CSM|SP: Registro de imóveis – Contrato de locação de imóvel urbano – Cláusula de vigência e direito de preferência – Exigência de descrição completa dos imóveis locados – Mitigação do princípio da especialidade objetiva – Contrato com identificação suficiente dos bens e referência expressa às matrículas – Ausência de risco à segurança jurídica ou ao controle da continuidade registral – Registro determinado.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Cível nº 1000839-86.2024.8.26.0577, da Comarca de São José dos Campos, em que é apelante SUPERMERCADO ALEAN DE SANTANA LTDA (SUPERMERCADO PRODUTOR), é apelado 2º OFICIAL DE REGISTRO DE IMÓVEIS E ANEXOS DA COMARCA DE SÃO JOSÉ DOS CAMPOS.

ACORDAM, em Conselho Superior da Magistratura do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão: “Deram provimento à apelação, com determinação, v.u.”, de conformidade com o voto do Relator, que integra este acórdão.

O julgamento teve a participação dos Exmos. Desembargadores FERNANDO TORRES GARCIA (PRESIDENTE TRIBUNAL DE JUSTIÇA) (Presidente), BERETTA DA SILVEIRA (VICE PRESIDENTE), XAVIER DE AQUINO (DECANO), TORRES DE CARVALHO(PRES. SEÇÃO DE DIREITO PÚBLICO), CAMPOS MELLO (PRES. DA SEÇÃO DE DIREITO PRIVADO) E CAMARGO ARANHA FILHO(PRES. SEÇÃO DE DIREITO CRIMINAL).

São Paulo, 1º de julho de 2025.

FRANCISCO LOUREIRO

Corregedor Geral da Justiça e Relator

APELAÇÃO CÍVEL nº 1000839-86.2024.8.26.0577

Apelante: Supermercado Alean de Santana Ltda (Supermercado Produtor)

Apelado: 2º Oficial de Registro de Imóveis e Anexos da Comarca de São José dos Campos

VOTO Nº 43.813

Direito registral – Locação de imóvel urbano – Cláusula de vigência e preempção – Registro negado – Dúvida julgada procedente – Recurso provido.

I – Caso em exame. 1. A suscitada, locatária, requer o registro do contrato de locação; pretende atribuir eficácia erga omnes à cláusula de vigência e ao direito de preferência; impugna a exigência relativa ao aperfeiçoamento da descrição dos bens imóveis locados, pois estariam suficientemente identificados no instrumento contratual. 2. Inconformada com a r. sentença, que julgou a dúvida procedente, interpôs apelação.

II – Questões em discussão. 3. Efeitos da inscrição objetivada e a sua repercussão sobre o juízo de qualificação registral. 4. Temperamento do princípio da especialidade objetiva.

III – Razões de decidir. 5. O título, consignando cláusula de vigência, comporta registro em sentido estrito, não se justificando a prática de dois atos registrais, nada obstante passível de averbação a preempção, sempre que prevista isoladamente. 6. A exigência questionada, excessiva in concreto, deve ser afastada, em atenção aos efeitos da publicidade registral, à eficácia da inscrição requerida, que não importa mutação de direito real nem regularização da cadeia dominial, e à presença de elementos suficientes a evidenciar a correspondência entre os bens imóveis alcançados pelo pacto locatício e os identificados nas matrículas lá especificadas. 7. As imperfeições e as omissões apontadas não obstam o registro, na falta de risco potencial e de prejuízo concreto ao controle da continuidade registral e da segurança jurídica. 8. O abrandamento do controle da especialidade objetiva resta autorizado no caso discutido, diante do caráter instrumental do registro, de seu escopo e do princípio da proporcionalidade; o que se perderia com a recusa é de maior relevo do que aquilo que se obteria com a ratificação da exigência feita.

IV. Dispositivo. 9. Recurso provido, dúvida julgada improcedente. 10. Registro determinado.

– Legislação citada: Lei n.º 6.015/1973, arts. 167, I, 3, e II, 16, e 176, § 1.º, III, 2), a); Lei n.º 8.245/1991, arts. 8.º, caput, 33, caput, e art. 81.

Jurisprudência citada: STJ, REsp n.º 1.269.476/SP, rel. Min. Nancy Andrighi, j. 5.2.2013, AgRg no Agravo em REsp n.º 592.939/SP, rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, j. 3.2.2015, e AgRg nos EDcl no REsp n.º 1.322.238/DF, rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, j. 23.6.2015; CSM/TJSP, Apelação Cível n.º 0018645-08.2012.8.26.0114, rel. Des. Renato Nalini, j. 26.9.2013; Apelação Cível n.º 1092648-36.2024.8.26.0100, rel. Des. Francisco Loureiro, j. 16.12.2024; CGJ/TJSP, parecer n.º 206/2013-E.

O Oficial, ao suscitar a dúvida, justificando a recusa do registro do contrato de locação nas matrículas n.ºs 100.179. 100.180, 100.181, 100.182, 100.183, 100.184, 100.185, 100.186 e 100.187 do 1.º RI de São José dos Campos, reportou-se à nota devolutiva de fls. 4-6, de acordo com a qual o instrumento contratual deveria ser retificado para constar fiador no lugar de caucionante, a descrição completa dos imóveis locados (a menção às matrículas é insuficiente), a rubrica de suas folhas pelos contratantes e pelas testemunhas e, nos termos do art. 221, II, da Lei n.º 6.015/1973, o reconhecimento das firmas das testemunhas.

Além disso, complementou, o instrumento de alteração da denominação da locadora para Costa Negócios Empresariais Ltda. deveria ser apresentado, assim como aprimorado o requerimento feito, fazendo expressa alusão ao pedido de registro, e depositado o valor das custas e dos emolumentos, em conformidade com a Lei Estadual n.º 11.331/2002 e a regra do art. 206-A, II, da Lei n.º 6.015/1973. Ponderou, ainda, em acréscimo à nota devolutiva, faltar, no contrato, a cláusula de vigência, exigida pelo art. 8.º da Lei n.º 8.245/1991.

Por fim, invocando o princípio da especialidade objetiva, concluiu que o título, o instrumento particular exibido, prenotado sob o n.º 138267, não admite registro (fls. 1-3).

O interessado Supermercado Alean de Santana Ltda., locatário, cumpriu parcialmente as exigências feitas. Ao reapresentar o título, quando ainda eficaz a prenotação, exibiu o instrumento contratual com o reconhecimento das firmas das testemunhas e a rubrica de suas folhas pelos contratantes e pelas testemunhas, bem como o instrumento de alteração da denominação social da locadora para Costa Negócios Empresariais Ltda., datado de 1.º de junho de 2020, comprometendo-se, de resto, a recolher as custas e os emolumentos, então dentro do prazo assinalado pelo Oficial.

Agora, não se conforma com as demais exigências, daí o requerimento de suscitação de dúvida. Em sua manifestação, alegou: o contrato é garantido por fiança; seu pedido não tem por escopo constituir a garantia real do art. 38, caput e § 1.º, da Lei n.º 8.245/1991; o registro visado busca assegurar a cláusula de vigência e o direito de preferência, caso alienados os bens imóveis locados; o aperfeiçoamento da descrição dos imóveis não tem respaldo legal, tampouco em norma administrativa; e as informações presentes no contrato permitem a precisa identificação das partes e dos bens locados (fls. 7-14).

Na impugnação de fls. 81-93, reiterou, em síntese, sua manifestação anterior, acrescentando que, da nota devolutiva, não há referência à suposta inexistência de cláusula de vigência, prevista, de todo modo, no instrumento contratual, em sua cláusula IX, alínea d, e que os bens imóveis relacionados à locação estão inscritos no cadastro municipal sob o n.º 22.0002.0027.0000, inscrição lançada em todas as matrículas, às correspondentes ao registro pretendido, situação a excluir o risco de ofensa ao princípio da especialidade objetiva.

O Oficial, instado, tornou a se manifestar e, aí, admitiu, expressamente, que, com a reapresentação do título, dentro do prazo da prenotação, remanesceu pendente de cumprimento apenas a exigência referente ao ajuste, à complementação da descrição dos bens imóveis locados (fls. 106).

A r. sentença de fls. 112-114, entendendo pertinente a exigência subsistente, pertinente à retificação do instrumento contratual, para constar a descrição completa dos imóveis abrangidos pela locação, julgou a dúvida procedente.

Irresignado, o interessado, agora recorrente, interpôs a apelação de fls. 121-133, sem nada inovar.

A d. Procuradoria-Geral de Justiça, em seu parecer de fls. 150-155, opinou pelo desprovimento do recurso.

É o relatório.

1. O dissenso versa sobre a registrabilidade do contrato de locação ajustado entre o interessada/recorrente, Supermercado Alean de Santana Ltda., na posição de locatário, e Edson César Costa & Cia Ltda., atualmente denominada Costa Negócios Empresariais Ltda., na condição de locadora, título correspondente ao instrumento particular de fls. 37-50.

Com o registro recusado, relacionado às matrículas n.ºs 100.179. 100.180, 100.181, 100.182, 100.183, 100.184, 100.185, 100.186 e 100.187 do 1.º RI de São José dos Campos, a interessada pretende atribuir eficácia erga omnes à cláusula de vigência e ao pacto de preempção, previstos, respectivamente, nas cláusulas IX, d, e XII do contrato de locação.

Assim sendo, não fazia sentido, realmente, a retificação inicialmente exigida, referente à garantia do cumprimento das obrigações locatícias. Não se busca, jamais aliás se requereu, inscrição de caução de bem imóvel, averbação atributiva de eficácia erga omnes, garantia real, seja como for, não convencionada, não oferecida pelo locatário. A garantia pactuada foi a fiança (fls. 41, cláusula XI).

Ao reapresentar o título, com a prenotação n.º 138267 ainda vigente, o interessado, além de esclarecer, de reforçar a finalidade do registro visado (fls. 36), acima então destacada, acedeu parcialmente às exigências formuladas. Providenciou a rubrica de todas as folhas do instrumento contratual, o reconhecimento das firmas das testemunhas, exibiu a alteração do contrato social da locadora e garantiu o pagamento das custas e dos emolumentos (fls. 37-44 e 65-77).

A respeito da cláusula de vigência, cuja convenção foi colocada em dúvida pelo Oficial, consta expressamente do contrato de locação, da alínea d de sua cláusula IX, em conformidade com a qual, no caso de venda do bem locado, o pacto locatício será respeitado (fls. 40); é o que basta, com vistas à inscrição requerida, considerando, ainda, o direito de preferência acordado (cf. cláusula XII, fls. 42), reconhecido, de todo modo, ope legis, por força do art. 33 da Lei n.º 8.245/1991.

Dentro desse contexto, remanesceu sem cumprimento, conforme depois expressamente reconhecido pelo Oficial (fls. 106), uma só exigência, a pertinente à descrição dos imóveis locados, com a qual não se conforma o interessado. Esta era a situação ao tempo do pedido de suscitação de dúvida e à época da correspondente suscitação; é a situação presente.

2. A irresignação, in casu, procede; o rigor do princípio da especialidade objetiva comporta, in concreto, abrandamento, deve ser suavizado, uma vez considerada a função do registro intencionado, que não envolve mutação jurídico-real, restringe-se à atribuição de eficácia real à cláusula de vigência e ao direito de preferência, e valorados a instrumentalidade registral e o princípio da proporcionalidade.

A cláusula de vigência, exceção ao axioma emptio tollit locatum, à máxima a venda rompe a locação (dependente, de todo modo, de denúncia contratual), excepcionando, em especial, o princípio da relatividade dos efeitos contratuais, permitindo, assim, que o contrato subsista ao negócio dispositivo, é, na precisa lição de Orlando Gomes, “uma limitação convencional à propriedade”.[1]

Também denominada cláusula de respeito, trata-se de direito pessoal com eficácia real; uma obrigação com eficácia real, caso, convencionada em locação por tempo determinado, inscrito o contrato na matrícula do bem locado. Sobre o tema, todavia, convém ressaltar, há precedentes do C. Superior Tribunal de Justiça relevando pontualmente a ausência de registro, se do conhecimento do adquirente a locação. [2]

Na mesma linha, o direito de preferência, que é pessoal (personalíssimo), tem eficácia real, caso inscrito o pacto locatício, isto é, adquire, no âmbito da locação, distingue Sylvio Capanema de Souza, “um caráter real, ao se assegurar ao locatário a adjudicação compulsória do imóvel, na hipótese de desrespeito ao seu direito.”[3]

Enfim, a inscrição requerida é, em conformidade com o escólio de Antônio Junqueira de Azevedo, fator de atribuição de eficácia mais extensa, necessária à plena oponibilidade da cláusula de vigência e do direito de preferência, à ampliação do campo de atuação de ambos, à produção de efeitos em relação a terceiros, efeitos erga omnes.[4]

3. O título, considerado apenas o direito de preferência, a garantia de seu exercício contra terceiros, estaria sujeito a averbação, à luz dos arts. 167, II, 16, da Lei n.º 6.015/1973[5], e 33, caput, da Lei n.º 8.245/1991[6]. No entanto, depende de registro em sentido estrito, para conferir efeitos reais à cláusula de vigência, à vista do que dispõe o art. 167, I, 3, da Lei n.º 6.015/1973. [7]

Embora o art. 8.º, caput, da Lei n.º 8.245/1991, ao tratar da cláusula de vigência e de sua oponibilidade a terceiros adquirentes, faça alusão à averbação[8], prevalece, aqui, em cotejo com o cronológico, o critério da especialidade, mais forte in concreto[9], portanto, prepondera a regra da Lei de Registros Públicos, a expressa no art. 167, I, 3, da Lei nº 6.015/1973.

Aliás, a Lei n.º 8.245/1991, em seu art. 81, ao introduzir alterações na Lei de Registros Públicos, assim dispôs:

Art. 81. O inciso II do art. 167 e o art. 169 da Lei n.º 6.015, de 31 de dezembro de 1973, passam a vigorar com as seguintes alterações:

“Art. 167. (…)

II – (…)

16) do contrato de locação, para os fins de exercício de direito de preferência.”

“Art. 169. (…)

III – o registro previsto no n.° 3 do inciso I do art. 167, e a averbação prevista no n.° 16 do inciso II do art. 167 serão efetuados no cartório onde o imóvel esteja matriculado (…)

Ou seja, ao prever a averbação do pacto locatício, para resguardar o exercício da preempção, preservou o texto do art. 167, I, 3, da Lei n.º 6.015/1973, ao qual se reportou expressamente, que trata do registro do contrato de locação, para fins de oponibilidade da cláusula de vigência, logo, não o revogou. Houve, sob essa ótica, infere-se, mero equívoco terminológico, no texto do art. 8.º, caput, da Lei de Locações.

A posterior revogação do inc. III do art. 169 da Lei n.º 6.015/1973, mais de trinta anos depois, pela Lei n.º 14.382/2022, é, aqui, irrelevante. Não afeta a solução dada à antinomia (mais aparente do que real), que tutela a racionalidade, a coerência lógica, jurídico-sistemática da ordem jurídica, já que o art. 576, § 1.º, do CC, ao regular hipótese símile, relacionada à locação de coisas e à vinculação do adquirente à cláusula de vigência, previu o registro do contrato, não sua averbação.[10]

Agora, para assegurar eficácia real tanto à cláusula de vigência como ao direito de preferência, é injustificável a prática de dois atos registrais (registro e averbação, respectivamente): basta o registro. A averbação, assim, fica restrita às situações nas quais se busca apenas atribuir efeitos erga omnes à preempção. Nessa sentido, há precedente deste C. Conselho Superior da Magistratura[11] e da E. Corregedoria Geral da Justiça.[12] No mesmo sentido, o entendimento de Kioitsi Chicuta.[13]

Sob essa lógica, por conseguinte, discutindo-se, aqui, registro em sentido estrito, cabe ao Conselho Superior da Magistratura de São Paulo julgar a apelação (art. 64, VI, do Decreto-lei Estadual n.º 3/1969, e arts. 16, V, e 184, II, b, do Regimento Interno do TJSP), que, já se adiantou, comporta provimento.

4. Em atenção ao dissenso registral, que gravita em torno da especialidade objetiva, toma em conta apenas a incompletude da descrição dos bens imóveis alcançados pela locação, os efeitos da inscrição requerida devem ser especialmente ponderados, levam aqui ao registro pretendido.

A publicidade registral buscada, inscrição necessária, fator de oponibilidade, atuante sobre a extensão da eficácia da cláusula de vigência e do direito de preferência, previstos em cláusulas especiais, adjetas, limitativas do direito de propriedade, é constitutiva, tem efeito constitutivo; agora, não é (trata-se de dado in casu relevante) constitutiva de direito real.

Sob outro prisma, não se volta à preservação da cadeia de titulares, isto é, à regularização de situação jurídico-real previamente configurada, nem à divulgação de ameaças que recaem sobre os direitos inscritos, vale dizer, não se trata de inscrição declarativa.

A inscrição declarativa, discorre Afrânio de Carvalho, “apenas divulga direitos que ganharam existência antes dela ou riscos que pendam sobre direitos inscritos, ocupando, no primeiro caso, os interstícios deixados no livro pela inscrição constitutiva, a fim de completar coerentemente a sequência de titulares, e apondo-se, no segundo, a inscrição preexistente no propósito de advertir sobre a pendência de pretensão a ela adversa. …”[14]

Sob esse enfoque, desdobra-se em duas, a integrativa de registro e a preventiva[15], uma e outra estranhas ao caso em apreço.

O registro requerido, já foi dito, é constitutivo, mas não importa mutação jurídico-real.

Os efeitos a serem obtidos com a publicidade registral visada, restritos à ampliação subjetiva da eficácia da cláusula de vigência e do direito de preferência, legitimam, confrontados os dados lançados no instrumento contratual e as descrições tabulares, e a despeito do descompasso constatado, o afastamento da exigência remanescente, o temperamento do princípio da especialidade objetiva.

Oportunos, nesse passo, os comentários de Ricardo Dip:

A diversidade de efeitos das inscrições prediais – eficácias constitutiva, declarativa e de mera notícia –, consoante a pluralidade dos direitos positivos, faz variar a amplitude e, de conseguinte, a importância da qualificação registral …

Para o exame dos supostos epistêmicos e dos limites da qualificação registral, é preciso resignar-se a uma tantas particularizações, que se põem sobretudo em consequência do papel que a ordem normativa confere à inscrição predial, porque … a qualificação (repita-se) varia consoante as leis de regência prevejam inscrições com preponderante caráter constitutivo, declarativo, de mera notícia, convalidante ou não; …[16]

Sob essa lógica, a imprecisão concernente à descrição dos bens imóveis locados, tratados atecnicamente como se fossem um só, situado na Avenida Rui Barbosa, 1800, Vila Alexandrina, não é óbice ao registro requerido, mormente à luz da expressa menção às matrículas correspondentes às coisas locadas, nas quais, aliás, constam o número de inscrição dos imóveis no cadastro municipal, todos inscritos sob o n.º 22.0002.0027.0000, também reportado no instrumento contratual.

O pacto locatício permite a exata identificação dos bens imóveis alcançados pela locação, todos, ademais, sob a propriedade da locatária. A perplexidade despertada pela descrição contratual imperfeita, falha, é antes aparente.

O objeto da locação, é certo, abrange todos os imóveis identificados nas matrículas n.ºs 100.179, 100.180, 100.181. 100.182, 100.183, 100.184, 100.185, 100.186 e 100.187 do 1.º RI de São José dos Campos.

Ponderada, assim, a causa da inscrição, a eficácia real do registro predial requerido, que não envolve constituição, transmissão de direito real, tampouco regularização da cadeia dominial, não há razão suficiente para condicioná-lo ao aperfeiçoamento descritivo exigido.

A inexatidão apurada não constitui empeço ao registro, que, convém enfatizar, não implica constituição de direito real, não tem por base operação imobiliária, tampouco visa à integração do registro.

5. A inscrição predial visada não coloca em risco o trato sucessivo, o controle da disponibilidade. A causa do registro, a eficácia a ser obtida, restrita a dilargar a oponibilidade da cláusula de vigência e do direito de preferência, autoriza, aqui, a pontual suavização do rigor da especialidade objetiva; é compatível com uma redução da amplitude da qualificação registral, a ser revestida de menor carga analítica.

Vale, sob essa perspectiva, a vetusta, e sempre atual, lição de Miguel Maria de Serpa Lopes, in verbis:

Um princípio devem todos ter em vista, quer Oficial de Registro, quer o próprio Juiz: em matéria de Registro de Imóveis tôda a interpretação deve tender para facilitar e não para dificultar o acesso dos títulos ao Registro, de modo que tôda a propriedade imobiliária, e todos os direitos sôbre ela recaídos fiquem sob o amparo de regime do Registro Imobiliário e participem dos seus benefícios. [17]

A propósito, se confirmada fosse a exigência pendente, ratificado fosse o juízo desqualificador (estorvando a inscrição, que, além do mais, é provisória e dependente de negócio jurídico eventual e futuro a ser, ocorrente, levado a registro e submetido à qualificação registral), mais se perderia, em cotejo, in concreto, com as vantagens advindas da qualificação positiva, mormente se levada em conta a segurança jurídica que proporcionará, finalidade a que se predispõe o registro.

Em outros e mais simples termos, o que se perde com a recusa do registro é de maior relevo do que aquilo que se ganha com a exigência, que, adequada ao fim perseguido, não é, todavia, in casu, necessária.

A proporcionalidade em sentido estrito e a necessidade (esta expressando a vedação do excesso), dois dos três subprincípios (o outro é o da adequação) então componentes do conteúdo do princípio da proporcionalidade, estão a respaldar o registro objetivado.[18]

Conforme acentua Luís Roberto Barroso, em passagem aplicável à solução do dissenso registral em discussão, o princípio da proporcionalidade “pode operar, também, no sentido de permitir que o juiz gradue o peso da norma, em determinada incidência, de modo a não permitir que ela produza um resultado indesejado pelo sistema, fazendo assim a justiça do caso concreto.”[19]

Trata-se de apontamento em plena conformidade com a flexibilização, com a promovida mitigação da especialidade objetiva e a ponderação efetivada, própria do juízo prudencial, de natureza prática, da razão prática característica da qualificação registral, juízo pautado e orientado pelas circunstâncias concretas.[20]

A proporcionalidade, compreendida por Humberto Ávila como postulado normativo aplicativo, uma metanorma, é vocacionada justamente a orientar a aplicação de outras normas, institui critérios de aplicação de outras normas, presta-se a solucionar questões que surgem com a aplicação do Direito[21], aqui, a calibrar o controle da especialidade objetiva em ordem a tutelar a segurança jurídica, sem comprometer o controle do trato sucessivo e da disponibilidade.

Diante do exposto, pelo meu voto, dou provimento à apelação e, julgando improcedente a dúvida, determino o registro do título de fls. 37-50, do instrumento particular objeto do pacto locatício, prenotado sob o n.º 138267.

FRANCISCO LOUREIRO

Corregedor Geral da Justiça e Relator

Notas:

[1] Orlando Gomes. Contratos. 26.ª ed. Atualizada por Antonio Junqueira de Azevedo e Francisco Paulo de Crescenzo Marino. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 335.

[2] Cf., v.g., REsp n.º 1.269.476/SP, rel. Min. Nancy Andrighi, j. 5.2.2013, AgRg no Agravo em REsp n.º 592.939/SP, rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, j. 3.2.2015, e AgRg nos EDcl no REsp n.º 1.322.238/DF, rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, j. 23.6.2015.

[3] A lei do inquilinato comentada: artigo por artigo. 13.ª ed. Atualizada por Beatriz Capanema Young. Rio de Janeiro: Forense, 2021, p. 183.

[4] Negócio jurídico: existência, validade e eficácia. 4.ª ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 57.

[5] Art. 167. No Registro de Imóveis, além da matrícula, serão feitos: (…)

II –  a averbação: (…)

16) do contrato de locação, para os fins de exercício de direito de preferência;

[6] Art. 33. O locatário preterido no seu direito de preferência poderá reclamar do alienante as perdas e danos ou, depositando o preço e demais despesas do ato de transferência, haver para si o imóvel locado, se o requerer no prazo de seis meses, a contar do registro do ato no cartório de imóveis, desde que o contrato de locação esteja averbado pelo menos trinta dias antes da alienação junto à matrícula do imóvel.

[7] Art. 167. No Registro de Imóveis, além da matrícula, serão feitos:

I –  o registro: (…)

3) dos contratos de locação de prédios, nos quais tenha sido consignada cláusula de vigência no caso de alienação da coisa locada;

[8] nunciar o contrato, com o prazo de noventa dias para a desocupação, salvo se a locação for por tempo determinado e o contrato contiver cláusula de vigência em caso de alienação e estiver a

[9] : Marcial Pons, 2013, p. 157-158.

[10] Art. 576. Se a coisa for alienada durante a locação, o adquirente não ficará obrigado a respeitar o contrato, se nele não for consignada a cláusula da sua vigência no caso de alienação, e não constar de registro.

§ 1.º O registro a que se refere este artigo será o de Títulos e Documentos do domicílio do locador, quando a coisa for móvel; e será o Registro de Imóveis da respectiva circunscrição, quando imóvel.

[11] Apelação Cível n.° 0018645-08.2012.8.26.0114, Des. Renato Nalini, j. 26.9.2013, e Apelação Cível n.º 1092648-36.2024.8.26.0100 , de minha relatoria, j. 16.12.2024.

[12] Parecer n.º 206/2013-E, aprovado pelo Des. Renato Nalini.

[13] A locação de imóvel urbano e o registro de imóveis. In: Locações: aspectos relevantes, aplicação do novo Código Civil. Casconi, Francisco Antonio; Amorim, José Roberto Neves (coord.). São Paulo: Editora Método, 2004. p. 123-148.

[14] Registro de Imóveis. 2.ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1977, p. 148.

[15] Cf. Afrânio de Carvalho. Op. cit., p. 152.

[16] Sobre a qualificação no registro de imóveis. In: Revista de Direito Imobiliário. n. 29, p. 33-72, janeiro-junho 1992. p. 41 e 52.

[17] Tratado de Registros Públicos: Registro Civil das Pessoas Jurídicas, Registro de Títulos e Documentos e Registro de Imóveis. 5.ª ed. Rio de Janeiro: Livraria Freitas Bastos, 1962, p. 346. v. II.

[18] Sobre o tema, cf. Luís Roberto Barroso. Curso de Direito Constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 8.ª ed. São Paulo: Saraiva, 2019, p. 249-255 e 511-512.

[19] Op. cit., p. 292.

[20] A respeito do tema, cf. Ricardo Dip. Sobre a qualificação no registro de imóveis. In: Revista de Direito Imobiliário. n. 29, p. 33-72, janeiro-junho 1992. p. 40-42.

[21] Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 12.ª ed. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 134-135, 145-149 e 173-188.

(DJe de 07.07.2025 – SP)