1ª VRP|SP: Dúvida registral – Pedido de adjudicação compulsória extrajudicial formulado por cessionários de direitos – Indeferimento pelo oficial em razão da inexistência de inadimplemento contratual, tendo sido integralmente cumpridas as obrigações da promitente vendedora e dos promitentes compradores/cedentes, com lavratura de instrumento particular com força de escritura pública de compra e venda (30/07/1987), que constitui título hábil de transmissão da propriedade – Inadequação do manejo da adjudicação compulsória como sucedâneo de registro não realizado – Impossibilidade de utilização do instituto para contornar os princípios da inscrição e da continuidade registral – Ausência de legitimidade do tabelião de notas para suscitar ou impugnar a dúvida – Regularidade do procedimento adotado pelo oficial, mesmo com equívocos no protocolo eletrônico – Dúvida julgada procedente – Indeferimento do pedido de adjudicação compulsória extrajudicial mantido.
Sentença
Processo nº: 1105182-75.2025.8.26.0100
Classe – Assunto Dúvida – Registro de Imóveis
Suscitante: 8º Oficial de Registro de Imóveis de São Paulo
Suscitado: Antonio de Vitto e outros
Juíza de Direito: Dra. Renata Pinto Lima Zanetta
Vistos.
Trata-se de dúvida suscitada pelo 8º Oficial de Registro de Imóveis de São Paulo, a requerimento de Antonio de Vitto, Evandro de Vitto e Evelyn de Vitto Alvarez, à vista do indeferimento do procedimento de adjudicação compulsória extrajudicial do imóvel objeto da matrícula n. 10.563 daquela serventia.
O Oficial informa que os suscitados ingressaram com pedido de adjudicação compulsória extrajudicial contra a proprietária tabular do imóvel da matrícula n. 10.563, Finadisa – Companhia de Crédito Imobiliário, e contra os compromissários e cedentes, José Carlos Merthon e sua esposa, Sonia Maria Filomena Lanfredi Merthon; que o pedido em questão foi apresentado eletronicamente, por intermédio do e-Protocolo na plataforma eletrônica do ONR, pelo apresentante o 1º Tabelião de Notas de Santo André, que realizou o protocolo eletrônico como título normal, quando o correto seria o protocolo como procedimento administrativo, e, além disso, em “tipo de documento” constou: “usucapião extrajudicial e judicial”, apesar de o pedido se tratar de procedimento de adjudicação compulsória extrajudicial; que, a par desse equívoco na utilização do e-Protocolo pelo apresentante, várias celeumas e divergências foram criadas pelo apresentante e pela patrona dos suscitados, como se pode extrair dos pedidos de reconsideração subscritos pelo Tabelião e interessados, pedido de suscitação de dúvida, inclusive a impossibilidade de enviar as intimações por aquele portal, exceto o último que se refere ao indeferimento, pois o portal aguarda sempre a manifestação da outra parte e em muitos casos, ocorre inércia e demandaria outro despacho de encerramento; que o requerimento foi instruído com ata notarial lavrada em 06 de novembro de 2024, pelo 1º Tabelião de Notas de Santo André (livro 1.031, fls. 369/387) e documentos; que foi proferido despacho preliminar, alertando a patrona dos suscitados de que, em análise perfunctória, o pedido de adjudicação compulsória seria indeferido, dando oportunidade para emendar, se o caso, o requerimento para outro mais consentâneo; que no despacho inicial, após o depósito regulamentar, foram apontadas as inconsistências constatadas no procedimento e intimada a patrona; que às fls. 11/120 em longo arrazoado, o apresentante do título requereu reconsideração, instrumento assinado, também, pelos suscitados e sua patrona, acompanhado dos documentos de fls. 121/196; que, após a análise dos argumentos trazidos, foi proferida decisão de indeferimento do prosseguimento da adjudicação compulsória, diante da inexistência de inadimplemento por parte da proprietária tabular, tampouco por parte dos compromissários e cedentes, visto que todos já haviam cumprido, integralmente, sua obrigação assumida no compromisso de compra e venda, quando firmaram, em 30/07/1987, o contrato de compra e venda de imóvel, com financiamento imobiliário, pelo qual a Nacional Cia. De Crédito Imobiliário, sucessora de Finadisa, vendeu o imóvel adjudicando a Antonio de Vitto e sua esposa Neide de Vitto; que em razão do indeferimento do pedido pelo Oficial, a parte requereu a suscitação de dúvida; que o procedimento de adjudicação compulsória não serve para vencer dificuldade com título de transmissão de propriedade, sendo o remédio possível a usucapião extrajudicial, com base no justo título; e que o procedimento foi indeferido por impossibilidade jurídica, visto que não houve demonstração de descumprimento de compromisso de compra e venda (fls. 01/07).
Documentos vieram às fls. 08/1.381.
Em impugnação apresentada nos autos, a parte suscitada aduziu, em apertada síntese, que na plataforma do ONR não há a opção “adjudicação compulsória extrajudicial”, apenas usucapião; que todas as inconsistências apontadas pelo cartório foram respondidas, mas não houve qualificação detida; que os adjudicantes não são José e Sonia, mas sim os cessionários que não estão na matrícula; que houve o cumprimento total da obrigação dos compromissários e cedentes; que todos os requisitos legais foram preenchidos e restou demonstrado o descumprimento do compromisso de compra e venda inúmeras vezes, ocasionando, inclusive, ações judiciais; que não deve ser notificada a Finadisa Companhia de Crédito Imobiliário, e sim a Caixa Econômica Federal, que detém os direitos da antiga Finadisa; que não se faz necessária a notificação de José Carlos Merthon e Sonia Maria Filomena Lanfredi Merthon, tendo em vista a formalização e quitação, inclusive com processo judicial perante a 24ª Vara Cível Federal de São Paulo, no qual a CEF ficou obrigada a emitir o termo de quitação do imóvel de forma a permitir o cancelamento da respectiva hipoteca; que a ata notarial preenche todos os requisitos e que foi dispensada a facultativa diligência; que é possível depreender que os requerentes não figuram na matrícula do imóvel adjudicando como titulares de direito real; que possui legitimidade para a adjudicação compulsória qualquer adquirente ou transmitente nos atos e negócios jurídicos referidos no artigo 440-B, bem como quaisquer cedentes, cessionários ou sucessores; que a qualificação registral deve ser feita de forma unitária, completa e definitiva, e não fracionada ou provisória; que, diferentemente do citado na nota de exigência, o Tabelião tem sim legitimidade para participar do procedimento de dúvida, especialmente como “amicus curiae notarial”; que, deste modo, requer a improcedência da dúvida (fls. 1.382/1.405).
O 1º Tabelião de Notas de Santo André foi regularmente cientificado dos termos da presente ação de dúvida suscitada pelo Oficial e do prazo de 15 dias para apresentar eventual manifestação nos autos, mas não se manifestou (fls. 1408/1413).
O Ministério Público ofertou parecer, opinando pela procedência da dúvida (fls. 1.414/1.415).
É o relatório.
Fundamento e Decido.
De proêmio, cumpre ressaltar que o Oficial dispõe de autonomia e independência no exercício de suas atribuições, podendo recusar títulos que entender contrários à ordem jurídica e aos princípios que regem sua atividade (artigo 28 da Lei n. 8.935/1994).
É importante salientar que a existência de outras vias de tutela não exclui a da adjudicação compulsória extrajudicial de imóvel objeto de promessa de venda ou de cessão, a qual segue rito próprio, com regulação pelo artigo 216-B da Lei n. 6.015/1973, pela Seção XVI, do Capítulo XX, das Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça e Provimento n. 149/2023, com as disposições específicas introduzidas pelo Provimento n. 150/2023, ambos do CNJ.
Assim, como a parte interessada optou pela via extrajudicial para alcançar o registro de transferência da propriedade do imóvel, a análise deve ser feita dentro de seus requisitos normativos.
A presente dúvida foi suscitada, a requerimento dos próprios requerentes, em razão do inconformismo manifestado após a rejeição do seu requerimento de adjudicação compulsória extrajudicial pelo Oficial, a qual não foi reconsiderada, nos termos dos itens 471 a 471.2, do Cap. XX, das NSCGJ:
“471. O oficial de registro de imóveis indeferirá o pedido, se:
I – for constatado artifício ou colusão para burlar requisitos notariais e registrais ou exigências tributárias, ou para burlar o disposto no art. 108 do Código Civil;
II – a impugnação do requerido for fundada.
471.1. Indeferido o pedido, cessarão os efeitos da prenotação.
471.2. Acerca do indeferimento do pedido poderá ser suscitada dúvida, a pedido do requerente.”
No mérito, a dúvida é procedente, para manter a rejeição do pedido.
No caso concreto, os suscitados Antonio de Vitto, Evandro de Vitto e Evelyn de Vitto Alvarez, esses dois últimos herdeiros da falecida genitora Neide de Vitto, formularam requerimento para adjudicação compulsória extrajudicial do imóvel da matrícula n. 10.563, do 8º RI, em desfavor da proprietária tabular, Finadisa – Companhia de Crédito Imobiliário, e dos compromissários e cedentes, José Carlos Merthon e Sonia Maria Filomena Lanfredi Merthon.
O Oficial, corretamente, indeferiu o pedido de adjudicação compulsória extrajudicial porque restou provada a inexistência de inadimplemento das obrigações assumidas pela promitente vendedora do imóvel adjudicando e pelos promitentes compradores/promitentes cedentes em relação ao “instrumento particular de promessa de venda e compra” firmado entre promitente vendedora, Finadisa – Companhia de Crédito Imobiliário, e promitentes compradores, José Carlos Merthon e Sonia Maria Filomena Lanfredi Merthon, em 30/09/1977 (fls. 58/68), bem como em relação ao “instrumento particular de recibo e princípio de pagamento com forma e força de promessa de cessão de direitos e obrigações” firmado entre promitentes cedentes, José Carlos Merthon e Sonia Maria Filomena Lanfredi Merthon, e promitentes cessionários, Antonio de Vitto e sua esposa, em 25/07/1987 (fls. 74/78).
Isso porque, a obrigação assumida pela promitente vendedora no compromisso de compra e venda, assim como a obrigação assumida pelos promitentes cedentes no instrumento de promessa de cessão de direitos e obrigações decorrentes do referido compromisso, foram integralmente cumpridas quando firmaram, em 30/07/1987, o instrumento particular, com força de escritura pública, de compra e venda de imóvel, com financiamento hipotecário e outros pactos, pelo qual a Nacional Cia. De Crédito Imobiliário, sucessora de Finadisa – Companhia de Crédito Imobiliário, com a anuência dos promitentes compradores e cedentes, representados no ato por procurador constituído (fls.80), vendeu o imóvel da matrícula n. 10.563 para os compradores Antonio de Vitto e sua esposa Neide de Vitto, pelo valor de Cz$ 1.612.934,51, dos quais Cz$ 1.537.752,95 foram garantidos por hipoteca em favor da proprietária, cuja dívida seria paga nos termos pactuados no contrato (fls. 104/134).
Cabe salientar que o citado instrumento particular, com força de escritura pública, de compra e venda de imóvel, caracteriza exatamente o título de transmissão da propriedade plena do imóvel da matrícula n. 10.563 em favor dos compradores Antonio de Vitto e sua esposa Neide de Vitto, e é a prova do adimplemento da obrigação assumida pelos requeridos.
Bem por isso, o pedido de adjudicação compulsória extrajudicial foi corretamente indeferido pelo Oficial, em estrita observância do disposto nos itens 464, II, e 471, I, do Cap. XX, das NSCGJ.
Convém observar, ainda, que na ação ordinária ajuizada por Antonio de Vitto e Neide de Vitto contra CEF e Unibanco, objetivando a declaração de quitação do financiamento habitacional ajustado no instrumento particular de compra e venda do imóvel que celebraram em 30/07/1987, para o cancelamento da hipoteca que recai sobre o imóvel (processo n. 5014196-34.2019.4.03.6100, da 24ª Vara Cível Federal de São Paulo), na sentença proferida pelo o MM. Juiz que julgou procedente o pedido, restou consignado, de forma expressa, que não constava da matrícula do imóvel o registro do título de transmissão da propriedade e financiamento hipotecário objeto daqueles autos em nome dos autores, motivo pelo qual condicionou a emissão do termo de quitação ao prévio registro da compra e venda do imóvel em nome de Antonio de Vitto e Neide de Vitto (fls. 15/17).
Com efeito, a adjudicação compulsória constitui instrumento jurídico destinado a viabilizar a transferência da propriedade ao comprador que, tendo integralmente cumprido suas obrigações contratuais, vê-se impedido de obter a outorga da escritura definitiva por recusa injustificada do vendedor.
O instituto tem como finalidade, portanto, suprir a ausência da manifestação de vontade do alienante, configurando-se como mecanismo de tutela do direito subjetivo à aquisição da propriedade quando presentes os requisitos legais.
Neste panorama, não se pode admitir que o instituto da adjudicação compulsória seja manejado como um instrumento oblíquo para burla dos princípios registrários da inscrição e da continuidade (artigo 195 e 237 da Lei n. 6.015/1973): (i) existe o título de transmissão da propriedade plena do imóvel da matrícula n. 10.563 em favor dos compradores Antonio de Vitto e sua esposa Neide de Vitto; (ii) a sentença judicial exarada no processo n. 5014196-34.2019.4.03.6100, da 24ª Vara Cível Federal de São Paulo, reconheceu o direito de Antonio de Vitto e Neide de Vitto à quitação do saldo do financiamento por eles contratado, bem como emitir a quitação do imóvel na forma de permitir o cancelamento da respectiva hipoteca; (iii) com o falecimento de Neide de Vitto, em 05 de abril de 2023, foi lavrada escritura pública de inventário e partilha pelo 1º Tabelião de Notas de Santo André, com a partilha dos direitos de aquisição do imóvel, na proporção de metade ideal (50%) ao viúvo-meeiro, Antonio Vitto, e 1/4 (25%) a cada um dos herdeiros filhos, Evandro de Vitto e Evelyn de Vitto, ora suscitantes (fls. 138/144).
Destarte, confirma-se o acerto de todas as exigências apontadas nas notas devolutivas emitidas pelo Oficial, assim como da decisão de indeferimento do pedido de adjudicação compulsória extrajudicial, em observância do item 471, inciso I, Cap. XX, das NSCGJ, ora ratificada.
No mais, convém salientar que as Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça do Estado de São Paulo permitem, em algumas situações, a intervenção espontânea do tabelião de notas que lavrou a escritura pública objeto da desqualificação:
“39.4.1. O Juiz Corregedor Permanente, diante da relevância do procedimento de dúvida e da finalidade da função pública notarial, poderá, antes da prolação da sentença, admitir a intervenção espontânea do tabelião de notas que lavrou a escritura pública objeto da desqualificação registral ou solicitar, por despacho irrecorrível, de ofício ou a requerimento do interessado, a sua manifestação facultativa, no prazo de 15 (quinze) dias de sua intimação.
39.4.2. A intervenção tratada no subitem anterior independe de representação do tabelião por advogado e de oferecimento de impugnação, e não autoriza a interposição de recurso.”
No entanto, a possibilidade de ser admitida a intervenção espontânea do tabelião de notas que lavrou a escritura pública objeto da desqualificação, somente no curso do processo de dúvida, não confere ao tabelião de notas legitimidade ou interesse jurídico próprio para requerer a suscitação de dúvida registral.
Neste sentido:
“O requerimento do interessado para a suscitação da dúvida é simples, ou seja, não exige justificativa nem fundamentação, mas apenas a declaração de vontade de que a dúvida seja suscitada pelo oficial de registro de imóveis. A razão disso está em que o interessado terá seu momento oportuno para apresentar seus argumentos, em juízo, depois de apresentados, de maneira completa.
(…)
“A impugnação no processo da dúvida, pode ser apresentada apenas pelo interessado; o mero apresentante do título (ou seja, o apresentante que não tem, ele próprio, interesse jurídico no deferimento e na lavratura da inscrição rogada) não possui legitimidade para impugnar” (A Dúvida No Registro de Imóveis; Josué Modesto Passos e Marcelo Benacchio, Revista dos Tribunais; 1ª edição; pág. 75/81)
Portanto, somente aquele que sofrer os efeitos do ato registral pretendido tem legitimidade para suscitar a dúvida e recorrer da sentença proferida no correspondente processo.
Em termos diversos, a lei só confere direito de postular a instauração do processo de dúvida, de impugnar a dúvida e também de recorrer ao interessado no ato registral recusado, isto é, a quem detenha interesse, juridicamente protegido, na efetivação do registro.
No caso concreto, do ato registral visado e da desqualificação registral não se evidencia qualquer repercussão na esfera de direitos e obrigações do tabelião de notas, afastando-o da figura de interessado ou terceiro prejudicado qualificado a receber as notificações previstas no item 465.1, Cap. XX, NSCGJ, como se vê às fls. 242/259 e 416/418, ou requerer suscitação de dúvida.
Finalmente, em relação à informação precisa sobre a documentação necessária e formatos aceitos para o protocolo eletrônico dos procedimentos administrativos, dentro do campo específico para os procedimentos administrativos existente na plataforma eletrônica do ONR, como atesta a imagem da tela do sistema reproduzida às fls. 02, devem ser observadas as orientações das normas técnicas que regem a matéria estão contidas no Manual do e- Protocolo, o manual de utilização do sistema disponível a todos os usuários que acessam a plataforma do ONR.
De qualquer forma, ainda que o apresentante tenha realizado o protocolo eletrônico dentro do campo específico para títulos, e não no campo específico para procedimentos administrativos, é certo que o Oficial, quando recepcionou o protocolo do “título”, corretamente, procedeu à prenotação e, assim, autuou o procedimento, que foi regularmente processado junto à serventia predial.
Diante do exposto, julgo procedente a dúvida suscitada, para manter a decisão de indeferimento do requerimento de adjudicação compulsória extrajudicial.
Deste procedimento não decorrem custas, despesas processuais ou honorários advocatícios.
Oportunamente, ao arquivo. P.R.I.C.
São Paulo, 03 de setembro de 2025.
Renata Pinto Lima Zanetta
Juíza de Direito
(DJEN de 04.09.2025 – SP)