CSM|SP: Direito registral – Formal de partilha – Exigência de averbação de descaracterização de natureza rural – Impossibilidade de cadastramento como imóvel rural pelo INCRA – Localização em perímetro urbano confirmada por legislação e certidões municipais – Vocação urbana reconhecida – Documentos suficientes para averbação – Exigência afastada – Recurso provido.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Cível nº 1048210-77.2024.8.26.0114, da Comarca de Campinas, em que é apelante LEANDRO GUIMARÃES PARADELLA, é apelado 2º OFICIAL DE REGISTRO DE IMÓVEIS DA COMARCA DE CAMPINAS.
ACORDAM, em Conselho Superior da Magistratura do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão: “Deram provimento ao recurso de apelação, v.u.”, de conformidade com o voto do Relator, que integra este acórdão.
O julgamento teve a participação dos Exmos. Desembargadores FERNANDO TORRES GARCIA (PRESIDENTE TRIBUNAL DE JUSTIÇA) (Presidente), BERETTA DA SILVEIRA (VICE PRESIDENTE), VICO MAÑAS (DECANO), TORRES DE CARVALHO(PRES. SEÇÃO DE DIREITO PÚBLICO), HERALDO DE OLIVEIRA (PRES. SEÇÃO DE DIREITO PRIVADO) E CAMARGO ARANHA FILHO(PRES. SEÇÃO DE DIREITO CRIMINAL).
São Paulo, 26 de junho de 2025.
FRANCISCO LOUREIRO
Corregedor Geral da Justiça e Relator
APELAÇÃO CÍVEL nº 1048210-77.2024.8.26.0114
Apelante: Leandro Guimarães Paradella
Apelado: 2º Oficial de Registro de Imóveis da Comarca de Campinas VOTO Nº 43.833
Direito registral – Registro de imóveis – Negativa de registro de formal de partilha – Exigência de averbação prévia de descaracterização da natureza rural do imóvel – Impossibilidade de cadastro perante o INCRA – Imóvel inserido dentro do perímetro urbano – Recurso provido.
I. Caso em exame
1. Trata-se de recurso de apelação interposto contra sentença que manteve óbice ao registro de formal de partilha na matrícula n. 86.841, confirmando exigência de averbação prévia para descaracterização da natureza rural do imóvel. A parte apelante apresentou certidão municipal que atesta sua inclusão dentro do perímetro urbano e notificação do INCRA a respeito do indeferimento de pedido de cadastramento do imóvel como rural.
II. Questão em discussão
2. A questão em discussão consiste em determinar se a exigência de providências pela parte para averbação de descaracterização da natureza rural do imóvel pode ser afastada, tendo em vista a impossibilidade de cumprimento à vista da negativa do INCRA em cadastrar o imóvel como rural.
III. Razões de decidir
3. O princípio da legalidade estrita no sistema registral exige que o título atenda aos ditames legais. O Oficial deve obstar o ingresso de títulos que não satisfaçam os requisitos legais. 4. A exigência de providências para averbação da descaracterização do imóvel como rural é impossível de ser cumprida já que seu cadastramento foi indeferido pelo INCRA. Ademais, a Lei Complementar Municipal n. 207/2018 e certidões municipais confirmam a vocação urbana do imóvel.
IV. Dispositivo e Tese
5. Recurso provido.
Tese de julgamento: “1. A impossibilidade de cadastramento do imóvel junto ao INCRA permite o afastamento da exigência. 2. Vocação urbana do imóvel confirmada por legislação municipal e certidões. 3. Documentos suficientes para averbação da alteração de natureza”.
Legislação citada:
– Lei n. 6.766/1979, art. 53;
– Lei n. 6.015/73, art. 198;
– Lei n. 8.935/1994, art. 28;
– Lei Complementar Municipal n. 207/2018.
Trata-se de recurso de apelação interposto por Leandro Guimarães Paradella contra a r. sentença de fls. 642/646, proferida pela MM. Juíza Corregedora Permanente do 2º Oficial de Registro de Imóveis da Comarca de Campinas, que julgou procedente a dúvida suscitada, mantendo óbice ao registro de formal de partilha na matrícula n. 86.841 daquela serventia (fls. 413/414), ou seja, confirmando a exigência de prévia averbação para descaracterização da natureza rural do imóvel.
O Oficial esclareceu que o título se trata de formal de partilha expedido do processo de autos n. 0022620-68.1994.8.26.0114, que tramitou perante a 3ª Vara de Família e Sucessões da Comarca de Campinas, e foi prenotado sob o n. 410.481; que o registro foi negado em razão de o loteamento Chácaras Belvedere, em que se localiza o imóvel registrado na matrícula n. 86.841, possuir natureza rural; que, apesar do imóvel ter sido incluído no perímetro urbano, seria necessário realizar a averbação da descaracterização da natureza rural; que, para isso, o interessado deveria apresentar à serventia certidão emitida pelo INCRA e certidão de perímetro urbano expedida pela Municipalidade de Campinas, conforme exigência do artigo 53 da Lei n. 6.766/1979; que, na mesma oportunidade, o interessado foi questionado sobre a intenção de registro de direito de habitação em nome da viúva meeira, requerido à fl. 69 do formal de partilha; que o título foi reapresentado e prenotado sob o n. 432.028 (fls. 10), desta vez instruído com certidão expedida pelo Município de Campinas (fls. 403/405 e 672/674), que atesta que o imóvel encontra-se inserido no perímetro urbano, ao lado de notificação emitida pelo INCRA (fls. 402 e 675), informando o indeferimento do pedido de cadastro do imóvel como rural, tendo em vista que sua área é menor do que a fração mínima de parcelamento rural e sua localização dentro do perímetro urbano; que, na mesma oportunidade, foi informado o desinteresse no registro do direito real de habitação e requerido o registro de três escrituras públicas de doação do mesmo imóvel, as quais, entretanto, não foram apresentadas para qualificação; que os atos registrais foram novamente negados, conforme nota devolutiva n. 73.621, acostada às fls. 411/412, com reiteração da necessidade de realização de prévia averbação de descaracterização da natureza rural do bem conforme item 121, Capítulo XX, das NSCGJ; que a suscitação de dúvida foi requerida pelo advogado Paulo Eduardo Cezar sem a apresentação de procuração; que a serventia solicitou informações ao INCRA e à Prefeitura Municipal de Campinas por meio de ofícios, a respeito da alteração da natureza rural para urbana, mas não obteve respostas; que era habitual o registro de loteamento com propósitos rurais em razão de estarem localizados fora do perímetro urbano, mesmo que os imóveis já possuíssem características urbanas; que os proprietários e adquirentes de imóveis nessa situação relatam que estes estão cadastrados há muitos anos perante o fisco municipal e que têm dificuldades em realizar o cadastro perante o INCRA, o que inviabiliza a regularização da propriedade; que a notificação emitida pelo INCRA faz supor que o bem já não é mais rural; que houve suscitação de dúvida em caso semelhante, em que a exigência foi afastada (processo de autos n. 1020531-10.2021.8.26.0114); que a análise sobre a superação da exigência diante da impossibilidade de cumprimento apenas pode ser feita pelo juízo corregedor, conforme artigo 198 da Lei n. 6.015/73 (fls. 01/09).
O formal de partilha foi acostado às fls. 11/397.
Às fls. 418/423, o Oficial informou que foi apresentada à serventia procuração para regularização da representação processual do interessado, o qual, apesar de devidamente notificado (fls. 543/546), não se manifestou.
O Oficial informou às fls. 554/555 que a parte apresentou à serventia três escrituras públicas de doação, cujo registro também foi negado devido à necessidade do registro prévio do formal de partilha objeto desta suscitação de dúvida, tudo em atenção ao princípio da continuidade registrária (fls. 554/555).
Irresignado diante da procedência da dúvida, o apelante sustenta que a Lei Complementar Municipal n. 207/2018, a qual dispõe sobre demarcação e ampliação do perímetro urbano e instituição da zona de expansão urbana do Município de Campinas, não foi considerada pela decisão de primeiro grau; que apresentou à serventia certidão expedida pela municipalidade, a qual atesta que o imóvel está inserido dentro do perímetro urbano, além de demonstrativo de IPTU; que endereçou ao INCRA requerimento de caracterização do imóvel como rural, o qual foi indeferido em razão de sua metragem e destinação; que o Município é competente para legislar a respeito da expansão e limites de seu perímetro urbano; que apresentou todos os documentos exigidos e ainda assim não alcançou ingresso (fls. 653/658).
O Oficial se manifestou novamente (fls. 678/682), reiterando os esclarecimentos feitos inicialmente e ressaltando a aparente impossibilidade de se promover o descadastramento do imóvel perante o INCRA.
A Procuradoria de Justiça opinou pelo não provimento do recurso (fls. 693/694).
É o relatório.
De proêmio, é importante ressaltar que o Registrador, titular ou interino, dispõe de autonomia e independência no exercício de suas atribuições, podendo recusar títulos que entender contrários à ordem jurídica e aos princípios que regem sua atividade (art. 28 da Lei n. 8.935/1994), o que não se traduz como falha funcional.
De fato, no sistema registral, vigora o princípio da legalidade estrita, pelo qual somente se admite o ingresso de título que atenda aos ditames legais.
Em outras palavras, o Oficial, quando da qualificação registral, perfaz exame dos elementos extrínsecos do título à luz dos princípios e normas do sistema jurídico (aspectos formais), devendo obstar o ingresso daqueles que não se atenham aos limites da lei.
É o que se extrai do item 117 do Cap. XX das Normas de Serviço:
“Incumbe ao oficial impedir o registro de título que não satisfaça os requisitos exigidos pela lei, quer sejam consubstanciados em instrumento público ou particular, quer em atos judiciais”.
No mérito, porém, o recurso merece provimento. Vejamos os motivos.
No caso concreto, verifica-se que formal de partilha foi apresentado para registro na matrícula n. 86.841, cujo objeto é a gleba n. 29 do loteamento Chácaras Belvedere.
A qualificação foi negativa, com exigência de averbação prévia de descaracterização do imóvel como rural (artigo 53 da Lei n. 6.766/1979[1] e no item 121, Capítulo XX, das NSCGJ[2]), já que originado de loteamento dessa natureza, apesar de possuir vocação urbana há vários anos.
Para tanto, o interessado deveria requerer junto ao INCRA o cadastramento do imóvel e, posteriormente, seu descadastramento.
Pedido neste sentido foi feito, mas indeferido nos seguintes termos (fls. 401/402):
“Em atenção ao seu pedido de inclusão/atualização cadastral de imóvel rural no Sistema Nacional de Cadastro Rural SNCR, protocolado nesta autarquia por meio da Declaração Eletrônica, referente ao imóvel rural Gleba de terra nº29 Chác.Belvedere, localizado no município de CAMPINAS SP, informamos que seu pedido foi indeferido.
Inclusão de área oriunda de desmembramento de imóvel rural abaixo da fração mínima de parcelamento, com infringência ao art. 8º da Lei 5.868/1972
1- Imóvel comprovadamente inserido em perímetro urbano não tendo comprovação de que se destine ou possa se destinar à exploração agrícola, pecuária, extrativa vegetal, florestal ou agroindustrial.
2- Requerentes não constam como proprietários registrados em matrícula anexa de número 86841“.
Quando se tem em vista o fundamento da negativa do INCRA (tamanho e inserção no meio urbano), evidencia-se como impossível o cumprimento da exigência imposta pelo Oficial, o que ele próprio ressalta.
Exigência, ademais, que não faz sentido já que o bem, sem características de imóvel rural, não está cadastrado perante o INCRA.
Tanto é assim que está inserido no perímetro urbano e é objeto de tributação pelo IPTU (fls. 403/405, 668, 672/674 e 676).
Em outras palavras, a exigência tal como formulada configura obstáculo intransponível ao direito da parte de regularizar a propriedade do bem e dele dispor (registro do formal de partilha e de escrituras públicas de doação – fls. 556/564, 580/590, 602/613 e 669/671).
Vale observar que, pelo critério da localização (artigo 32, §1º, do CTN[3]), submete-se, como regra, ao IPTU o imóvel situado em zona urbana assim definida em lei municipal, justamente como ocorre no presente caso.
A Lei Complementar Municipal n. 207/2018, que dispõe sobre demarcação e ampliação do perímetro urbano e instituição da zona de expansão urbana do Município de Campinas, o demonstrativo de IPTU e certidão emitida pela Municipalidade confirmam a inserção do imóvel no perímetro urbano e evidenciam sua vocação urbana, como bem constatado pelo INCRA (fls. 403/405, 668, 672/674 e 676).
Os documentos que compõem o título são suficientes, portanto, para realização da averbação prévia de descaracterização do imóvel como rural, o que viabilizará, posteriormente, o registro do formal de partilha.
Ante o exposto, pelo meu voto, dou provimento ao recurso de apelação.
FRANCISCO LOUREIRO
Corregedor Geral da Justiça e Relator
Notas:
[1] “Art. 53. Todas as alterações de uso do solo rural para fins urbanos dependerão de prévia audiência do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA, do Órgão Metropolitano, se houver, onde se localiza o Município, e da aprovação da Prefeitura municipal, ou do Distrito Federal quando for o caso, segundo as exigências da legislação pertinente”.
[2] “121. Serão averbadas a alteração de destinação do imóvel, de rural para urbano, bem como a mudança da zona urbana ou de expansão urbana do Município, quando altere a situação do imóvel”.
[3] “Art. 32. O imposto, de competência dos Municípios, sobre a propriedade predial e territorial urbana tem como fato gerador a propriedade, o domínio útil ou a posse de bem imóvel por natureza ou por acessão física, como definido na lei civil, localizado na zona urbana do Município. § 1º Para os efeitos deste imposto, entende-se como zona urbana a definida em lei municipal; observado o requisito mínimo da existência de melhoramentos indicados em pelo menos 2 (dois) dos incisos seguintes, construídos ou mantidos pelo Poder Público (…)”.
(DJe de 07.07.2025 – SP)