2ª VRP|SP: Pedido de providências – Tabelionato de Notas – Representação contra tabelião por irregularidade na lavratura de escritura pública de inventário extrajudicial – Exclusão de cônjuge sobrevivente, casada pelo regime da separação convencional de bens, na condição de herdeira necessária – Erro grave e inescusável ao aplicar, indevidamente, o regime da separação legal de bens, sem previsão no pacto antenupcial – Impossibilidade de o tabelião modificar o regime de bens, atribuição exclusiva da jurisdição – Violação ao contraditório e à ampla defesa – Instauração de processo administrativo disciplinar – Bloqueio administrativo do ato notarial – Remessa de cópia à Corregedoria Geral da Justiça e ao Ministério Público para providências – Pedido de providências procedente.

Processo Judicial: 1084370-12.2025.8.26.0100

Pedido de Providências

Tabelionato de Notas

I.A.P.C.

Juiz(a) de Direito: Dr(a). Marcelo Benacchio

VISTOS,

Trata-se de representação formulada em face do Sr. (…) Tabelião de Notas da (…), por meio da qual a Sra. Representante relata irregularidade na lavratura de escritura pública de inventário extrajudicial. Ela alega que, embora fosse cônjuge do falecido, unida a ele sob o regime da separação convencional de bens, não foi contemplada no ato notarial, ficando preterida em sua condição de herdeira necessária (fls. 01/61 e 80/82).

O Sr. Tabelião sustentou a correção do ato notarial, haja vista a existência de bens que pendiam de partilha decorrente de união anterior, de modo que ao casamento em vigor seria aplicado o regime legal, como determina o art. 1.641, I, do Código Civil (a fls. 68/76). O Ministério Público sustentou a irregularidade do ato notarial lavrado sem a participação da herdeira-cônjuge, ante ao casamento celebrado pelo regime da separação convencional de bens, bem como requereu a abertura do processo administrativo disciplinar em face do Sr. Tabelião (a fls. 86/88).

É o breve relatório. Decido.

Como se observa da certidão de casamento e do pacto antenupcial antecedente, o falecido era casado com a Sra. Representante pelo regime da separação convencional de bens (a fls. 22/23 e 25). Na escritura pública de pacto antenupcial houve a seguinte previsão (a fls. 25): (…) Que o regime a ser adotado para o casamento será o da COMPLETA E ABSOLUTA SEPARAÇÃO DE BENS (…)

Observo que no pacto antenupcial não houve qualquer menção ao regime da separação legal de bens ou afastamento da Súmula 377 do Supremo Tribunal Federal. Consta, igualmente, na certidão de casamento (a fls. 22): Regime de bens do casamento: separação total de bens, conforme escritura de pacto antenupcial lavrada aos 20/06/2017, neste cartório, no livro n. 289, página 132.

Não obstante, em contraste à documentação apresentada, na escritura de inventário e partilha (a fls. 35/40) foi referido:

1.4. – CÔNJUGE: O autor da herança faleceu no estado civil casado com a Sra. IMACULADA APARECIDA PEREIRA COUTINHO (CPF: 557.822.484-91), com quem era casado em 2ª núpcias sob o regime da separação total de bens em 26/8/2017, nos termos dos arts. 1.523, inciso III e 1.641, inciso I, do Código Civil Brasileiro, conforme escritura de pacto antenupcial lavrada em 20/6/2017, no Oficial de Registro Civil das Pessoas Naturais do Município e Comarca de (…), deste Estado, no livro 289, fls. 132 e conforme consta da certidão de casamento sob nº 117598 01 55 2017 2 00058 170 0013764 86 do Oficial de Registro Civil das Pessoas Naturais do Município e Comarca de (…), deste Estado;

Os arts. 1.523, inc. III, e 1641, inc. I, do Código Civil, estabelecem: Art. 1.523. Não devem casar: (…) III – o divorciado, enquanto não houver sido homologada ou decidida a partilha dos bens do casal; (…) Art. 1.641. É obrigatório o regime da separação de bens no casamento: I – das pessoas que o contraírem com inobservância das causas suspensivas da celebração do casamento; (…)

O Código Civil estabelece o regime da separação legal ou obrigatória de bens, bem como o regime da separação convencional; aquele independe de escritura pública, mas este a tem como da substância do ato, consoante previsão contida no art. 1653.

Além disso, há consolidado entendimento jurisprudencial admitindo a realização de pacto antenupcial, no regime da separação legal ou obrigatória, para afastar a incidência da Súmula 377 do Supremo Tribunal Federal. No direito sucessório há relevante efeito do regime de bens no casamento relativamente à legitimidade do cônjuge para suceder em concorrência com os descendentes, nos termos do art. 1829, inc. I, do Código Civil.

Art. 1.829. A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte: I – aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo se casado este com o falecido no regime da comunhão universal, ou no da separação obrigatória de bens (art. 1.640, parágrafo único); ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares; (…)

O regime da separação legal ou obrigatória de bens exclui a possibilidade de sucessão do cônjuge em concorrência com os descendentes; o que não ocorre, todavia, no regime da separação convencional.

A respeito confira-se entendimento doutrinário:

Na hipótese de concorrência com os descendentes, o cônjuge não participará da sucessão de seu consorte se casado com o falecido pelo regime da comunhão universal de bens, da separação obrigatória e da comunhão parcial quando não há bens particulares. Por conseguinte, a sucessão do cônjuge em concorrência com os descendentes terá lugar, conforme o disposto no artigo 1.829, I, quando o casamento tiver sido celebrado pelos regimes da separação total convencional de bens, da participação final nos aquestos, da comunhão parcial existindo bens particulares e nas hipóteses pouco frequentes dos regimes mistos, estabelecidos por força da liberdade das convenções antenupciais (CC, art. 1.639, caput). (grifos meus) (TEPEDINO, Gustavo; NEVARES, Ana Luiza M.; MEIRELES, Rose Melo V. Fundamentos do direito civil direito das sucessões Vol. 7. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2025, p. 95)

Nessa perspectiva, o cônjuge casado pelo regime separação total convencional de bens tem a situação jurídica de herdeiro necessário. A documentação carreada aos autos não deixa dúvidas que o casamento do falecido se deu pelo regime da separação total convencional de bens.

Entretanto, na lavratura da escritura de inventário e partilha (a fls. 35/40) não houve a inclusão da cônjuge do falecido, em razão da interpretação de que diante da presença de causa suspensiva (nos termos dos arts. 1.523, inciso III e 1.641, inciso I, do Código Civil Brasileiro), o regime de bens seria o da separação legal ou obrigatória de bens.

Esse procedimento configura erro grave e inescusável, em virtude do pacto antenupcial não haver referido o regime da separação legal ou a finalidade de afastar a Súmula 377 do Supremo Tribunal Federal. Não cabe ao Tabelião de Notas a modificação do pacto antenupcial, cuja natureza é contratual, mediante atuação substitutiva da vontade, típica da atividade jurisdicional. Igualmente, não lhe competia reconhecer a nulidade do pacto antenupcial e aplicar o regime da separação legal de bens. Pouco importa o mérito da questão, mas sim a absoluta falta de atribuições do Tabelião para modificação do regime de bens no casamento.

Acresça-se ainda a situação da realização do ato (ilegal) de modificação do regime de bens sem a participação da cônjuge sobrevivente, em violação direta ao direito fundamental do contraditório e da ampla defesa (CF, art. 5.º, LV).

Nessa ordem de ideias, o ato notarial deveria ter recebido qualificação notarial negativa e não ter sido lavrado, como aconteceu.

Apesar do ato não ter sido praticado diretamente pelo Sr. Tabelião, há indícios de ilícito disciplinar concernentes aos seus deveres de orientação, fiscalização e controle da preposta que lavrou e do preposto que subscreveu o ato notarial.

Ante ao exposto, determino a instauração de processo administrativo disciplinar em face do Sr. Tabelião. Determino, no mais, o bloqueio administrativo do referido ato notarial, ficando vedada a extração de cópias e a emissão de certidões e translados sem a prévia autorização deste Juízo, salvo expressa requisição judicial.

Em razão do contraste entre o conteúdo do pacto antenupcial e da certidão de casamento, frente ao afirmado na escritura pública com expressa referência àqueles, remeta-se cópia integral dos autos à Central de Inquéritos Policiais e Processos – CIPP, para conhecimento dos fatos pelo Ministério Público, nos termos do artigo 40 do Código de Processo Penal, para consideração que possa merecer.

Ciência ao Ministério Público e ao Sr. Tabelião.

Remeta-se cópia da presente decisão à Egrégia Corregedoria Geral da Justiça, por e-mail, servindo a presente decisão como ofício.

P.I.C.

(DJEN de 25.08.2025 – SP)