CSM|SP: Direito Registral – Apelação Cível – Registro de Imóveis – Escritura pública de compra e venda – Recusa de registro por alegada simulação de preço – Impossibilidade – A qualificação registral deve se restringir ao exame da registrabilidade do título, não cabendo ao Oficial adentrar no mérito do negócio jurídico – A análise de eventual simulação ou vício intrínseco demanda processo jurisdicional contencioso, com contraditório e ampla defesa, não podendo ser apreciada na via administrativa da dúvida registral – Escritura pública regularmente lavrada reflete a vontade das partes e, inexistindo indícios de falsidade material, não pode ter seu registro recusado sob alegação de preço irrisório – Presume-se a boa-fé das partes (CC, art. 422) – Recurso provido – Dúvida julgada improcedente.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Cível nº 1000710-27.2024.8.26.0595, da Comarca de Serra Negra, em que é apelante MARCELO JOSÉ DE MORAES, é apelado OFICIALA DE REGISTRO DE IMÓVEIS E ANEXOS DA COMARCA DE SERRA NEGRA.
ACORDAM, em Conselho Superior da Magistratura do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão: “Deram provimento à apelação, v.u.”, de conformidade com o voto do Relator, que integra este acórdão.
O julgamento teve a participação dos Exmos. Desembargadores FERNANDO TORRES GARCIA (PRESIDENTE TRIBUNAL DE JUSTIÇA) (Presidente), BERETTA DA SILVEIRA (VICE PRESIDENTE), XAVIER DE AQUINO (DECANO), TORRES DE CARVALHO(PRES. SEÇÃO DE DIREITO PÚBLICO), HERALDO DE OLIVEIRA (PRES. SEÇÃO DE DIREITO PRIVADO) E CAMARGO ARANHA FILHO(PRES. SEÇÃO DE DIREITO CRIMINAL).
São Paulo, 7 de agosto de 2025.
FRANCISCO LOUREIRO
Corregedor Geral da Justiça e Relator
APELAÇÃO CÍVEL nº 1000710-27.2024.8.26.0595
Apelante: Marcelo José de Moraes
Apelado: Oficiala de Registro de Imóveis e Anexos da Comarca de Serra Negra
VOTO Nº 43.871
Direito registral – Apelação – Registro de imóveis – Provimento.
I. Caso em Exame
1. Apelação interposta contra sentença que manteve a recusa ao registro de escritura pública de venda e compra de imóvel, sob alegação de simulação, devido ao preço irrisório do imóvel em relação ao valor de mercado, com fulcro no art. 167, §1º, II do Código Civil.
II. Questão em Discussão
2. A questão em discussão consiste em determinar se o Oficial de Registro pode recusar o registro de escritura pública de venda e compra por entender configurados elementos de simulação de preço, ou se tal análise deve ser reservada à esfera jurisdicional.
III. Razões de Decidir
3. A qualificação registral deve se limitar ao exame dos elementos atinentes à registrabilidade dos títulos, sem adentrar no mérito do negócio jurídico, que é reservado à esfera jurisdicional.
4. A simulação, como vício do negócio jurídico, requer análise em processo contencioso, com contraditório e ampla defesa, não cabendo ao Oficial de Registro tal exame. Embora a simulação relativa leve à nulidade do ato, deve ser arguida por qualquer interessado. Não cabe ao oficial ingressar em matéria fática para concluir pela ocorrência de simulação quanto ao valor do preço e negar acesso do título ao registro imobiliário.
IV. Dispositivo e Tese
5. Recurso provido.
Tese de julgamento: 1. A qualificação registral não pode ultrapassar a análise dos elementos relacionados à registrabilidade dos títulos. 2. A simulação deve ser apurada em processo jurisdicional contencioso.
Legislação Citada:
Código Civil, art. 167, §1º, II, art. 422.
Jurisprudência
Apelação nº 1047695-31.2017.8.26.0100
Cuida-se de apelação interposta por MARCELO JOSÉ DE MORAES em face da r. Sentença de fls. 69/71, proferida pela MMª Juíza Corregedora Permanente do Oficial de Registro de Imóveis, Títulos e Documentos e Civil de Pessoa Jurídica de Serra Negra, que, em procedimento de dúvida, manteve a recusa ao registro de escritura pública de venda e compra, tendo por objeto o imóvel da matrícula 36.075, lavrada pelo Tabelião de Notas e de Protesto de Letras e Títulos de Serra Negra, ao fundamento de haver indícios de simulação no negócio jurídico, ante o preço irrisório do imóvel frente ao seu valor de mercado, configurando nulidade prevista no art. 167, §1º, II do Código Civil.
O apelante busca a reforma da sentença e sustenta, em síntese, não caber ao Registrador averiguar os motivos que levaram as partes a decidir qual o preço da compra e venda imobiliária, não se verificando quaisquer das hipóteses previstas no artigo 167 do Código Civil. Refutou a prática de simulação e subfaturamento, advertindo caber ao Oficial apenas a fiscalização do efetivo recolhimento do imposto de transmissão, mas não ao valor recolhido. Ademais, tratando-se de imóvel rural, este não recebe avaliação municipal, mas pelo Instituto de Economia Agrícola, ali constando que o valor de mercado do imóvel é de R$ 226.760,62, inferior ao transacionado pelas partes, tratando-se de negócio jurídico plenamente válido, perfeito e acabado, firmado entre as partes, sem vício de consentimento, entendimento também perfilhado pelo D. Promotor de Justiça quando de sua manifestação perante a Corregedoria Permanente, de sorte que a atuação do Registrador desborda dos limites da qualificação registral e da esfera administrativa do procedimento. Eventual simulação só pode ser reconhecida na via jurisdicional contenciosa e por iniciativa das partes (fls. 77/87).
A Procuradoria Geral de Justiça opinou pelo desprovimento do recurso (fls. 131/132).
É o relatório.
A apelação merece provimento.
De acordo com os autos, o apelante apresentou para registro à Oficiala de Registro de Imóveis, Títulos e Documentos e Civil de Pessoa Jurídica da Comarca de Serra Negra a escritura pública de venda e compra lavrada em 04 de julho de 2023 pelo Tabelião de Notas e de Protesto de Letras e Títulos de Serra Negra (Livro nº 485, fls. 227/232), pela qual Adilson José Gallina Marchi alienou o imóvel objeto da matrícula 36.075 ao apelante Marcelo José de Moraes, casado com Juliana Aparecida Borloni Ciambelli Moraes, e Luan Aparecido de Moraes, pelo valor ajustado de R$ 246.000,00 (fls. 22/28).
Prenotado o título (nº 113.244), foi expedida nota devolutiva, que pode ser sintetizada nos seguintes termos:
“Pelo R.08 da Matrícula 36.075, efetuado em decorrência de escritura pública lavrada aos 24 de outubro de 2019, houve a venda da fração ideal de apenas 16,2845% do imóvel por R$ 163.000,00. Na presente escritura ocorre a venda da totalidade do imóvel por valor correspondente a 24,5766% do imóvel, o que não é plausível em decorrência do valor de mercado verificado no mencionado R.08. Desta forma, há indícios de subfaturamento na escritura, não tendo acesso ao fólio real por se tratar de ato nulo, nos termos do art. 167, § 1º, II do Código Civil Brasileiro.” (fls.10)
Pois bem.
Não se questiona que a qualificação registral é atribuição fundamental e indissociável da atividade do Oficial, com natureza obrigatória, inafastável e vinculada ao princípio da legalidade.
Não por outro motivo, a própria redação do Item 38 do Capítulo XX das Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça dispõe que é dever do Registrador proceder ao exame exaustivo do título apresentado.
Por essas razões, a qualificação deve observar a compatibilidade do título com o ordenamento jurídico, com os princípios legais e regras administrativas aplicáveis, mas sempre limitada ao exame da registrabilidade dos títulos, não podendo ultrapassar a fronteira do julgamento inerente ao processo contencioso, sob pena de ingresso indevido do Oficial nos elementos intrínsecos do título apresentado.
Deste modo, para a hipótese em exame e a partir dos parcos elementos contidos no expediente de dúvida, apesar de imbuído das melhores intenções, a via administrativa, própria do Juízo da Corregedoria Permanente, não confere ao Registrador a possibilidade de examinar o conteúdo do ato negocial referente ao preço do imóvel, a ser reservada à esfera jurisdicional. Nessa última é que, respeitado o devido processo legal e o contraditório pleno, será possível analisar eventual vício intrínseco e, por conseguinte, declarar a nulidade do ato ou cancelar seus efeitos.
Ao contrário disso, no caso em exame o feito encerrou feição meramente administrativa em procedimento de dúvida registral (art. 198 da Lei 6.015/73), não se traduzindo em processo contencioso de natureza jurisdicional a autorizar a citação das partes envolvidas no ato negocial, tampouco ao reconhecimento de nulidade ou vício intrínseco ao negócio jurídico.
Como é sabido, escritura pública é ato notarial que reflete a vontade das partes na realização de negócio jurídico, observados os parâmetros fixados pela Lei e pelas Normas de Serviço da Corregedoria, os quais foram formalmente observados.
À luz do art. 167, §1º, II, do Código Civil, a simulação é vício que leva à nulidade do negócio jurídico:
“Art. 167. É nulo o negócio jurídico simulado, mas subsistirá o que se dissimulou, se válido for na substância e na forma.
§1°. Haverá simulação nos negócios jurídicos quando:
(…)
II – contiverem declaração, confissão, condição ou cláusula não verdadeira;”
Na hipótese dos autos, cuida-se de escritura de venda e compra de imóvel rural transacionado e ajustado por livre manifestação de vontade pelo preço total de R$ 246.000,00.
A identificação do valor como “irrisório” dependeria do exame de outros elementos de fato a serem apurados em ação própria, movida por qualquer prejudicado, em processo de natureza jurisdicional e contenciosa, e não apenas pelos singelos dados levantados pelo Oficial, os quais despontam como uma avaliação subjetiva, que desborda dos limites da qualificação registral.
Não há dúvida que a simulação leva à nulidade total ou parcial do negócio, matéria de ordem pública. Pode ser alegada por qualquer interessado, mas não pelo Oficial do Registro Imobiliário ex officio, investigando matéria de fato e fazendo juízo de valor sobre o preço de mercado do prédio.
Sem ignorar que o valor do imóvel para fins de cálculo do ITR, conforme levantamento apontado pelo Representante do Ministério Público (fls. 64/68) era inferior ao valor do imóvel ajustado na escritura pública.
Destaca-se ser da essência da simulação a conduta praticada em conluio, em ardil, e que, portanto, demandará ação própria, de natureza jurisdicional, com contraditório e ampla defesa, o que não é possível seja feito na esfera administrativa, sob pena de invasão na seara da livre declaração de vontade das partes.
Não existe qualquer informação quanto a indícios de falsidade material, ou mesmo ideológica, mas sim a presunção de negócio simulado com base em fatos levados em conta no momento da qualificação.
Relevante a tradicional doutrina de Narciso Orlandi Neto:
“Problemas relativos ao consentimento das partes dizem respeito ao título, tanto quanto sua representação e a elaboração material do instrumento.
Assim, se houve fraude, se a assinatura do transmitente foi falsificada, se o instrumento público não consta dos livros de nenhum notário, se a procuração que serviu na representação de uma das partes é falsa, se o consentimento do alienante foi obtido com violência, são todos problemas atinentes ao título. Podem afetar o registro, mas obliquamente. Só podem determinar o cancelamento do registro, em cumprimento de sentença que declare a nulidade do título e, em conseqüência, do registro.” (Retificação do Registro de Imóveis, Ed. Oliveira Mendes, pág. 192).
Apesar de desejada prudência, ao Sr. Oficial não compete investigar a sanidade das declarações de vontade dos contratantes e o suposto vício do consentimento, se é que houve, que não poderia ser de pronto verificado, cabendo à parte interessada buscar as vias ordinárias para pleitear judicialmente a nulidade do negócio em tela. Por conseguinte, também não há se falar em falta funcional.
Há precedente deste E. Conselho Superior da Magistratura com abordagem semelhante:
“REGISTRO DE IMÓVEIS – Venda por cerca de 10% do valor venal do imóvel – Escritura lavrada em pequeno município de outra unidade da federação – Instrumento sem indícios de falsidade material – Valor de negócio que não será considerado para o cálculo do ITBI- Limites da qualificação registral – Dúvida improcedente – Recurso provido.” (TJSP; Apelação Cível 1047695-31.2017.8.26.0100; Relator (a): Pinheiro Franco (Corregedor Geral); Órgão Julgador: Conselho Superior da Magistratura; Foro Central Cível – 1ª Vara de Registros Públicos; Data do Julgamento: 23/04/2018; Data de Registro: 24/04/2018)
Adicionalmente, pressupõe-se que as partes negociantes atuam com boa-fé em suas relações civis, não podendo o Titular preconceber o contrário. Nesse quesito, boa-fé e probidade vêm estampadas no próprio Código Civil, em seu artigo 422, que aponta que “os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé”, e tais conceitos se aplicam a todos os âmbitos da vida civil, não ficando restritas ao Direito Contratual.
É o caso, portanto, de desacolhimento da dúvida suscitada e de provimento do recurso.
Ante o exposto, pelo meu voto, DOU PROVIMENTO à apelação para julgar improcedente a dúvida, autorizando o registro do título.
FRANCISCO LOUREIRO
Corregedor Geral da Justiça e Relator
(DJEN de 20.08.2025 – SP)