CSM|SP: Direito de família – Escritura Pública de Instituição de Bem de Família – Registro recusado – Dúvida julgada procedente – Apelação provida.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Cível nº 1001762-42.2024.8.26.0471, da Comarca de Porto Feliz, em que são apelantes ANA TEREZA BARDELLA DELNERI e RICARDO LOPES DELNERI, é apelado OFICIAL DE REGISTRO DE IMÓVEIS E ANEXOS DA COMARCA DE PORTO FELIZ.
ACORDAM, em Conselho Superior da Magistratura do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão: “Deram provimento à apelação para julgar improcedente a dúvida e determinar o registro do título, nos termos do voto do Desembargador Relator, v.u.”, de conformidade com o voto do Relator, que integra este acórdão.
O julgamento teve a participação dos Exmos. Desembargadores FERNANDO TORRES GARCIA (PRESIDENTE TRIBUNAL DE JUSTIÇA) (Presidente), BERETTA DA SILVEIRA (VICE PRESIDENTE), DAMIÃO COGAN (DECANO), TORRES DE CARVALHO(PRES. SEÇÃO DE DIREITO PÚBLICO), HERALDO DE OLIVEIRA (PRES. SEÇÃO DE DIREITO PRIVADO) E CAMARGO ARANHA FILHO(PRES. SEÇÃO DE DIREITO CRIMINAL).
São Paulo, 13 de maio de 2025.
FRANCISCO LOUREIRO
Corregedor Geral da Justiça e Relator
APELAÇÃO CÍVEL nº 1001762-42.2024.8.26.0471
Apelantes: Ana Tereza Bardella Delneri e Ricardo Lopes Delneri Apelado: Oficial de Registro de Imóveis e Anexos da Comarca de Porto Feliz
VOTO Nº 43.774
Direito de família – Escritura Pública de Instituição de Bem de Família – Registro recusado – Dúvida julgada procedente – Apelação provida.
I. Caso em Exame.
1. O Oficial condicionou o registro da escritura de instituição de bem de família ao prévio cancelamento da propriedade fiduciária. A dúvida suscitada foi julgada procedente pelo MM. Juízo Corregedor Permanente. Inconformados, os interessados, cônjuges, titulares de direitos reais de aquisição, direitos penhoráveis, recorreram. Alegam que a alienação fiduciária não é óbice à proteção pretendida.
II. Questão em Discussão.
2. A admissibilidade da instituição de bem de família sobre imóvel objeto de alienação fiduciária, à luz da natureza da propriedade fiduciária e do direito real de aquisição do devedor fiduciante.
III. Razões de Decidir.
3. A propriedade fiduciária tem natureza jurídica de garantia real, por força de expressa previsão legal (art. 1367 CC). É afetada apenas à satisfação de um crédito. Não se equipara ao direito de propriedade, tanto assim que, solvido o crédito, retorna ao domínio do devedor fiduciante, independentemente de novo negócio jurídico. 4. O Código Civil não limita a constituição de bem de família ao titular da propriedade plena. O direito do devedor fiduciante tem a natureza jurídica de direito real de aquisição, então dotado de valor econômico, penhorável por terceiros. Do mesmo modo que não há óbice à instituição de bem de família voluntário sobre bem imóvel gravado por hipoteca, também se admite que o devedor fiduciante institua o bem de família sobre os seus direitos reais aquisitivos. Evidente que a inalienabilidade do bem de família é ineficaz frente ao credor fiduciário, em razão da garantia anteriormente constituída.
IV. Dispositivo.
5. Recurso provido, dúvida julgada improcedente, registro determinado.
Tese de julgamento:
1. A propriedade fiduciária não impede a instituição de bem de família pelo devedor fiduciante.
2. A proteção do bem de família não é oponível ao credor fiduciário.
Legislação citada: CC, arts. 1.231, 1.367, 1.368-B, 1.714 e 1.715.
Ao suscitar a dúvida, requerida pelos interessados Ana Tereza Bardella Delnéri e Ricardo Lopes Delnéri (fls. 12-18), o Oficial do RI de Porto Feliz, amparado na nota devolutiva de fls. 4, que condicionou o registro da escritura de instituição de bem de família de fls. 25-30, título prenotado sob o n.º 175.617, ao cancelamento da alienação fiduciária registrada na matrícula n.º 57.260, afirmou que a posição de proprietário é pressuposto da proteção patrimonial pretendida (fls. 1-3).
A r. sentença de fls. 62-65 confirmou a desqualificação registral, reportando-se ao princípio da continuidade e da disponibilidade, em prestígio assim da exigência formulada. Irresignados, os interessados apelaram. Em suas razões de fls. 76-89, argumentaram que, titulares de direitos reais aquisitivos sobre o imóvel, direitos penhoráveis, fazem jus à proteção própria do bem de família, dependente da inscrição recusada. Aguardam, portanto, o provimento da apelação.
A d. Procuradoria Geral de Justiça, em seu parecer de fls. 113-114, opinou pelo desprovimento do recurso.
É o relatório.
O dissenso versa sobre o registro do título de fls. 25-30, escritura de instituição de bem de família, inscrição recusada pelo Oficial em juízo negativo de qualificação registral confirmado pela r. sentença de fls. 62-65, porque, efetivado fosse, violaria os princípios da continuidade e da disponibilidade, em atenção à propriedade fiduciária sob titularidade do Banco Santander (Brasil) S/a, objeto do r. 6 da matrícula n.º 57.260 do RI de Porto Feliz (fls. 8-11).
Os recorrentes, cônjuges, formando com os seus filhos uma família, podem destinar parte de seu patrimônio, respeitado o teto de um terço do patrimônio líquido, in casu, então, os seus direitos reais de aquisição sobre o imóvel matriculado sob o n.º 57.260 do RI de Porto Feliz, propriedade sob condição suspensiva, para instituir bem de família, bem de família convencional, voltado à (com potencial para servir de residência familiar, dependente de registro, inscrição constitutiva devida.
A propriedade fiduciária pertencente ao ente financeiro, propriedade sob condição resolutiva, não representa óbice ao registro, à proteção buscada, à blindagem patrimonial em relação a dívidas futuras, ao resguardo de um patrimônio mínimo, estado mínimo de subsistência, ato de planejamento familiar afetado ao direito de moradia. Aliás, assim decidiu este C. Conselho Superior da Magistratura, na Apelação Cível n.º 1146173-30.2024.8.26.0100, de minha relatoria, j. 13.2.2025, in verbis:
…
Preceitua o art. 1.367 do Código Civil:
“Art. 1.367. A propriedade fiduciária em garantia de bens móveis ou imóveis sujeita-se às disposições do Capítulo I do Título X do Livro III da Parte Especial deste Código e, no que for específico, à legislação especial pertinente, não se equiparando, para quaisquer efeitos, à propriedade plena de que trata o art. 1.231.”
O artigo acima transcrito dispõe de modo absolutamente claro o que já afirmava a doutrina, ou seja, que a propriedade fiduciária, malgrado o seu nome (propriedade), tem a natureza jurídica de direito real de garantia, e, por consequência, é regulada e produz os seus efeitos de tal categoria.
Ainda que haja especificidades que concedem ao credor fiduciário maiores garantias do que aquelas advindas do penhor e da hipoteca – não sujeição a concurso de credores, por exemplo –, a natureza da propriedade fiduciária é inegavelmente de garantia real, com a vinculação do bem ao cumprimento de determinada obrigação. A diferença é a de que se trata de garantia sobre coisa própria e não sobre coisa alheia, o que subtrai a coisa do concurso de credores. Trata-se de verdadeiro patrimônio de afetação que não retira do devedor fiduciante os poderes de usar e fruir da coisa.
O parágrafo único do art. 1.368-B do Código Civil, do mesmo modo, revela que a propriedade fiduciária de propriedade plena nada tem, equiparando-se quase completamente aos direitos reais de garantia. Não é por outra razão que proprietário fiduciário somente “passa a responder pelo pagamento dos tributos sobre a propriedade e a posse, taxas, despesas condominiais e quaisquer outros encargos, tributários ou não, incidentes sobre o bem objeto da garantia” a partir da data em que, por qualquer modo, se tornar proprietário pleno do bem.
Assim, no caso em tela, embora tenha o credor fiduciário a titularidade da propriedade em caráter resolúvel, se investe somente de um direito real de garantia.
Por sua vez, aos devedores fiduciantes, além da posse direta e dos poderes de usar e fruir da coisa, é conferido direito real de aquisição (art. 1.368-B do CC). Tal direito real de aquisição tem valor patrimonial e pode, em tese, ser penhorado por terceiros. Caso isso ocorra, os direitos aquisitivos serão levados à hasta pública e o arrematante se sub-roga na posição jurídica do devedor. É contra tal possibilidade que a devedora fiduciante pediu instituiu o bem de família convencional.
Na condição de devedora fiduciante juntamente com seu marido …, titular de direito real de aquisição, portanto, pode a apelante instituir bem de família sobre o imóvel gravado por direito real de garantia.
Destaque-se, ainda, que o art. 1.714 do CC, ao preceituar que o bem de família voluntário constitui-se pelo registro de seu título no Registro de Imóveis, não limita essa prerrogativa ao titular da propriedade plena do bem. Imóveis gravados por direitos reais sobre coisa alheia podem ser objeto de instituição de bem de família. Tome-se como exemplo o imóvel hipotecado, sobre o qual o proprietário e devedor pode almejar que terceiros não possam penhorá-lo. É evidente que a instituição de bem de família, em tal hipótese, não produz efeitos em face do credor hipotecário, mas sim de terceiros e futuros credores.
Autoriza-se, do mesmo modo, que o devedor fiduciante institua o bem de família sobre o bem cujos direitos aquisitivos dos quais é titular. A particularidade é que os efeitos do bem de família recairão, neste momento, sobre os direitos aquisitivos, e não sobre a propriedade plena …
Pode-se questionar acerca do que ocorrerá com a instituição do bem de família se a obrigação garantida pela propriedade fiduciária for extinta pelo cumprimento da obrigação. Sabido que a propriedade garantida é resolúvel. Ocorrendo o implemento da condição resolutiva, consistente do pagamento, a garantia se extingue pela resolução da propriedade. Independentemente de novo negócio jurídico, com a prova do pagamento a propriedade retorna por inteiro à titularidade do ex-devedor fiduciante. O instituto do bem de família, de igual modo, incidirá então sobre a propriedade plena, independentemente de nova instituição.
A razão de tal entendimento é simples: o direito real aquisitivo do devedor fiduciante já se encontra protegido pela instituição do bem de família convencional. Tal direito aquisitivo, é bom lembrar, é propriedade em potência, sujeito apenas ao implemento de condição suspensiva, consistente da solução da obrigação garantida.
A condição resolutiva da propriedade do credor fiduciário tem a face inversa de condição suspensiva do devedor fiduciante.
É por isso que o direito aquisitivo do devedor fiduciante, quando se converte automaticamente em propriedade pelo pagamento da obrigação garantida, carrega consigo a proteção do bem de família convencional anteriormente constituído.
À evidência, a proteção advinda do bem de família cuja constituição ora se autoriza não será oponível ao credor fiduciário. E essa ressalva explica-se tanto pelo fato de a dívida garantida pela alienação fiduciária estar devidamente inscrita na matrícula do bem …, como pela interpretação a contrario sensu do art. 1.715 do Código Civil. Ora, se “o bem de família é isento de execução por dívidas posteriores à sua instituição”, responde normalmente por dívidas constituídas em data anterior. (sublinhei)
Nessa senda, impõe-se a reforma da r. sentença.
Ante o exposto, pelo meu voto, dou provimento à apelação para julgar improcedente a dúvida e determinar o registro do título de fls. 25-30, escritura de instituição de bem de família, a ser efetivado na matrícula nº 57.260 do RI de Porto Feliz.
FRANCISCO LOUREIRO
Corregedor Geral da Justiça e Relator
(DJe de 20.05.2025 – SP)