2ª VRP|SP: Ata Notarial para Usucapião – Gratuidade na via extrajudicial – Princípio da Legalidade – Impossibilidade – Escritura de Sobrepartilha que depende dos requisitos para concessão.

Processo 1176966-83.2023.8.26.0100  

Pedido de Providências

Tabelionato de Notas

M.M.F.N.Y.

V.D.Y.

A.A.Y.C.

T.Y.Y.

Juiz(a) de Direito: LETICIA DE ASSIS BRUNING

VISTOS,

Cuida-se de representação formulada por M. M. F. N. Y. e outros, que se insurgem quanto à negativa de concessão do benefício da gratuidade para a lavratura de Escritura Pública de Sobrepartilha e Ata Notarial de Usucapião. Os autos foram instruídos com os documentos de fls. 15/63.

O Senhor Notário prestou esclarecimentos, fundamentando os termos de sua negativa (fls. 64/69).

A parte Representante retornou aos autos para reiterar os termos de seu protesto inicial (fls. 72/80).

O Ministério Público ofertou parecer pelo arquivamento dos autos, ante a legalidade da atuação do Senhor Tabelião (fls. 83/84).

É o relatório. Decido.

Trata-se de pedido de providências instaurado a partir de representação relativa à negativa de concessão do benefício da gratuidade para a lavratura de Escritura Pública de Sobrepartilha e Ata Notarial de Usucapião.

O Senhor Titular veio aos autos para esclarecer que, primeiramente, não houve negativa formal de sua parte, uma vez que os interessados não protocolaram pedido do benefício perante sua serventia, de modo que não pode avaliar a real situação de miserabilidade das partes.

Contudo, já em manifestação de mérito, apontou o Sr. Tabelião que não há norma legal que enseje o deferimento da gratuidade no caso de Ata Notarial de Usucapião e que, no caso da Sobrepartilha, deverá haver minuciosa conferência da miserabilidade dos interessados, o que não foi realizado.

A seu turno, a parte Representante, instada a se manifestar quanto aos esclarecimentos prestados, reiterou os termos de sua insurgência inicial.

Pois bem.

De início, destaco que a Ata Notarial não resta contemplada por qualquer norma que refira o benefício da gratuidade. Se o caso, o pedido deve ser levado às vias ordinárias. Destaco que, nesse referido caso, não se pode deferir a gratuidade por analogia a outras normas ou a partir de interpretação extensiva de dispositivo legal, certo que os Titulares de Delegação e essa Corregedoria Permanente estão adstritos à legalidade em sentido estrito.

Igualmente, não há indicação nos autos de que haja mandado judicial determinando a lavratura dos atos de forma gratuita.

Por fim, resta salientar que não há dúvidas da previsão legal de gratuidade na lavratura de Escritura Pública de inventário, partilha, separação e divórcio consensuais aos reconhecidamente pobres, nos termos da mencionada Resolução CNJ 35/2007 e Resolução CNJ 326/2020.

Por outro lado, sabidamente, não há uma norma jurídica objetiva que fixe um teto de rendas para concessão do benefício da gratuidade, competindo ao serviço extrajudicial o exame de caso a caso de molde a estabelecer um critério igualitário.

Com efeito, é devidamente assentado na doutrina e nas normas administrativas que regem a matéria, bem como em firmes precedentes deste Juízo Corregedor Permanente (p. ex.: 0045661-95.2020.8.26.0100; 0013594-43.2021.8.26.0100 e 1024142-76.2022.8.26.0100) que a declaração de pobreza não pode ser aceita por si só, devendo ser contextualizada mediante a apresentação de documentos comprobatórios da alegada miserabilidade, nos termos do item 80.2, do Capítulo XVI, das Normas de Serviço da E. Corregedoria Geral da Justiça.

Nesse sentido, a declaração acerca da situação jurídica de pobreza não tem caráter absoluto, portanto, observado o respeito à intimidade, deve a Serventia Extrajudicial solicitar maiores esclarecimentos acerca dos rendimentos dos requerentes. Do contrário, a afirmação seria absoluta.

No mais, o deferimento do benefício da gratuidade, de maneira indiscriminada, contemplando aqueles que não são, de fato, pobres, na acepção jurídica do termo, traz prejuízos aos cofres públicos, afetando negativamente o cidadão que realmente necessita do amparo do poder estatal.

O item 80.2, do Capítulo XVI, das Normas de Serviço da E. Corregedoria Geral da Justiça, é claro ao afirmar a possibilidade de questionamento da declaração efetuada, ao deduzir que se o Tabelião de Notas, motivadamente, suspeitar da veracidade da declaração de miserabilidade, deverá comunicar o fato ao Juiz Corregedor Permanente, por escrito, com exposição de suas razões, para as providências pertinentes.

Ademais, em situação análoga, o disposto no item 3.1, Capítulo XVII, das Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça do Estado de São Paulo, ao referir o procedimento de habilitação para o casamento, indica a possibilidade de se averiguar o status de pobreza declarado, destacando-se, assim, o caráter não-absoluto de tal declaração.

3.1. Os reconhecidamente pobres, cujo estado de pobreza será comprovado por declaração do próprio interessado ou a rogo, sob pena de responsabilidade civil e criminal, estão isentos de pagamento de emolumentos pela habilitação de casamento, pelo registro e pela primeira certidão, assim como pelas demais certidões extraídas pelos Registros Civis das Pessoas Naturais, podendo o Oficial solicitar documentos comprobatórios em caso de dúvida quanto à declaração prestada.

Sem menos, Alberto Gentil aponta pela possibilidade e necessidade de verificação minuciosa da declaração de miserabilidade, nos seguintes termos:

“(…) entendemos que a melhor compreensão do termo “insuficiência de recursos para pagar as custas, as despesas e os honorários (…)” [CPC, art. 98] ainda é exigir da parte interessada na benesse legal a demonstração de insuficiência econômica para o custeio das despesas do processo e emolumentos. Desse modo, prestigiado o acesso efetivo à justiça na busca da concretização de direitos dos necessitados, ainda manteremos um sistema pautado na boa-fé objetiva e razoabilidade. Boa-fé objetiva, pois trata-se de comportamento leal da parte arcar com as despesas judiciais e extrajudiciais se possui patrimônio suficiente para tanto, ainda que tenha que se desfazer de parte dele. Afinal, prestado um serviço público que exige contrapartida, não se mostra razoável a concessão da gratuidade apenas pela falta de liquidez patrimonial do beneficiado. [Gentil, Alberto. Registros Públicos. – 2º ed. – Rio de Janeiro: Forense; MÉTODO, 2021. P. 53].

Na mesma senda direciona a jurisprudência dominante, a exemplo: (…) Com efeito, a gratuidade da justiça é devida apenas àqueles com comprovada insuficiência de recursos para pagar as custas, as despesas processuais e os honorários advocatícios, conforme vigente regramento do NCPC, art. 98. Mesmo na plena vigência da Lei 1.060/50, os requisitos ali estabelecidos eram avaliados à luz do que dispõe a CF – art. 5°, LXXIV, que determina que a assistência jurídica integral e gratuita é devida aos que efetivamente comprovarem insuficiência de recursos. Assim, é lícito ao Juízo tanto exigir a apresentação de documentos comprobatórios quanto denegar o beneficio se os elementos dos autos desde logo indicarem a ausência dos requisitos para a concessão do beneficio. No caso concreto, o que se verifica é que um dos agravantes tem valores expressivos em aplicações financeiras (fls. 155), marcadas pela fácil liquidez, situação a elidir a declaração de pobreza apresentada. Disso tudo decorre que os agravantes não são pobres na acepção juridica do termo, de modo que foi bem o juizo monocrático ao indeferir os beneficios da justiça gratuita. (…) (TJSP, Agravo de Instrumento 2118797- 42.2016.8.26.0000, 1ª C. de Direito Privado, Rel. Durval Augusto Rezende, j. 09.09.2016).

Em adição, sublinhe-se o caráter tributário dos emolumentos extrajudiciais. Sabidamente, as custas extrajudiciais são cobradas em razão do serviço prestado, de modo individualizado, com clara natureza tributária de taxa, não havendo compensação entre usuários ou partes. É por isso que a complementação do valor, conforme pretendido pelos nubentes, é inviável, haja vista a completa falta de previsão legal para tanto. Nesse sentido, o artigo 1º da Lei Estadual nº 11.331/2002 indica exatamente que o fato gerador do tributo é o serviço notarial ou registral prestado, individualizando-o: Artigo 1º – Os emolumentos relativos aos serviços notariais e de registro têm por fato gerador a prestação de serviços públicos notariais e de registro previstos no artigo 236 da Constituição Federal e serão cobrados e recolhidos de acordo com a presente lei e as tabelas anexas.

Na mesma toada, leciona Paulo de Barros Carvalho:

Anuncio, desde logo, que perante a realidade instituída pelo direito positivo atual, parece-me indiscutível a tese segundo a qual a remuneração dos serviços notariais e de registro, também denominada “emolumentos”, apresenta natureza específica de taxa. O presente tributo se caracteriza por apresentar, na hipótese da norma, a descrição de um fato revelador de atividade estatal (prestação de serviços notariais e de registros públicos), direta e especificamente dirigida ao contribuinte; além disso, a análise de sua base de cálculo exibe a medida da intensidade da participação do Estado, confirmando tratar-se da espécie taxa. (CARVALHO, Paulo de Barros. Natureza jurídica e constitucionalidade dos valores exigidos a título de remuneração dos serviços notariais e de registro. Parecer exarado na data de 05/06/2007, a pedido do Sindicato dos Notários e Registradores do Estado de São Paulo – SINOREG/SP. Disponível pelo site: https://www.Anoregsp.Org.Br/pdf/Parecer_PaulodeBarrosCarvalho.Pdf.).

Outro não, senão, é o entendimento jurisprudencial a respeito:

“DIREITO CONSTITUCIONAL E TRIBUTÁRIO. CUSTAS E EMOLUMENTOS: SERVENTIAS JUDICIAIS E EXTRAJUDICIAIS. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE DA RESOLUÇÃO Nº 7, DE 30 DE JUNHO DE 1995, DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO PARANÁ: ATO NORMATIVO. (…) 4. O art. 145 admite a cobrança de “taxas, em razão do exercício do poder de polícia ou pela utilização, efetiva ou potencial, de serviços públicos específicos e divisíveis, prestados ao contribuinte ou postos a sua disposição”. Tal conceito abrange não só as custas judiciais, mas, também, as extrajudiciais (emolumentos), pois estas resultam, igualmente, de serviço público, ainda que prestado em caráter particular (art. 236). Mas sempre fixadas por lei. No caso presente, a majoração de custas judiciais e extrajudiciais resultou de Resolução – do Tribunal de Justiça – e não de Lei formal, como exigido pela Constituição Federal. (…)” (ADI 1444, Relator Min. Sydney Sanches, Tribunal Pleno, julgado em 12/02/2003, DJ 11-04-2003).

Dessa maneira, ante ao caráter tributário dos emolumentos, não é permitido aos Delegatários Extrajudiciais, ou a esta Corregedoria Permanente, conceder qualquer desconto, isenção ou alteração de valores sem suporte em lei, conforme disposição expressa do artigo 150, § 6º, da Constituição Federal: Qualquer subsídio ou isenção, redução de base de cálculo, concessão de crédito presumido, anistia ou remissão, relativos a impostos, taxas ou contribuições, só poderá ser concedido mediante lei específica, federal, estadual ou municipal, que regule exclusivamente as matérias acima enumeradas ou o correspondente tributo ou contribuição, sem prejuízo do disposto no art. 155, § 2.º, XII, g.

Diante disso, no caso concreto, correto o Titular, de modo que não há que se falar em ilícito funcional ou falha na prestação do serviço extrajudicial ante a acertada negativa, que visa coibir concessões indevidas do benefício e garantir a manutenção da gratuidade para aqueles que efetivamente não tem condições de arcar com as custas e emolumentos dos atos extrajudiciais. Por conseguinte, a insurgência formulada pela parte Representante não pode prosperar.

Não havendo outras medidas de cunho administrativo a serem adotadas, determino o arquivamento dos autos. Ciência ao Senhor Titular e ao Ministério Público.

P.I.C.

(DJe de 19.03.2024 – SP)