1ª VRP|SP: Dúvida registral – Registro de Imóveis – Carta de sentença extraída de ação de divórcio e partilha – Direitos aquisitivos sobre imóvel objeto de alienação fiduciária – Exigência de anuência da credora fiduciária (art. 29 da Lei nº 9.514/97 e item 232 do Cap. XX das NSCGJ) – Princípio da continuidade registral – Título judicial sujeito à qualificação registrária – Jurisprudência do CSM – Dúvida julgada procedente – Manutenção do óbice registral.

Sentença

Processo nº: 1104825-95.2025.8.26.0100

Classe – Assunto Dúvida – Registro de Imóveis

Suscitante: 16º Ofício de Registro de Imóveis da Capital

Suscitado: K. M. de L. D.

Juíza de Direito: Dra. Renata Pinto Lima Zanetta

Vistos.

Trata-se de dúvida suscitada pela 16º Oficial de Registro de Imóveis de São Paulo, a requerimento de K. M. de L. D., diante de negativa em se proceder ao registro de carta de sentença extraída dos autos do processo n. 1008574-09.2025.8.26.0005, da 3ª Vara da Família e Sucessões do Foro Regional V – São Miguel Paulista, envolvendo o imóvel objeto da matrícula n. 137.673 daquela serventia.

A Oficial informa que o título foi prenotado sob n. 689.707 no dia 30 de julho de 2025, e foi qualificado negativamente em razão da falta de anuência da credora fiduciária, Caixa Econômica Federal, nos termos do artigo 29, da Lei 9.514/1997; que na partilha de bens do ex-casal, os direitos de fiduciante do imóvel objeto da matrícula n. 137.673 da serventia foram atribuídos integralmente à suscitada; que a caso a referida alienação já tenha sido quitada, preliminarmente deverá ser apresentado termo de quitação expedido pela credora fiduciária, assinado, com firma reconhecida e procuração atualizada com a data do termo de quitação; que nestes casos, a credora costuma confeccionar instrumento de cessão; que se apresentado o instrumento de cessão para registro, deve ser comprovado o recolhimento do ITBI incidente, nos termos do artigo 289, da Lei de Registros Públicos (fls. 01/02).

Documentos vieram às fls. 03/109.

Em impugnação apresentada nos autos, a parte suscitada aduziu, em síntese, que a exigência de anuência da credora fiduciária para o registro do formal de partilha dos direitos sobre imóvel alienado fiduciariamente é descabida, uma vez que a partilha não implica alteração da garantia, tampouco prejuízo ao credor; que, conforme amplamente reconhecido pela doutrina e jurisprudência, em casos de alienação fiduciária, o que integra o patrimônio dos fiduciantes não é a propriedade plena do bem, mas sim os direitos aquisitivos decorrentes do contrato de financiamento; que na ação de divórcio consensual, a partilha limitou-se à divisão interna desses direitos aquisitivos, atribuindo-os integralmente à suscitada; que o acordo homologado judicialmente estabelece que os ex-cônjuges permanecem como devedores fiduciantes, responsáveis solidários pelo pagamento das parcelas vincendas do financiamento, não havendo efetiva transmissão de obrigações a um terceiro estranho à relação original; que houve apenas uma redistribuição dos direitos sobre o bem entre os próprios devedores originários, permanecendo inalteradas as condições de pagamento e a responsabilidade solidária de ambos os ex-cônjuges perante a Caixa Econômica Federal; que para o credor fiduciário, a garantia permanece intacta; que o imóvel continua a ser o objeto da garantia, e a obrigação de pagamento, com seus termos e condições, permanece vinculada aos mesmos devedores originais; que não há que se falar em incidência de ITBI, pois não houve ganho patrimonial oneroso, mas sim mera divisão de bens na proporção devida a cada cônjuge; e que requer o acolhimento da impugnação, com determinação do imediato registro do título (fls. 05/12 e 10/117).

O Ministério Público ofertou parecer, opinando pela manutenção do óbice registral (fls. 122/124).

Nova manifestação da suscitada (fls 125/127). Anexou documentos (fls. 128/132).

É o relatório.

Fundamento e Decido.

De proêmio, cumpre ressaltar que o Oficial dispõe de autonomia e independência no exercício de suas atribuições, podendo recusar títulos que entender contrários à ordem jurídica e aos princípios que regem sua atividade (artigo 28 da Lei n. 8.935/1994), o que não se traduz como falha funcional.

No sistema registral vigora o princípio da legalidade estrita. Assim, quando o título ingressa para acesso ao fólio real, o Registrador perfaz a sua qualificação mediante o exame dos elementos extrínsecos e formais do título, de acordo com os princípios registrários e legislação de regência da atividade, devendo obstar o ingresso daqueles que não se atenham aos limites da lei.

Vale destacar, ainda, que os títulos judiciais não estão isentos de qualificação para ingresso no fólio real.

O Egrégio Conselho Superior da Magistratura já decidiu que a qualificação negativa não caracteriza desobediência ou descumprimento de decisão judicial (Apelação Cível n. 413-6/7). Neste sentido, também a Ap. Cível n. 464-6/9, de São José do Rio Preto:

“Apesar de se tratar de título judicial, está ele sujeito à qualificação registrária. O fato de tratar-se o título de mandado judicial não o torna imune à qualificação registrária, sob o estrito ângulo da regularidade formal. O exame da legalidade não promove incursão sobre o mérito da decisão judicial, mas à apreciação das formalidades extrínsecas da ordem e à conexão de seus dados com o registro e a sua formalização instrumental”.

E, ainda:

REGISTRO PÚBLICO – ATUAÇÃO DO TITULAR – CARTA DE ADJUDICAÇÃO – DÚVIDA LEVANTADA – CRIME DE DESOBEDIÊNCIA – IMPROPRIEDADE MANIFESTA. O cumprimento do dever imposto pela Lei de Registros Públicos, cogitando-se de deficiência de carta de adjudicação e levantando-se dúvida perante o juízo de direito da vara competente, longe fica de configurar ato passível de enquadramento no artigo 330 do Código Penal – crime de desobediência – pouco importando o acolhimento, sob o ângulo judicial, do que suscitado (STF, HC 85911 / MG – MINAS GERAIS, Relator: Min. MARCO AURÉLIO, j. 25/10/2005, Primeira Turma).

Sendo assim, não há dúvidas de que a origem judicial não basta para garantir ingresso automático dos títulos no fólio real, cabendo ao oficial qualificá-los conforme os princípios e as regras que regem a atividade registral.

No mérito, a dúvida é procedente, para manter o óbice.

No caso concreto, a parte suscitada pretende o registro de carta de sentença extraída dos autos do processo n. 1008574-09.2025.8.26.0005, da 3ª Vara da Família e Sucessões do Foro Regional V – São Miguel Paulista, que tratou do divórcio de K. M. de L. D. e E. D., por meio da qual procedeu-se à transmissão integral dos direitos aquisitivos decorrentes da alienação fiduciária o imóvel objeto da matrícula n. 137.673 do 16º RI a K. M. de L. D. (fls. 100).

A Lei n. 9.514/97, ao tratar da transmissão dos direitos que recaem sobre o imóvel alienado fiduciariamente, estabelece a obrigatoriedade de intervenção do credor fiduciário, assim como o item 232, Cap. XX, das NSCGJ:

Art. 29. O fiduciante, com anuência expressa do fiduciário, poderá transmitir os direitos de que seja titular sobre o imóvel objeto da alienação fiduciária em garantia, assumindo o adquirente as respectivas obrigações”.

“232. O devedor fiduciante, com anuência expressa do credor fiduciário, poderá transmitir seu direito real de aquisição sobre o imóvel objeto da alienação fiduciária em garantia, assumindo o cessionário adquirente as respectivas obrigações, na condição de novo devedor fiduciante”.

Nota-se, em verdade, que o ex-casal não fez qualquer menção à dívida que recai sobre o imóvel no acordo.

Não resta dúvida, portanto, que, para regularização da divisão dos direitos dos fiduciantes perante o fólio real, haverá necessidade de complementação do título pela anuência expressa do credor fiduciário na forma da lei e, também, em respeito ao princípio da continuidade registral.

Neste sentido se decidiu em casos análogos:

“REGISTRO DE IMÓVEIS – Carta de Sentença – Partilha de Bens – Dúvida procedente – Necessidade de correção do plano de partilha para constar a partilha dos direitos aquisitivos dos fiduciantes e não a partilha do imóvel propriamente dito – Indispensabilidade da anuência do credor fiduciário, na forma do art. 29 da Lei 9.514/97 – Carta de sentença que deve ser aditada porque o plano de partilha se encontra incompleto – Apelação não provida” (CSM Apelação n. 1036558-52.8.26.0100 Des. Pinheiro Franco j. 28.03.2018).

“Registro de Imóveis – Carta de sentença – Partilha de bem objeto de alienação fiduciária em garantia – Resignação parcial – Recurso não conhecido – Análise das exigências a fim de orientar futura prenotação – Necessidade de constar no título a porcentagem do bem atribuída a cada um dos ex-companheiros – Descabimento – Atribuição de quinhões que decorre do título judicial – Anuência da credora fiduciária para a transferência do contrato de alienação fiduciária em garantia – Necessidade – Inteligência do artigo 29 da Lei nº 9.514/97 e do item 238 do Capítulo XX das Normas de Serviço” (CGJ Processo n. 0011989-18.8.26.0291 Des. Pereira Calças j. 20.04.2016).

Diante do exposto, julgo procedente a dúvida suscitada, para manter o óbice registrário.

Deste procedimento não decorrem custas, despesas processuais ou honorários advocatícios.

Oportunamente, ao arquivo. P.R.I.C.

São Paulo, 08 de setembro de 2025.

Renata Pinto Lima Zanetta

Juíza de Direito

(DJEN de 09.09.2025 – SP)