Jurisprudência: Alegação de incapacidade x Fé pública.

JURISPRUDÊNCIA (Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul)
Ação anulatória de doação – Incapacidade – Autorização dos demais herdeiros – Doação inoficiosa – Ônus da prova – Escritura pública – Procuração por instrumento público – Presunção de veracidade – Tabelião – Fé pública – Falta de prova de incapacidade do doador no momento da doação – Incapacidade que não se presume – Desnecessidade de os demais herdeiros anuírem com a doação do patrimônio disponível feita pelos pais a um único herdeiro – Doação inoficiosa – Excesso à legítima que haveria de ser demonstrado – Ônus da prova – Art. 333, I, CPC – Negaram provimento. (Nota da Redação INR: ementa oficial)
EMENTA
AÇÃO ANULATÓRIA DE DOAÇÃO. INCAPACIDADE. AUTORIZAÇÃO DOS DEMAIS HERDEIROS. DOAÇÃO INOFICIOSA. ÕNUS DA PROVA. Escritura Pública. Procuração por instrumento público. Presunção de veracidade. Tabelião. Fé pública. Falta de prova de incapacidade do doador no momento da doação. Incapacidade que não se presume. Desnecessidade de os demais herdeiros anuírem com a doação do patrimônio disponível feita pelos pais a um único herdeiro. Doação inoficiosa. Excesso à legítima que haveria de ser demonstrado. Ônus da prova. Art. 333, I, CPC. Negaram provimento. (TJRS – Aci nº 70029143575 – Horizontina – 19ª Câm. Cível – Rel. Des. Carlos Rafael dos Santos Júnior – DJ. 09.06.2009).
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos os autos.
Acordam os Desembargadores integrantes da Décima Nona Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado, à unanimidade, negar provimento à apelação.
Custas na forma da lei.
Participaram do julgamento, além do signatário, os eminentes Senhores DES. JOSÉ FRANCISCO PELLEGRINI (PRESIDENTE) E DESA. MYLENE MARIA MICHEL.
Porto Alegre, 02 de junho de 2009.
DES. CARLOS RAFAEL DOS SANTOS JÚNIOR, Relator.
RALATÓRIO
DES. CARLOS RAFAEL DOS SANTOS JÚNIOR (RELATOR)
Trata-se de apelação interposta por HUGO VALTER KELM E OUTROS, inconformados com a sentença prolatada nos autos da AÇÃO DE ANULAÇÃO DE DOAÇÃO DE IMÓVEL ajuizada contra ÁUREA NÁDIA KELM E SUCESSORES DE ARNILDO ALBINO KELM.
Segundo a inicial, os autores são legítimos herdeiros de Albino Kelm e Leonora Kelm, ambos já falecidos. Relataram que no dia 04 de dezembro de 1992, por meio de escritura pública, seus pais doaram aos réus a nua propriedade do imóvel matrícula nº 9517 do Cartório de Registro de Imóveis de Horizontina, situado em Seção Enseadas, distrito de Maurício Cardoso, tendo os doadores reservado para si o usufruto vitalício.
Insurgiram-se, porque a doação ocorrera sem o seu conhecimento, sem a sua anuência e na mesma data do óbito do doador. Alegaram a nulidade do ato pela falta de discernimento do doador.
Os réus, na contestação, afirmaram que o doador tinha incapacidade de locomoção, mas não tinha incapacidade mental. Asseveraram que a doação foi de 50% dos bens, a qual foi feita a Arnildo Kelm, que era filho dos doadores, ou seja, foi doada a parte disponível do patrimônio. Afirmaram que os doadores eram proprietários de 228.355 m² da área e doaram 114.000m², isto é, menos da metade.
Mencionaram que se surpreenderam com a inércia dos autores. A procuração pública foi lavrada em 01/12/1992; a escritura pública de doação, lavrada no dia 04/12/1992, data em que faleceu o doador, às 22 horas. Em 29/12/2002, foi registrada a doação no álbum imobiliário; em 02/12/2004 faleceu a doadora, Leonora Jesse Kelm e em 01/12/2006, ocorreu o óbito do donatário, Arlindo Albino Kelm, tendo sido ajuizada a presente ação somente em 2008.
Houve produção de prova oral.
O Dr. Juiz de Direito julgou improcedente o pedido. Entendeu o Julgador que, embora o doador estivesse com problemas de saúde, não havia provas suficientes para reconhecer que ele não soubesse que estava dispondo de seu imóvel rural. Condenou os autores ao pagamento dos ônus sucumbenciais.
Os autores, nas razões de apelo, alegam que a doação ocorreu sem a sua anuência, e a data da lavratura do ato foi a mesma do óbito, havendo, por conseguinte, forte suspeita de fraude. Dizem que não houve manifestação de vontade; que restou evidenciado que uma pessoa que sofre de derrame cerebral e fica internada na UTI por vários dias, não tem condições ou capacidade de demonstrar sua vontade, doando metade dos seus bens em benefício de apenas um herdeiro. Pedem a reforma da sentença.
Dispensados do preparo, em razão da gratuidade judiciária com a qual litigam, fl. 26, a apelação foi recebida, fl. 144. Juntadas as contrarrazões, fls. 146/157, subiram os autos.
É o relatório.
VOTOS
DES. CARLOS RAFAEL DOS SANTOS JÚNIOR (RELATOR)
Como se viu do relatório, os autores manifestam inconformidade com a sentença que julgou improcedente o pedido de anulação de doação, afirmando fraude, ausência de autorização e conhecimento dos demais herdeiros da aludida doação; falta de condições de discernimento por parte do doador por problemas de saúde.
Sem razão os recorrentes.
A doação foi feita por Albino e Leonora Kelm (já falecidos) ao filho, Arnildo Kelm, que cuidava dos pais, conforme depoimento de Luis Lucas, fl. 70.
A principal controvérsia dos autos reside na capacidade do doador para realizar atos de tal natureza, tendo falecido no mesmo dia em que firmou a escritura.
Contudo, não consta nos autos a prova de incapacidade do doador.
O principal depoimento para a solução da lide, é o da Tabeliã, que lavrou a procuração outorgada pelos doadores para assinar e outorgar escritura de doação como reserva de usufruto do imóvel em questão para o filho Arnildo, fl. 20, procuração firmada em 01 de dezembro de 1992, bem como lavrou a respectiva escritura de doação, fl. 17, na data da morte do doador, 04 de dezembro de 1992.
“J: A procuração, a senhora lembra se lavrou na residência?
T: Lavrei na residência deles, lavrei na residência não, porque ela era na época datilografada, mas fui até lá, fui duas vezes, primeira vez constatar a capacidade mental dele, porque ele estava acamado, não sei que tipo de doença tinha, não lembro mais também.
J: Mas tava lúcido?
T: Estava lúcido, estava em perfeitas condições de entender o que estava fazendo.
(..)
R: E porque, sendo ele alfabetizado, como consta inclusive no óbito, ele apenas colocou a digital e não a assinatura dele, se ele tinha capacidade física, mental?
T: A capacidade mental é uma maneira, é a forma de expressar o que quer fazer, agora a possibilidade de assinar ou não é outra, por motivo talvez como a senhora falou que tivesse estado doente, tivesse tido algum problema de saúde perdeu o movimento da mão, ou a capacidade de dizer, de mencionar…. de entender o que estava se passando….
J: De entender o que estava se passando, isso havia?
T: De confirmar o que ele queria fazer, isso houve.
J: Isso a senhora confirma? A senhora lembra?
T: Isso eu confirmo, sim.”.
Anote-se que a escritura pública de doação e a procuração por instrumento público gozam de presunção de veracidade, devendo a prova, para ensejar a decretação de nulidade destes, ser cabal.
No caso em tela, reitera-se, pela prova produzida, não há como afirmar a ocorrência de incapacidade ou de discernimento reduzido no momento da manifestação volitiva do doador.
Gize-se, ainda, que os doadores eram um casal, e embora o doador tenha falecido no dia da outorga da escritura de doação(no ano de 1992), a doadora viveu até o ano de 2004, com plena capacidade para os atos da vida civil.
O ato de doação foi realizado dentro dos parâmetros legais, revestidos de características que lhe emprestam certeza, credibilidade e segurança jurídica. Presume-se, por conseguinte, a veracidade das escrituras firmada perante o Tabelião, que tem fé pública.
A jurisprudência desta Corte não discrepa
ANULATÓRIA. AUSÊNCIA DE PROVA DE QUE O FALECIDO NÃO GOZAVA PLENAMENTE DE SUAS FACULDADES MENTAIS AO FIRMAR PROCURAÇÃO. VÍCIO DE CONSENTIMENTO IMPROVADO. CPC, 333, I. Presunção de veracidade da escritura lavrada perante o tabelião, detendo fé pública. Improcedência. Apelo improvido. (Apelação Cível Nº 70007401268, Décima Nona Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Mário José Gomes Pereira, Julgado em 16/12/2003) )
APELAÇÃO CÍVEL. ANULATÓRIA DE REGISTRO PÚBLICO. DOAÇÃO. USUFRUTO VITALÍCIO. NECESSIDADE DE SER DEMONSTRADA A COAÇÃO. PROVA FRÁGIL. DANOS MATERIAIS. INDENIZAÇÃO PELO USO INDEVIDO. PERÍDO INDENIZÁVEL. I. Frágil a prova testemunhal produzida no que concerne à coação. Não tendo sido produzida prova escorreita que afaste a presunção de veracidade e de fé pública da Escritura e que macule o ânimo de doar, não há como ser decretada a nulidade desta. II. Devida a indenização por danos materiais, pelo uso indevido do imóvel, a partir do momento em que ajuizada a demanda, até a efetiva entrega das chaves em cartório. III.Verba honorária redimensionada. Parcialmente provido o primeiro apelo e improvido o segundo apelo. (Apelação Cível Nº 70004791620, Décima Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Alexandre Mussoi Moreira, Julgado em 10/02/2004)
ANULATÓRIA DE ESCRITURA PUBLICA DE DOAÇÃO COM RESERVA DE USUFRUTO. Escritura publica, gozando de presunção de veracidade e de fé pública, a prova a ser feita, ensejando decretação de nulidade, há de ser cabal e estreme de duvida. Não restou evidenciada nos autos, impondo-se a improcedência da ação. Negaram provimento.” (APC nº 70001191436, 18ª Câmara Cível, TJRS, relator: Rosa Terezinha Silva Rodrigues, julgado em 15/02/2001).
Quanto à ausência de autorização dos demais filhos, o consentimento dos filhos somente é necessário quando há venda de imóvel de ascendente para descendente.
O art. 496 do CC/20202 estabelece ser “anulável a venda de ascendente a descendente, salvo se os outros descendentes e o cônjuge do alienante expressamente houverem consentido”.
Contudo, tal dispositivo nada refere acerca de doação.
O art. 549 do CCB/2002 estabelece a nulidade da doação quanto à parte que exceder a de que o doador, no momento da liberalidade, poderia dispor em testamento. Isso porque 50% do patrimônio, na existência de herdeiros necessários, são reservados para a legítima.
Na escritura pública em tela, consta que o bem doado integrava a parte disponível dos doadores.
Consta na escritura de fl 17 verso: “A presente doação não está impedida, visto não infringir os artigos 1175 e 1176 do CCB, que é feita dentro da metade disponível dos bens dos outorgantes doadores, razão por que fica o outorgado donatário, desobrigado de trazer a colação nos termos do art. 1788 do CC” (dispositivos relacionados ao CC/1916, quando realizada a doação).
Por tais razões, não há como reconhecer que tal doação tenha sido inoficiosa, porquanto não restou demonstrado que excedeu a parte que os doadores, no momento da liberalidade, poderiam dispor.
Competiria à parte que postula a anulação da doação comprovar que houve excesso quando esta ocorreu, demonstrando o patrimônio existente, para que fosse possível a comparação entre o que foi doado e o que restou para os herdeiros necessários.
Essa comprovação não foi realizada.
Assim, não é possível que se declare a nulidade em face da inexistência de prova acerca da inoficiosidade. Competia aos autores a realização dessa prova, nos termos do art. 333, I do CPC.
A jurisprudência desta Corte corrobora esse entendimento:
APELAÇÃO. ANULATÓRIA. DOAÇÃO INOFICIOSA. PROVA. HONORÁRIOS. A doação inoficiosa tem por base o excesso da parte disponível do doador. Esse excesso deve vir demonstrado, de forma comparativa, através do que foi doado e do que ficou para os alegados prejudicados, à data da doação. A inexistência de demonstração do excesso impossibilita a caracterização da inoficiosidade. Os honorários advocatícios devem ser fixados nos termos do §3º, do art. 20, do CPC. DERAM PROVIMENTO À PRIMEIRA APELAÇÃO E NEGARAM PROVIMENTO À SEGUNDA.” (Apelação Cível Nº 70012645727, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Rui Portanova, Julgado em 29/09/2005);
Por tais razões, imperativa a improcedência do pedido.
Com estas considerações, nega-se provimento à apelação.
DESA. MYLENE MARIA MICHEL (REVISORA) – De acordo.
DES. JOSÉ FRANCISCO PELLEGRINI (PRESIDENTE) – De acordo.
DES. JOSÉ FRANCISCO PELLEGRINI – Presidente – Apelação Cível nº 70029143575, Comarca de Horizontina: “NEGARAM PROVIMENTO. UNÂNIME”