1ª VRP|SP: Dúvida registrária – Registro de escritura pública de doação – Exigência de recolhimento do ITCMD com base no valor venal de referência do ITBI – Recolhimento realizado sobre o valor venal do IPTU – Jurisprudência consolidada no sentido de que ao registrador compete apenas verificar a existência do recolhimento, não a correção da base de cálculo – Ausência de flagrante irregularidade – Eventual divergência a ser discutida na esfera tributária – Improcedência da dúvida para afastar o óbice registrário – Comunicação determinada à Secretaria da Fazenda e à Corregedoria Permanente quanto ao traslado notarial eletrônico.
Sentença
Processo nº: 1101871-76.2025.8.26.0100
Classe – Assunto Dúvida – Registro de Imóveis
Requerente: 6º Oficial de Registro de Imóveis da Capital
Requerido: Alessandra Jardim
Juíza de Direito: Dra. Renata Pinto Lima Zanetta
Vistos.
Trata-se de dúvida suscitada pelo 6º Oficial de Registro de Imóveis de São Paulo, a requerimento de Alessandra Jardim, diante de negativa em se proceder ao registro de escritura pública de doação lavrada pelo Tabelião de Notas do Distrito de Jardim Belval, Comarca de Barueri, envolvendo o imóvel objeto da matrícula n. 222.388 daquela serventia.
O Oficial informa que foi apresentada escritura pública lavrada em 13 de junho de 2025, pelo Tabelião de Notas do Distrito de Jardim Belval, Comarca de Barueri (livro 460, páginas 295/297), tratando da doação do imóvel objeto da matrícula n. 222.388 da serventia, prenotada sob n. 882.449 (AC009588401); que feita a qualificação, o título foi devolvido em 24 de junho de 2025, com nota de exigência e devolução, na qual foram formuladas as seguintes exigências: i) apresentação da certidão de casamento da doadora, Laurita Ribeiro Jardim, para atualização de seu estado civil, uma vez que na matrícula constava como “separada judicialmente”, e na escritura, como “divorciada”; ii) em razão de o ITCMD incidente sobre a doação ter sido declarado e recolhido com base no valor venal do IPTU e não no valor venal de referência, conforme exigido pela legislação paulista, foi solicitada a apresentação de mandado de segurança que autorizasse o recolhimento com base no valor inferior, ou, alternativamente, a complementação do imposto; que o título foi reapresentado em 04 de julho de 2025, com comprovação do cumprimento da primeira exigência, mediante ata retificativa lavrada na qual se corrigiu o estado civil da doadora para “separada judicialmente”; que, contudo, a donatária, não concordando com a exigência formulada no item “ii”, apresentou requerimento de reconsideração ou, na impossibilidade, a suscitação de dúvida; que o dissenso, portanto, decorre do recolhimento do ITCMD incidente sobre a doação, tendo sido utilizado como base de cálculo o valor venal do IPTU (R$ 578.350,00), e não o valor venal de referência (R$ 743.474,00), este ultimo previsto no artigo 1º do Decreto n. 55.002/2009 (fls. 01/04).
Documentos vieram às fls. 05/37.
Em manifestação dirigida ao Oficial, e em impugnação apresentada nos autos, a parte suscitada discordou da exigência, aduzindo que o ITCMD deve ser calculado com base no valor venal do imóvel; que o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo firmou jurisprudência no sentido de que a base de cálculo do imposto aludido deve obedecer ao valor venal dos bens com base no IPTU, afastando a aplicação do valor venal de referência do ITBI (fls. 09/12 e 38). Juntou documentos (fls. 39/57).
O Ministério Público ofertou parecer, opinando pelo afastamento do óbice (fls. 60/62).
É o relatório.
Fundamento e Decido.
De início, é importante ressaltar que o Registrador dispõe de autonomia e independência no exercício de suas atribuições, podendo recusar títulos que entender contrários à ordem jurídica e aos princípios que regem sua atividade (artigo 28 da Lei n. 8.935/1994), o que não se traduz como falha funcional.
No mérito, pese embora a cautela do Oficial, o óbice apontado pode ser afastado. Vejamos os motivos.
Não se desconhece que, para os Registradores, vigora ordem de controle rigoroso do recolhimento do imposto por ocasião do registro do título, sob pena de responsabilidade pessoal (artigo 289 da Lei n. 6.015/1973; artigo 134, inciso VI, do CTN e artigo 30, inciso XI, da Lei n. 8.935/1994).
Entretanto, o E. Conselho Superior da Magistratura já fixou entendimento no sentido de que a fiscalização devida não vai além da aferição sobre a existência ou não do recolhimento do tributo (e não se houve correto recolhimento do valor, sendo tal atribuição exclusiva do ente fiscal, a não ser na hipótese de flagrante irregularidade ou irrazoabilidade do cálculo).
Nesse sentido, os julgados do E. Conselho Superior da Magistratura:
“Ao oficial de registro incumbe a verificação de recolhimento de tributos relativos aos atos praticados, não a sua exatidão.” (Apelação Cível 20522-0/9- CSMSP – J. 19.04.1995 – Rel. Antônio Carlos Alves Braga).
“Todavia, este Egrégio Conselho Superior da Magistratura já fixou entendimento no sentido de que a qualificação feita pelo Oficial Registrador não vai além da aferição sobre a existência ou não de recolhimento do tributo, e não sobre a integralidade de seu valor.” (Apelação Cível 996-6/6 CSMSP, j. 09.12.2008 – Rel. Ruy Camilo).
“Este Egrégio Conselho Superior da Magistratura já fixou entendimento no sentido de que a qualificação feita pelo Oficial Registrador não vai além da aferição sobre a existência ou não de recolhimento do tributo, e não sobre a integralidade de seu valor.” (Apelação Cível 0009480- 97.2013.8.26.0114 – Campinas – j. 02.09.2014 – Rel. des. Elliot Akel).
O recolhimento do imposto com base no valor venal para fins de IPTU não implica flagrante irregularidade à vista do que dispõe a Lei n. 10.705/00: a base de cálculo do ITCMD é o valor venal do bem indicado pelo valor de mercado, desde que não inferior àquele fixado para lançamento do IPTU (nossos destaques):
“Artigo 9º – A base de cálculo do imposto é o valor venal do bem ou direito transmitido, expresso em moeda nacional ou em UFESPs (Unidades Fiscais do Estado de São Paulo).
§ 1º – Para os fins de que trata esta lei, considera-se valor venal o valor de mercado do bem ou direito na data da abertura da sucessão ou da realização do ato ou contrato de doação.
(…)
§ 4° – Para a apuração da base de cálculo poderá ser exigida a apresentação de declaração, conforme dispuser o regulamento.
(…)
Artigo 11 – Não concordando a Fazenda com valor declarado ou atribuído a bem ou direito do espólio, instaurar-se-á o respectivo procedimento administrativo de arbitramento da base de cálculo, para fins de lançamento e notificação do contribuinte, que poderá impugná- lo. (…)
Artigo 13 – No caso de imóvel, o valor da base de cálculo não será inferior:
I – em se tratando de imóvel urbano ou direito a ele relativo, ao fixado para o lançamento do Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana IPTU“.
No caso em exame, a parte pretende o registro da escritura pública lavrada em 13 de junho de 2025, pelo Tabelião de Notas do Distrito de Jardim Belval, Comarca de Barueri/SP (livro 460, páginas 295/297), tratando da doação do imóvel objeto da matrícula n. 222.388 do 6º Registro de Imóveis de São Paulo (fls. 15/19).
Nota-se que o valor indicado na declaração do ITCMD n. 91152147 (R$578.350,00, fls. 20/21) é o mesmo declarado na escritura pública de doação do imóvel: “cadastrado pela prefeitura do Município de São Paulo, sob nº 052.120.0063-7, com o valor venal de R$ 578.350,00, lançado no corrente exercício.” (fls. 15), qual foi afigurado como sendo o valor do
A divergência existe em virtude de o artigo 16 do Regulamento do ITCMD, aprovado pelo Decreto n. 46.655/02, com a redação dada pelo Decreto n. 55.002/09, fixar o valor venal de referência do ITBI divulgado pelo Município como base de cálculo do imposto em questão.
Sendo assim, o Registrador formulou as exigências, de conformidade com a legislação paulista, em razão de o ITCMD incidente sobre a doação ter sido declarado e recolhido com base no valor venal do IPTU, de acordo com os dados atestados pelo Tabelião de Notas do Distrito do Jardim Belval, da Comarca de Barueri, responsável pela lavratura da escritura pública de doação.
O artigo 13, inciso III, da Portaria CAT n. 89, de 26 de outubro de 2020, por sua vez, determina que, quando do registro de alterações na propriedade de imóvel, ocorridas em virtude de doação, os Cartórios de Registro de Imóveis deverão exigir cópia da Declaração de ITCMD em que constem os imóveis objetos da transmissão, avaliados conforme o capítulo IV da Lei n. 10.705/2000.
O descompasso entre as normas foi levado a debate na via judicial, com reconhecimento, em alguns casos, da inconstitucionalidade do Decreto em questão:
“RECURSO EX OFFICIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. TRIBUTÁRIO. ITCMD. BEM IMÓVEL. Determinação de valor venal de imóvel para cobrança de Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação de Quaisquer Bens ou Direitos – ITCMD, com adoção de base de cálculo de ITBI, nos termos do que dispõe o Decreto Estadual n° 55.002/09. Alteração de base de cálculo e subsequente majoração de tributo que só pode ser realizada por meio de lei. Ofensa ao princípio da Legalidade, violação ao art. 150, inciso I, da Constituição Federal e art. 97, inciso II, § 1º, do Código Tributário Nacional. A Fazenda Pública, não concordando com o valor declarado, tem o direito de instaurar procedimento administrativo, observado o contraditório e ampla defesa, para apurar a base de cálculo do tributo que é o valor de mercado do bem, ex vi art. 11 da Lei Estadual nº 10.705/00. Sentença concessiva da segurança mantida. Recurso desprovido com observação.”(TJSP; Remessa Necessária Cível 1072787-11.2024.8.26.0053; Relator (a): Marcelo Berthe; Órgão Julgador: 2ª Câmara de Direito Público; Foro Central – Fazenda Pública/Acidentes – 3ª Vara de Fazenda Pública; Data do Julgamento: 14/03/2025; Data de Registro: 14/03/2025)
“DIREITO TRIBUTÁRIO. REEXAME NECESSÁRIO E APELAÇÃO. ITCMD. BASE DE CÁLCULO. VALOR VENAL DO IMÓVEL. RECURSOS IMPROVIDOS. I. Caso em Exame Reexame necessário e recurso de apelação interposto contra sentença que concedeu segurança para que o ITCMD seja calculado com base no valor venal do imóvel, conforme valor de mercado para fins de ITR, e não pelo valor venal de referência do ITBI. II. Questão em Discussão 2. A questão em discussão consiste em (i) a legalidade da utilização do valor venal de referência do ITBI como base de cálculo do ITCMD e (ii) a possibilidade de instauração de procedimento administrativo para apuração do valor venal por arbitramento. III. Razões de Decidir 3. O Decreto Estadual nº 55.002/2009 não pode prevalecer sobre a Lei nº 10.705/2000, que estabelece que a base de cálculo do ITCMD é o valor venal do bem, conforme o valor de mercado na data da abertura da sucessão, em respeito ao princípio da legalidade. 4. A Lei Estadual nº 10.705/00 permite a instauração de procedimento administrativo para arbitramento do valor do bem, conforme art. 11, em consonância com o art. 148 do Código Tributário Nacional, tornando desnecessário o reconhecimento judicial. IV. Dispositivo e Tese 5. Recursos improvidos. Tese de julgamento: 1. A base de cálculo do ITCMD deve ser o valor venal do bem, conforme valor de mercado, não podendo ser alterada por decreto. 2. A instauração de procedimento administrativo para arbitramento do valor do bem é permitida pela legislação estadual.” (TJSP; Apelação / Remessa Necessária 1011676-74.2024.8.26.0037; Relator (a): Souza Nery; Órgão Julgador: 12ª Câmara de Direito Público; Foro de Araraquara – 1º Vara da Fazenda Pública; Data do Julgamento: 20/03/2025; Data de Registro: 20/03/2025)
“TRIBUTÁRIO MANDADO DE SEGURANÇA – ITCMD – BASE DE CÁLCULO – Sentença que concedeu a segurança para determinar que o recolhimento do ITCMD com base no valor venal utilizado para o cálculo do IPTU, ressalvada a possibilidade de o Fisco realizar procedimento de arbitramento – Manutenção A estipulação do valor venal do ITBI como base de cálculo do ITCMD, pelo artigo 16 do Decreto nº 46.655/2002, ultrapassa as disposições dos artigos 155, inciso I, da Constituição Federal, 38 do Código Tributário Nacional e 9º da Lei Estadual de São Paulo nº 10.705/2000 – Impõe-se, assim, a utilização do valor venal atinente ao IPTU como base de cálculo do ITCMD, observando-se que a Administração, via procedimento próprio, com observância do contraditório, tem a possibilidade de verificar o efetivo valor de mercado do imóvel, nos termos do art. 11 da Lei Estadual nº 10.705/00 – Precedentes – Sentença mantida – Reexame necessário desprovido.” (TJSP; Remessa Necessária Cível 1059334-46.2024.8.26.0053; Relator (a): Spoladore Dominguez; Órgão Julgador: 13ª Câmara de Direito Público; Foro Central – Fazenda Pública/Acidentes – 12ª Vara de Fazenda Pública; Data do Julgamento: 17/03/2025; Data de Registro: 17/03/2025)
Tal discussão, entretanto, não cabe nesta via administrativa por ser de direito material.
Em outros termos, como houve recolhimento do ITCMD e não há flagrante irregularidade, eventual diferença deve ser discutida na via adequada.
Ademais, o recolhimento do ITCMD pela donatária estava de acordo com os dados atestados pelo Tabelião de Notas que lavrou a escritura, de sorte que eventual erro quanto ao recolhimento depende da diligência do ente tributante, no caso o Estado de São Paulo.
Neste sentido decidiu, em caso análogo, o E. Conselho Superior da Magistratura:
“Registro de Imóveis – Dúvida – Escritura pública de doação imposto sobre transmissão (ITCMD) – Qualificação negativa do título, sob o fundamento de irregularidade na base de cálculo do recolhimento do imposto – Dever de fiscalização do Oficial que se limita à existência do recolhimento do imposto, ou eventual isenção – Discussão sobre a base de cálculo utilizada que extrapola as atribuições do registrador – Óbice afastado para determinar o registro do título – Dá-se provimento à apelação” (CSM Apelação n. 1002131-81.2021.8.26.0587 Rel. Corregedor Geral da Justiça Des. Ricardo Anafe j. 14.12.2021).
Diante do exposto, JULGO IMPROCEDENTE a dúvida suscitada, para afastar o óbice registrário.
De todo modo, por cautela, determino ao Oficial que proceda à comunicação sobre o ingresso à Secretaria da Fazenda e Planejamento do Estado de São Paulo, com envio das principais peças dos autos.
Por fim, considerando que o título foi apresentado de forma eletrônica, tratando-se do primeiro traslado da escritura pública de doação (livro 460, fls. 295/297), onde consta que, em 13.06.2025, naquele Tabelião de Notas do Distrito do Jardim Belval, localizado na Comarca de Barueri, naquele cartório, na presença do escrevente autorizado e do Tabelião Substituto que subscreveu o ato, compareceram as partes: a outorgante doadora e a outorgada donatária, ambas domiciliadas nesta cidade de São Paulo, Comarca da Capital, para firmarem a doação de imóvel localizado dentro da circunscrição desta Comarca da Capital (imóvel objeto da matrícula n. 124.551 do 6º Oficial de Registro de Imóveis desta Comarca da Capital); que as partes compareceram na sede daquele cartório e que o primeiro traslado se constitui sob a forma de um ato notarial eletrônico lavrado com a utilização da plataforma e-Notariado, não havendo menção ou observação no ato sobre tratar-se de um traslado notarial eletrônico; em atenção ao disposto no artigo 9º, da Lei n. 8.935/94, artigos 286 a 289, 302, “caput”, do Provimento CNJ n. 149/2023, e itens 5, 5.3, 46, 49, 148, 149, 198, do Capítulo XVI, das Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça, comunique-se o fato à E.CGJ e à MMª Juíza Corregedora Permanente das Notas, da 4ª Vara Cível da Comarca de Barueri, para ciência e eventuais providências cabíveis, servindo a presente como ofício, devidamente instruído com cópias de fls. 15/26 e 39/43.
Deste procedimento não decorrem custas, despesas processuais ou honorários advocatícios.
Oportunamente, ao arquivo. P.R.I.C.
São Paulo, 15 de agosto de 2025.
Renata Pinto Lima Zanetta
Juíza de Direito
(DJEN de 18.08.2025 – SP)