1ª VRP|SP: Registro de Imóveis – Dúvida – Usucapião extrajudicial – Necessidade de notificação dos titulares de domínio e herdeiros – Imóvel sob titularidade de espólio e demais coproprietários – Requerente pleiteia reconhecimento extrajudicial de usucapião extraordinária – Inexistência de anuência expressa dos titulares – Notificação obrigatória dos herdeiros, por força do princípio da saisine (arts. 1.784 e 1.791 CC e arts. 407, 409 e 410 do Prov. CNJ nº 149/2023) – Impossibilidade de dispensa da notificação ou substituição por edital sem observância das hipóteses legais – Comunicação em país estrangeiro viável mediante Convenção da Haia (Decreto nº 9.734/2019) – Vedada a expedição de carta rogatória ou pesquisas que demandem intervenção judicial na via administrativa – Exigências do Oficial respaldadas pela lei – Dúvida procedente.

Sentença

Processo nº: 1105619-19.2025.8.26.0100

Classe – Assunto Dúvida – Registro de Imóveis

Suscitante: 11º Cartório de Registro de Imóveis de São Paulo – SP

Suscitado: Raquel Camargo de Almeida

Juíza de Direito: Dra. Renata Pinto Lima Zanetta

Vistos.

Trata-se de dúvida suscitada pelo 11º Oficial do Registro de Imóveis da Capital, a requerimento de Raquel Camargo de Almeida, à vista de exigências feitas em procedimento extrajudicial de usucapião do imóvel objeto da matrícula n. 257.699 daquela serventia (prenotação n. 1.479.941).

O Oficial informa que Raquel Camargo de Almeida requereu o reconhecimento extrajudicial de usucapião, na modalidade extraordinária, sobre o imóvel objeto da matrícula n. 257.699 da serventia, sob a titularidade dominial de Espólio de Zaida Pereira Peruche, José Carlos Pires Carneiro, João Ricardo Barsuglia, alegando que mantém a posse mansa, pacífica e ininterrupta, somada à de seus antecessores, por mais de quinze anos; que verificou-se que o Espólio de Zaida Pereira Peruche é representada pela inventariante Heather Margareth Peruche Sores, residente e domiciliada em Lisboa, Portugal, sendo certo que referida inventariante é representada pelo advogado constituído nos autos do arrolamento dos bens deixados pelo referido espólio, Dr. Paulo Roberto Souza Sardinha; que, feitas as notificações previstas nos artigos 407 e 412 do Provimento CNJ n. 149/2023, considerando a localização do representante do espólio com advogado constituído nesta comarca, foi apresentada impugnação quanto à forma da notificação; que, instada a se manifestar, a parte requerente alegou, em resumo, que a impugnação não impede a via eleita pela requerente de tramitação da usucapião na via extrajudicial, e requereu novas diligências para que o Espólio de Zaida Pereira Peruche seja notificado na pessoa de algum representante que tenha poderes para receber a citação; que, diante da impugnação apresentada, solicitou-se posicionamento da parte requerente, amparado no artigo 414 do Provimento CNJ n. 149/2023; que, em ato seguinte, a interessada requereu a suscitação da presente dúvida; que, para que o procedimento tenha regular trâmite na via administrativa, a notificação poderá ser expedida através do Ministério da Justiça, nos termos da Convenção Relativa à Citação, Intimação e Notificação no Estrangeiro de Documentos Judiciais e Extrajudiciais em Matéria Civil e Comercial, firmada na Haia, em 15 de novembro de 1965 (Decreto n. 9.734/2019), tendo em vista que, diante do histórico da aquisição e documentação apresentada, não há elementos para a dispensa da notificação da titular de domínio conforme prevê o artigo 410 do Provimento CNJ n. 149/2023; que, de outra forma, a parte requerente poderá solicitar a providência judicialmente, através de citação por carta rogatória, conforme disposto no Código de Processo Civil; e que, portanto, o óbice deve ser mantido (fls. 01/07).

Documentos e cópia do procedimento extrajudicial foram juntados às fls. 08/57.

Em manifestação dirigida ao Oficial, a parte suscitada aduz que a exigência do Oficial deve ser afastada, sendo determinada a continuidade do procedimento de usucapião pela via extrajudicial (fls. 54/55).

O Ministério Público deixou de intervir no feito (fls. 62/63).

É o relatório. Fundamento e Decido.

De início, é importante consignar que a existência de outras vias de tutela não exclui a da usucapião administrativa, a qual segue rito próprio, com regulação pelo artigo 216-A da Lei n. 6.015/1973, pelo Provimento CNJ n. 149/2023 e pela Seção XII, Cap. XX, das NSCGJ.

Assim, como a parte interessada optou por esta última para alcançar a propriedade do imóvel, a análise deve ser feita dentro de seus requisitos normativos.

Neste sentido, decidiu o E. Conselho Superior da Magistratura na Apelação Cível n. 1004044-52.2020.8.26.0161, com relatoria do então Corregedor Geral da Justiça, Des. Ricardo Anafe (destaque nosso):

“Usucapião Extrajudicial – Direito que deve ser declarado por ação judicial ou expediente administrativo nas hipóteses em que os pressupostos legais estejam rigorosamente cumpridos – Possibilidade de regularização do imóvel de maneira diversa à usucapião que não impede esta última, inclusive por procedimento administrativo Recusa indevida quanto ao processamento do pedido dúvida improcedente – Recurso provido com determinação para prosseguimento do procedimento de usucapião Extrajudicial.”

A presente dúvida decorre de impugnação da própria parte requerente após exigência formulada pelo Oficial, a qual não foi reconsiderada, com prosseguimento da dúvida nos termos do § 5º, do artigo 414 do Provimento CNJ n. 149/2023 e dos itens 421.2 e 421.4, Cap. XX, das NSCGJ.

No mérito, a dúvida é procedente.

Trata-se de pedido de reconhecimento extrajudicial de usucapião, na modalidade extraordinária, sobre o imóvel situado na Rua Roberto Sampaio Ferreira, n. 85/91, nesta Capital, objeto da matrícula n. 257.699 do 11º Registro de Imóveis de São Paulo (fls. 08/09), sob a titularidade dominial de Espólio de Zaida Pereira Peruche, José Carlos Pires Carneiro, João Ricardo Barsuglia, por meio do qual a requerente alega exercício de posse mansa, pacífica e contínua desde 14 de dezembro de 2022 (fls. 10/15).

Como regra geral, no processo extrajudicial de usucapião não se pode dispensar a notificação de titulares de direitos que não tenham dado prévia anuência à pretensão do interessado usucapiente.

Nesse sentido, a redação do parágrafo 2º do artigo 216-A da Lei n. 6.015/1973:

“Art. 216-A – (…) § 2°. Se a planta não contiver a assinatura de qualquer um dos titulares de direitos registrados ou averbados na matrícula do imóvel usucapiendo ou na matrícula dos imóveis confinantes, o titular será notificado pelo registrador competente, pessoalmente ou pelo correio com aviso de recebimento, para manifestar consentimento expresso em quinze dias, interpretado o silêncio como concordância.”

Assim, independentemente do tempo alegado de posse, em nenhuma modalidade de usucapião há previsão legal para dispensa das notificações exigidas, ressalvada a demonstração de consentimento expresso pelos titulares dos direitos, conforme hipóteses previstas nos artigos 407, 409 e 410 do Provimento CNJ n. 149/2023.

Caso o titular registral tenha falecido, seus direitos relativos ao imóvel e, consequentemente, seu interesse processual na defesa de tais direitos são imediatamente transmitidos aos herdeiros independentemente de qualquer ato ou de registro da partilha na matrícula, conforme previsto no artigo 409 do Provimento CNJ n. 149/2023.

Como se sabe, diante do princípio da saisine, os herdeiros recebem o acervo hereditário desde a abertura da sucessão, o qual será indivisível até a finalização da partilha, seguindo as normas relativas ao condomínio (artigos 1.784 e 1.791 do Código Civil).

Identificada a existência de herdeiros, indispensável sua notificação para participação no procedimento extrajudicial.

Eventual dificuldade ou morosidade não justifica que se dispensem notificações de quem vier a ser afetado pela usucapião, pois a regra fundamental em qualquer procedimento realizado em contraditório é de que seja dada ciência a quem quer que possa ser atingido pela decisão final.

O artigo 407 do Provimento CNJ n. 149/2023 impõe a notificação pessoal dos titulares de direitos que não assinarem a planta que instrui o pedido de usucapião nem fornecerem anuência expressa.

Já o seu artigo 410 faz presumir a outorga do consentimento quando apresentado justo título ou instrumento que demonstre a existência de relação jurídica com o titular registral, acompanhado de prova de quitação das obrigações e de certidão do distribuidor cível demonstrando a inexistência de ação judicial contra o requerente ou cessionários.

Caso falecidos os titulares de direitos e na falta de anuência pela via adequada, então seus herdeiros deverão ser notificados. Para tanto, esses deverão ser perfeitamente identificados e sua localização deve ser informada.

A notificação por edital, por sua vez, é autorizada em apenas duas hipóteses no procedimento administrativo: para ciência de terceiros eventualmente interessados e para ciência de notificandos que não tenham sido encontrados pessoalmente ou que estejam em lugar incerto ou não sabido (§§ 4º e 13, do artigo 216-A, da Lei n. 6.015/73; artigos 408 e 413 do Provimento CNJ n. 149/2023; e itens 418.16 e 418.21, Cap. XX, das NSCGJ):

“418.16. Caso não seja encontrado o notificando ou caso ele esteja em lugar incerto ou não sabido, ou inacessível, tal fato será certificado pelo registrador, que deverá promover a sua notificação por edital mediante publicação, por duas vezes, em jornal local de grande circulação, pelo prazo de quinze dias cada um, interpretado o silêncio do notificando como concordância.

(…)

418.21. Após as notificações dos titulares do domínio do imóvel usucapiendo e dos confrontantes, o oficial de registro de imóveis expedirá edital, que será publicado pelo requerente e às expensas dele, na forma do art. 257, III, do CPC, para ciência de terceiros eventualmente interessados, que poderão manifestar-se nos quinze dias subsequentes ao da publicação (…)”.

Em suma, podemos concluir o seguinte: há necessidade de concordância ou notificação de todos os titulares de direitos registrados.

Note-se que a incumbência de identificação e localização dos notificandos, na via extrajudicial, é toda da parte interessada, o que afasta qualquer responsabilidade do Oficial ou deste juízo pelo acionamento de órgãos fornecedores de dados.

Destarte, podemos concluir o seguinte: há necessidade de concordância ou notificação dos titulares de direitos registrados. Caso falecidos e na falta de anuência pela via adequada, então seus herdeiros deverão ser notificados. Para isso, deverão ser perfeitamente identificados e sua localização deve ser informada. Desconhecido seu paradeiro, devem ser esgotadas as providências possíveis para localização (incumbência exclusiva da parte interessada). Somente se não forem encontrados nos endereços alcançados para notificação pessoal ou se estiverem em lugar incerto ou não sabido, será possível notificação por edital (item 418.16, Cap.XX, das NSCGJ), o que será avaliado oportunamente pelo Oficial competente.

Nesse sentido:

“REGISTRO DE IMÓVEIS. USUCAPIÃO EXTRAJUDICIAL. IDENTIFICAÇÃO E NOTIFICAÇÃO DE HERDEIROS DO PROPRIETÁRIO TABULAR. RECURSO NÃO PROVIDO. I. Caso em Exame 1. Trata-se de apelação interposta contra sentença que julgou procedente dúvida em procedimento de usucapião extrajudicial de imóvel, mantendo exigência de apresentação de qualificação completa dos herdeiros do titular de domínio para fim de notificação. II. Questão em Discussão 2. A questão em discussão diz respeito à amplitude das medidas cabíveis no âmbito do procedimento administrativo de usucapião extrajudicial para a localização de herdeiros do titular do domínio com a finalidade de notificação. III. Razões de Decidir 3. A notificação dos herdeiros é indispensável para garantir o contraditório e a ampla defesa, incumbindo à parte interessada identificação e localização. 4. Diligências que demandam acionamento de outros órgãos são incompatíveis com a via extrajudicial. IV. Dispositivo e Tese 5. Recurso não provido. Tese de julgamento: “A notificação dos herdeiros é obrigatória no procedimento de usucapião extrajudicial, o qual não comporta pesquisas que demandam intervenção judicial”. (CSMSP – Apelação Cível: 1004109-65.2023.8.26.0606; Localidade: Suzano; Data de Julgamento: 10/04/2025; Data DJ: 29/04/2025; Relator: Francisco Loureiro)

“Registro de imóveis – Dúvida – Usucapião extrajudicial – Falecimento do titular de domínio – Demonstrada a inexistência de inventário em curso, impõe-se a notificação dos herdeiros – Impossibilidade, diante da normativa vigente, de proceder-se à notificação por edital, desde logo – Apelação a que se nega provimento.” (CSMSP – Apelação Cível: 1031890-28.2023.8.26.0100; Localidade: São Paulo; Data de Julgamento: 30/11/2023; Data DJ: 07/03/2024; Relator: Fernando Antônio Torres Garcia)

De todo modo, deve-se ressaltar que, na via extrajudicial, no que diz respeito a pesquisas para localização de titulares de direitos reais (e eventuais herdeiros) que devam ser notificados, basta que sejam realizadas aquelas disponíveis à parte e ao Registrador, como seus indicadores pessoais, por exemplo.

É certo que a ausência de notificação de eventual interessado pode trazer consequências à parte requerente. Porém, apesar de necessário aprofundamento nas pesquisas, eventual dificuldade de investigação não pode inviabilizar o prosseguimento do procedimento, sob pena de torná-lo inócuo.

Assim, havendo notícia sobre a existência de herdeiros dos titulares de domínio, deve ser tentada a obtenção de endereço para realização de notificação. Caso sejam infrutíferas as buscas e se não for encontrado endereço mesmo após a realização de pesquisas pelos sistemas disponíveis que não necessitem de intervenção judicial, o procedimento pode prosseguir por conta e risco da parte requerente, contanto que ela seja alertada.

No caso concreto, verifica-se que o imóvel usucapiendo encontra-se sob a titularidade dominial de Espólio de Zaida Pereira Peruche, José Carlos Pires Carneiro, João Ricardo Barsuglia (fls. 08/09).

Em complemento, constou dos autos a informação de que o Espólio de Zaida Pereira Peruche encontra-se representado pela inventariante Heather Margareth Peruche Sores (fls. 39/41), sendo que referida inventariante teria outorgado mandato para advogado constituído nos autos do arrolamento dos bens deixados pelo referido espólio, Dr. Paulo Roberto Souza Sardinha, motivo pelo qual foi realizada a notificação da titular de domínio em seu nome (fls. 34/35).

Em impugnação, o notificando Paulo Roberto Souza Sardinha aduziu que não detém poderes para receber citação ou notificação em nome da inventariante do Espólio de Zaida Pereira Peruche, que atualmente reside em Lisboa, Portugal (fls. 37/38).

Como visto, sobreveio nos autos do procedimento administrativo informação acerca de endereço para citação da representante da titular de domínio – isto é, da inventariante do Espólio de Zaida Pereira Peruche – em território estrangeiro (fls. 38).

No entanto, na via extrajudicial não há possibilidade de expedição de carta rogatória, bem como não se mostra cabível a notificação direta dos titulares de domínio por edital, caso não preenchidos os requisitos do artigo 216-A, § 13, da Lei n. 6.015/73, ou seja, notificando não encontrado ou em lugar incerto ou não sabido.

Nessa mesma linha, este juízo já decidiu em casos similares (processos ns. 1059783-57.2024.8.26.0100, 1095394-81.2018.8.26.0100 e 1095411-20.2018.8.26.0100).

Nesse sentido:

REGISTRO DE IMÓVEIS. USUCAPIÃO EXTRAJUDICIAL. IDENTIFICAÇÃO E NOTIFICAÇÃO DE HERDEIROS DO PROPRIETÁRIO TABULAR. RECURSO NÃO PROVIDO. I. Caso em Exame 1. Trata-se de apelação interposta contra sentença que julgou procedente dúvida em procedimento de usucapião extrajudicial de imóvel, mantendo exigência de apresentação de qualificação completa dos herdeiros do titular de domínio para fim de notificação. II. Questão em Discussão 2. A questão em discussão diz respeito à amplitude das medidas cabíveis no âmbito do procedimento administrativo de usucapião extrajudicial para a localização de herdeiros do titular do domínio com a finalidade de notificação. III. Razões de Decidir 3. A notificação dos herdeiros é indispensável para garantir o contraditório e a ampla defesa, incumbindo à parte interessada identificação e localização. 4. Diligências que demandam acionamento de outros órgãos são incompatíveis com a via extrajudicial. IV. Dispositivo e Tese 5. Recurso não provido. Tese de julgamento: “A notificação dos herdeiros é obrigatória no procedimento de usucapião extrajudicial, o qual não comporta pesquisas que demandam intervenção judicial”. (CSMSP – Apelação Cível: 1004109-65.2023.8.26.0606 Localidade: SUZANO Data de Julgamento: 10/04/2025 Data DJ: 29/04/2025 Relator: Francisco Loureiro)

De outro giro, conforme bem ressaltado pelo Oficial, exsurge a possibilidade de realização da notificação em país estrangeiro na via extrajudicial em consonância com o Decreto n. 9.734/19, que promulgou a Convenção Relativa à Citação, Intimação e Notificação no Estrangeiro de Documentos Judiciais e Extrajudiciais em Matéria Civil e Comercial, por meio de expediente a ser encaminhado à Coordenação-Geral de Cooperação Jurídica Internacional do Ministério da Justiça e Segurança Pública.

Destarte, em que pese a irresignação da requerente, as exigências apontadas pelo Oficial têm respaldo normativo, de modo que não podem ser afastadas.

Diante do exposto, julgo procedente a dúvida para manter as exigências.

Deste procedimento não decorrem custas, despesas processuais ou honorários advocatícios.

Oportunamente, ao arquivo. P.R.I.C.

São Paulo, 10 de setembro de 2025.

Renata Lima Zanetta

Juíza de Direito

(DJEN de 11.09.2025 – SP)