CSM|SP: Registro de Imóveis – Dúvida Registrária – Carta de Adjudicação – Partilha com Cessão de Direitos Hereditários – Inexistência de Partilha Per Saltum – Tributos Quitados – Qualificação Limitada do Título Judicial – Exigência de Documentos de Falecidos há décadas – Impossibilidade – Exigências afastadas – Registro determinado.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Cível nº 1006641-72.2022.8.26.0565, da Comarca de São Caetano do Sul, em que é apelante DOUGLAS STRUFALDI CAETANO, é apelado 1º OFICIAL DE REGISTRO DE IMÓVEIS E ANEXOS DA COMARCA DE SÃO CAETANO DO SUL.
ACORDAM, em Conselho Superior da Magistratura do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão: “Deram provimento ao recurso. V. U.”, de conformidade com o voto do Relator, que integra este acórdão.
O julgamento teve a participação dos Exmos. Desembargadores FERNANDO TORRES GARCIA (PRESIDENTE TRIBUNAL DE JUSTIÇA) (Presidente), BERETTA DA SILVEIRA (VICE PRESIDENTE), VICO MAÑAS (DECANO), TORRES DE CARVALHO(PRES. SEÇÃO DE DIREITO PÚBLICO), HERALDO DE OLIVEIRA (PRES. SEÇÃO DE DIREITO PRIVADO) E CAMARGO ARANHA FILHO(PRES. SEÇÃO DE DIREITO CRIMINAL).
São Paulo, 11 de junho de 2025.
FRANCISCO LOUREIRO
Corregedor Geral da Justiça e Relator
APELAÇÃO CÍVEL nº 1006641-72.2022.8.26.0565
Apelante: Douglas Strufaldi Caetano
Apelado: 1º Oficial de Registro de Imóveis e Anexos da Comarca de São Caetano do Sul
VOTO Nº 43.819
Direito civil – Apelação em dúvida registrária – Registro de imóveis – Recurso provido.
I. Caso em Exame
1. Apelação interposta contra sentença que manteve a recusa ao registro da carta de adjudicação dos bens deixados por casal falecido na década de setenta. O apelante alega ter comprovado o recolhimento dos tributos devidos e requer a improcedência da dúvida.
II. Questão em Discussão
2. A questão em discussão consiste em verificar (i) a ocorrência de partilha per saltum, sem pagamento dos tributos relativos a cada sucessão e (ii) a insuficiência de dados qualificativos dos falecidos para emissão da Declaração sobre Operação Imobiliária (DOI).
III. Razões de Decidir
3. Não há partilha per saltum, pois os herdeiros descrevem e detalham, embora em partilha única, de modo adequado a cadeia sucessória e a atribuição dos bens imóveis aos adjudicatários.
4. Diferenciação entre duas categorias jurídicas absolutamente distintas: a) sucessão por transmissão; b) cessão de direitos hereditários.
5.Cessão de direitos hereditários sobre bem singular, embora ineficaz frente aos demais herdeiros, conta com a anuência destes e pode ser formalizada por ato de registro único. Cessionário ingressa nos autos e adjudica diretamente para si o imóvel objeto da cessão.
6.A qualificação do título judicial é limitada, pois não é dado ao registrador reapreciar o mérito de decisão proferida na esfera jurisdicional.
7.A questão tributária está resolvida, com o recolhimento dos tributos já certificado nos autos. A exigência de documentos complementares é injustificada.
8.A apresentação de RG e CPF de falecidos há cinquenta anos é inviável, não podendo ser óbice ao registro do título.
IV. Dispositivo e Tese
9. Recurso provido.
Tese de julgamento: 1. A partilha foi realizada adequadamente e homologada na esfera judicial. 2. A qualificação do título judicial não pode entrar no mérito nem rediscutir o acerto da decisão jurisdicional. 3. A exigência de documentos de pessoas falecidas há décadas é inviável.
Jurisprudência Citada:
– CSM, Apelação n° 0001717-77.2013.8.26.0071, Rel. Des. José Renato Nalini, 10/12/2013.
– CSM, Apelação n° 1039088-53.2022.8.26.0100, Rel. Des. Fernando Antônio Torres Garcia, j. em 29/6/2023.
– CSM, Apelação n° 0039080-79.2011.8.26.0100, Rel. Des. José Renato Nalini, 20/9/2012.
Trata-se de apelação interposta por Douglas Strufaldi Caetano contra a r. sentença de fls. 135/136, proferida pelo MM. Juiz Corregedor Permanente do 1º Registro de Imóveis e Anexos de São Caetano do Sul, que manteve a recusa ao registro da carta de adjudicação extraída dos autos do arrolamento dos bens deixados por José Caetano Ama e Carmem Fernandes Ibana, que tramitou sob nº 1.690/74 perante a 3ª Vara da Comarca de São Caetano do Sul.
O apelante sustenta, em síntese, ter comprovado nos autos o recolhimento dos tributos exigidos à época do arrolamento de bens. Alega, ainda, que, diante da ausência de elementos suficientes para a emissão de guia de recolhimento, requereu, de forma alternativa, a possibilidade de quitação de eventuais tributos devidos por meio de guia a ser expedida pelo Oficial de Registro de Imóveis, pedido que não foi apreciado na sentença recorrida. Pede, ao final, a reforma da sentença para que sejam declarados quitados os tributos ou, alternativamente, que o Oficial de Registro emita as guias de recolhimento (157/167).
A Procuradoria de Justiça manifestou-se pelo não provimento do recurso (fls. 196/198).
É o relatório.
De acordo com a carta de adjudicação extraída do arrolamento dos bens deixados por José Caetano Ama e Carmem Fernandes Ibana e cuja expedição foi determinada em 1983 (fls. 74), os falecidos deixaram cinco filhos vivos (Francisco, José Caetano, Antonia, Diomar e Nilda – fls. 28/30) e uma filha pré-morta (Mônica – fls. 30), a qual, por sua vez, deixou quatro filhos (Pedro, Aparecida, Elizabeth e Wilson – fls. 30/32).
Ainda de acordo com o título judicial, por meio de “escrituras públicas os herdeiros filhos e netos resolveram proceder à cessão de direitos hereditários a que tinham direito” (fls. 34), de forma que um imóvel foi atribuído a Francisco, herdeiro filho, e outro a Ézio, neto dos falecidos e filho da herdeira Antonia.
Em relação ao imóvel atribuído a Francisco e sua esposa (matrícula nº 13.527 do 1º Registro de Imóveis de São Caetano do Sul), o registro da carta de adjudicação foi efetuado em abril de 1993 (fls. 101/102).
Já o registro na matrícula nº 43.501 do 1º Registro de Imóveis de São Caetano do Sul, consoante nota devolutiva (fls. 6/12) e suscitação de dúvida (fls. 1/4), foi negado por dois motivos: 1) ocorrência de partilha per saltum, sem prova do pagamento dos tributos relativos a cada sucessão; 2) insuficiência de dados qualificativos de José Caetano Ama e Carmen Fernandes Ibana, ambos falecidos, o que inviabiliza a emissão da Declaração sobre Operação Imobiliária (DOI).
Mantidas as exigências pelo MM. Juiz Corregedor Permanente (fls. 135/136), o interessado interpôs apelação.
E o recurso deve ser provido.
Partilha per saltum não há.
Com efeito, a análise do título judicial, em especial das primeiras declarações (fls. 28/38), demonstra que os herdeiros, em inventário conjunto dos bens deixados pelo casal José Caetano e Carmen, relataram adequadamente de que modo os dois bens imóveis partilháveis foram atribuídos aos adjudicatários.
Houve indicação das datas dos óbitos de José Caetano e Carmen; arrolamento de todos os herdeiros dos falecidos; e referência às cessões, que contaram com a anuência de todos os herdeiros e por meio das quais os imóveis foram transferidos aos adjudicatários.
Sobre o descabimento de registros sequenciais da partilha e da cessão de direitos hereditários sobre bem singular, cito parecer por mim aprovado em 15 de fevereiro de 2024:
“REGISTRO DE IMÓVEIS – Escrituras de cessão de bem individualizado e de inventário extrajudicial – Registros sequenciais da partilha e da cessão – lnsurgência a respeito do registro da partilha entre os herdeiros – Cabimento – Cessões sobe imóvel singular realizadas antes das partilhas e confirmadas por ocasião da lavratura das escrituras de inventário – Registros sequenciais que modificam a essência dos títulos apresentados – Adjudicação de bem diretamente ao cessionário que decorre da interpretação dos títulos – Determinação de cancelamento das inscrições realizadas, de realização de novos registros e de devolução ao usuário dos valores cobrados a maior – Parecer pelo provimento do recurso” (CGJ/SP – Recurso Administrativo nº 1123608-09.2023.8.26.0100).
É preciso diferenciar duas situações jurídicas absolutamente distintas, a saber: a) partilha per saltum, que ocorre somente quando existe a sucessão por transmissão; b) cessão de direitos hereditários.
A sucessão por transmissão, na lição de Caio Mário da Silva Pereira, se dá na seguinte situação: “Pode ocorrer que um herdeiro faleça após a morte do sucedendo. Neste caso, aos herdeiros é deferida a herança por direito de transmissão – iure transmissionis – a eles transferindo-se inclusive o direito de aceitação, se esta já não se tiver efetuado. Os que adquirem por direito de transmissão ocupam o lugar daquele a quem a herança fora transferida, mas que não pudera tocá-la, alcançado pela morte” (Instituições de Direito Civil, Forense, 15a. Edição, vil VI, p. 90). Dizendo de outro modo, a sucessão por transmissão é filha dileta do direito de saisine, positivado no art. 1784 do Código Civil. O herdeiro recolhe de imediato a herança e, ao falecer em momento posterior, inaugura sua própria linha sucessória. Este é o cenário em que pode ocorrer a sucessão per saltum, sem especificação ou detalhamento das duas sucessões, ou, ainda, sem o recolhimento de tributos de duas mortes.
A sucessão por transmissão é inconfundível com a cessão de direitos hereditários. Nesta, o herdeiro recolhe a herança por força da saisine (art. 1784 CC) e cede por negócio jurídico gratuito ou oneroso seus direitos hereditários a terceiro, que se sub-roga um sua posição patrimonial e adjudica para si a herança, nos próprios autos do inventário.
Não se cogita, portanto, da figura da partilha per saltum em situação de cessão de direitos hereditários: a partilha é uma só, com a peculiaridade de os direitos que seriam atribuídos ao herdeiro cedente são conferidos ao cessionário.
É exatamente o caso dos autos.
A questão tributária também já está resolvida. Tanto é assim que, após o recolhimento dos tributos decorrentes das sucessões causa mortis e da cessão (fls. 64/70), foi certificado nos autos, no ano de 1983, o decurso do “prazo sem que nada fosse apresentado a esta Serventia pela Fazenda do Estado” (fls. 74). Se o próprio ente tributante, há mais de quarenta anos, concordou com o recolhimento efetuado, não se justifica, agora, a determinação de apresentação de documentos complementares para este fim.
Nota-se que o registrador, na hipótese, foi além do que lhe é permitido no exame de qualificação de um título judicial. Isso porque, na esfera administrativa, tentou rediscutir questões já resolvidas na esfera judicial e transitada em julgado há anos.
Sobre o tema, conveniente a citação de precedente deste Conselho, relatado pelo Des. José Renato Nalini, em que são lembrados os entendimentos de Afrânio de Carvalho e de Narciso Orlandi Neto:
“A qualificação do Oficial de Registro de Imóveis, ao questionar a título judicial, ingressou no mérito e no acerto da r. sentença proferida no âmbito jurisdicional, o que se situa fora do alcance da qualificação registral por se tratar de elemento intrínseco do título. Assim não fosse, estar-se-ia permitindo que a via administrativa reformasse o mérito da jurisdicional.
É nesse sentido a doutrina de Afrânio de Carvalho:
“Assim como a inscrição pode ter por base atos negociais e atos judiciais, o exame da legalidade aplica- se a uns e a outros. Está visto, porém, que, quando tiver por objeto atos judiciais, será muito mais limitado, cingindo-se à conexão dos respectivos dados com o registro e à formalização instrumental. Não compete ao registrador averiguar senão esses aspectos externos dos atos judiciais, sem entrar no mérito do assunto neles envolvido, pois, do contrário, sobreporia a sua autoridade à do Juiz” (Registro de Imóveis, Forense, 3ª ed., pág. 300).
Na mesma direção, a r. decisão da E. 1ª Vara de Registros Públicos, da lavra do então MM. Juiz Narciso Orlandi Neto:
“Não compete ao Oficial discutir as questões decididas no processo de inventário, incluindo a obediência ou não às disposições do Código Civil, relativas à ordem da vocação hereditária (artº 1.603). No processo de dúvida, de natureza administrativa, tais questões também não podem ser discutidas. Apresentado o título, incumbe ao Oficial verificar a satisfação dos requisitos do registro, examinando os aspectos extrínsecos do título e a observância das regras existentes na Lei de Registros Públicos. Para usar as palavras do eminente Desembargador Adriano Marrey, ao relatar a Apelação Cível 87-0, de São Bernardo do Campo, “Não cabe ao Serventuário questionar ponto decidido pelo Juiz, mas lhe compete o exame do título à luz dos princípios normativos do Registro de Imóveis, um dos quais o da continuidade mencionada no artº 195 da Lei de Registros Públicos. Assim, não cabe ao Oficial exigir que este ou aquele seja excluído da partilha, assim como não pode exigir que outro seja nela incluído. Tais questões, presume-se, foram já examinadas no processo judicial de inventário” (Processo nº 973/81)” (CSM/SP – apelação nº 00001717-77.2013.8.26.0071, j. em 10/12/2013).
O segundo óbice também não se sustenta.
O Oficial afirma não ser possível a emissão da Declaração sobre Operação Imobiliária (DOI) sem os números de RG e CPF dos inventariados José Caetano Ama e Carmen Fernandes Ibana. Conforme certidões de óbito de fls. 24 e 40, Francisco faleceu em 1974 e Carmen, em 1975.
Há de se convir que a apresentação de RG e CPF de pessoas falecidas há cinquenta anos é inviável, não podendo essa falta se tornar óbice ao registro do título.
No sentido de relevar a apresentação de documentos quando sua obtenção é impossível, cito os seguintes precedentes deste Colendo Conselho Superior da Magistratura:
“Registro de imóveis – Escritura pública de doação – Doadores não domiciliados no Brasil – CPF e CNPJ desconhecidos – Exigência afastada – Impossibilidade de cumprimento pelos apresentantes – Mitigação do princípio da especialidade subjetiva – Dúvida improcedente – Recurso provido” (CSM, Apelação n° 1039088-53.2022.8.26.0100, Rel. Des. Fernando Antônio Torres Garcia, j. em 29/6/2023).
“REGISTRO DE IMÓVEIS – Carta de adjudicação – Promitente vendedor falecido – CPF/MF inexistente – Exigência afastada – Impossibilidade de cumprimento pelo apresentante – Princípio da segurança jurídica – Princípio da razoabilidade – Dúvida improcedente – Recurso provido” (CSM, Apelação n° 0039080-79.2011.8.26.0100, Rel. Des. José Renato Nalini, 20/9/2012).
Note-se, por oportuno, que os documentos de RG e CPF exigidos pelo Oficial serviriam para emissão de DOI (fls. 1/2). Assim, dispensada a apresentação dos documentos, caberá ao Oficial emitir a Declaração sem esses dados; não sendo isso possível, restará justificada a não emissão nesta hipótese específica.
É o caso, portanto, de afastamento das exigências apresentadas pelo Oficial e mantidas pelo MM. Juiz Corregedor Permanente na r. sentença proferida.
Ante o exposto, dou provimento à apelação para julgar improcedente a dúvida e determinar o registro da carta de adjudicação.
FRANCISCO LOUREIRO
Corregedor Geral da Justiça e Relator
(DJe de 24.06.2025 – SP)