer forma, estando o feito previamente instruído com as manifestações necessárias, o julgamento pelo Corregedor Permanente se dará de plano ou após instrução sumária como bem esclarece a norma, não cabendo produção de prova para que se demonstre a existência (ou inexistência) de óbice ao reconhecimento da usucapião.
Caberá ao juízo corregedor analisar apenas se a impugnação tem caráter meramente protelatório ou completamente infundado.
Caso haja qualquer indício de veracidade que justifique a existência de conflito de interesses, a via extrajudicial se torna prejudicada, devendo o interessado se valer da via contenciosa, sem prejuízo de utilizar-se dos elementos constantes do procedimento extrajudicial para instruir seu pedido, emendando a petição inicial para adequá-la ao procedimento comum (item 420.8, Cap. XX, das NSCGJ).
Na hipótese, a posse decorre de contrato de compra e venda, o qual originou duas ações judiciais objetivando a adjudicação compulsória dos imóveis, as quais foram julgadas improcedentes pela falta de comprovação de pagamento do preço devido (fls.09/24, 29/58, 194/195 e 196/197).
O proprietário tabular se opõe, agora, ao pedido de usucapião apoiado na mesma tese, a de que a posse tem origem em contrato não cumprido pela parte apelante.
Evidenciado conflito, prosseguimento pela via administrativa não é mais possível. Debate deverá se dar na via judicial, com garantia de contraditório e ampla defesa:
“REGISTRO DE IMÓVEIS – USUCAPIÃO NA VIA EXTRAJUDICIAL – DÚVIDA – APELAÇÃO – IMPUGNAÇÃO FUNDAMENTADA DO CONFRONTANTE – IMPOSSIBILIDADE DE PROSSEGUIMENTO NA VIA ADMINISTRATIVA – APELAÇÃO A QUE SE DÁ PROVIMENTO PARA OS FINS DAS NSCGJ, II, XX, 420.4. “Quando se trata de impugnação manifestada em processo extrajudicial de usucapião, um ponto tem de ficar assente: nem o Oficial de Registro de Imóveis nem o Juiz Corregedor Permanente podem dirimir ou solucionar litígios. O julgamento da impugnação não se destina a compor lides. Pelo contrário: quando se julga uma impugnação dessa espécie, tudo o que se pode fazer é verificar a existência do litígio (caso em que cessa a instância administrativa, pois a contenda só pode ser resolvida por meio de ação contenciosa) ou constatar que, a despeito da contradição do interessado, verdadeira lide não há, mas tão-somente aparência dela (o que autoriza o prosseguimento na instância administrativa, na qual, como se sabe, tem de imperar o consenso, uma vez que o Oficial de Registro de Imóveis não é Juiz)” (CSM, Apelação nº 1001285-66.2020.8.26.0048, Relator Des. Fernando Torres Garcia, j. 06/11/2023).
“Registro de imóveis – Dúvida – Usucapião extrajudicial – Impugnação fundamentada oposta pela titular do domínio – Conflito em relação ao imóvel – Impossibilidade de prosseguimento na via administrativa – Incidência dos itens 420.4, 420.5 e 420.8, do Capítulo XX, das NSCGJ – Apelação a que se nega provimento.” (CSM; Apelação nº 1002283- 96.2023.8.26.0543; de minha relatoria; j. 10/10/2024)
Em outros termos, por estar a impugnação devidamente fundamentada e por não ser possível afastar de plano as razões opostas ao direito alegado pelos requerentes, notadamente no que diz respeito à ocorrência de prescrição, que é matéria que não se pode analisar na via administrativa[1], o procedimento administrativo deve ser extinto e a prenotação cancelada, com entrega dos autos à parte recorrente, que poderá emendar a petição inicial para ingresso na via judicial, na qual poderá se valer de todos os elementos possíveis, inclusive aqueles produzidos neste procedimento extrajudicial (item 420.8, Cap. XX, das NSCGJ).
Ante o exposto, pelo meu voto, nego provimento ao recurso de apelação.
FRANCISCO LOUREIRO
Corregedor Geral da Justiça e Relator
Notas:
[1] “Registro de Imóveis. Dúvida julgada procedente. Negativa de acesso ao registro de formal de partilha expedido nos autos do processo de arrolamento de bens Instrumento particular de divisão e extinção de condomínio sobre os imóveis partilhados, celebrado anteriormente ao falecimento. Negócio jurídico que configura, em verdade, permuta de partes ideais dos imóveis. Irrelevância, no caso, de a permuta ter sido formalizada por instrumento particular. Homologação judicial da partilha que torna desnecessária a lavratura de escritura pública. Ausência, porém, de comprovação do recolhimento do ITBI, em princípio devido. Ocorrência de prescrição e decadência insuscetíveis de exame em sede administrativa, no processo de dúvida registral. Recusa do registro acertada. Recurso não provido” (CSM – Apelação nº 899-6/3; Julgamento: 07/10/2008; DJ: 01/12/2008 Relator: Ruy Camilo).
“REGISTRO DE IMÓVEIS – Recurso de apelação recebido como recurso administrativo – Pedido de providências – Pleito unilateral de cancelamento de averbação de pacto comissório – Ausência de demonstração do cumprimento da obrigação – Alegada prescrição que não pode ser reconhecida na esfera administrativa – Recurso desprovido” (CGJ – Recurso Administrativo n. 1035361-15.2020.8.26.0114; Relator: Des. Ricardo Mair Anafe; Data de Julgamento: 07/10/2021).
(DJEN de 20.08.2025 – SP)