2ª VRP|SP: Tabelionato de Notas – Escritura de Inventário e Partilha – Herdeiros domiciliados no exterior sem domicílio no Brasil – Procuração particular – Impossibilidade.

Processo 0028927-35.2021.8.26.0100

Processo Administrativo

Registros Públicos

J.D.V.R.P.C. – A.P.S.

O.C. e outro

Trata-se de processo administrativo disciplinar instaurado em face do Sr. O. C., Tabelião de Notas da Comarca da Capital, em razão na lavratura de inventário extrajudicial com aplicação da legislação brasileira para fins de sucessão hereditária de pessoa falecida sem domicílio no Brasil, bem como a representação de um dos herdeiros por procuração constituída por meio de instrumento particular (a fls. 02/199).

O Sr. Tabelião foi interrogado (a fls. 214/216) e apresentou defesa prévia (a fls. 233/236). Produzida a prova oral e encerrada a instrução (a fls. 245/247), em alegações finais o Sr. Tabelião referiu a correção do ato notarial em todas as suas fases (a fls. 249/262).

É o breve relatório. Decido.

Na delegação de titularidade do Sr. Tabelião houve a lavratura da escritura pública de inventário e partilha extrajudicial no livro 3438, às páginas 123/128, no dia 28.04.2021. Constou da imputação a impossibilidade da aplicação da legislação brasileira para regular a sucessão, como foi efetuado, em razão do falecido, estrangeiro, não ser domiciliado o Brasil; bem como, ter sido utilizado instrumento particular em país com notariado latino. Examino a primeira imputação.

Era possível a lavratura de escritura pública de inventario e partilha de falecido estrangeiro não domiciliado no Brasil quanto a bens situados no Brasil nos termos dos artigos 23, inc. II, e 610 do Código de Processo Civil, não havendo o impedimento constante do art. 29 da Resolução n. 35/2007 do Conselho Nacional de Justiça.

Não obstante ao cabimento da realização da sucessão no Brasil, mediante atribuição de Tabelião de Notas, a legislação aplicável à sucessão legítima tem por regra de conexão de Direito Internacional Privado o domicílio do de cujus. Nessa perspectiva, o art. 10 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, prescreve:

Art. 10. A sucessão por morte ou por ausência obedece à lei do país em que domiciliado o defunto ou o desaparecido, qualquer que seja a natureza e a situação dos bens.

§ 1º A sucessão de bens de estrangeiros, situados no País, será regulada pela lei brasileira em benefício do cônjuge ou dos filhos brasileiros, ou de quem os represente, sempre que não lhes seja mais favorável a lei pessoal do de cujus.

§ 2º A lei do domicílio do herdeiro ou legatário regula a capacidade para suceder. (grifos meus)

Desse modo, ausente a exceção contida no art. 10, p. 1º, da LINDB (cf. art. 5º, inc. XXXI), caberia a aplicação da legislação material de sucessão do país que domiciliado o falecido.

Pois bem. O autor da herança era nascido na França e domiciliado na cidade de Nova Iorque /EUA, local onde faleceu, como constou no ato notarial. A aplicação da legislação brasileira para fins de sucessão dos bens móveis inventariados e partilhados dependeria da existência de domicílio do falecido no Brasil.

O art. 70 do Código Civil, estabelece:

Art. 70. O domicílio da pessoa natural é o lugar onde ela estabelece a sua residência com ânimo definitivo.

No domicílio há um elemento material ou objetivo concernente à ideia de lugar e outro, anímico ou subjetivo, referente à vontade de fazer daquela localidade o centro de sua atividade jurídica.

Portanto, a existência da propriedade de um bem ou a permanência sazonal em determinada localidade no Brasil, ainda que possa integrar a ideia de residência, não encerra a noção jurídica de domicílio.

Não há dúvida quanto ao domicílio do falecido na cidade Nova Iorque /EUA, bem como, do sistema brasileiro admitir a pluralidade de domicílios. Seja como for, a aplicação da legislação brasileira para regular a sucessão legítima dependeria da situação jurídica do de cujus ter domicílio no Brasil, enquanto centro de sua atividade jurídica.

A mera titularidade de quotas em sociedades empresariais não é bastante para qualificação jurídica de domicílio no Brasil. A última alteração contratual e de consolidação do capital social efetuado na empresa da qual o falecido era titular de significativa participação social, realizada em 05.06.2020, é indicativa daquele ser domiciliado na cidade Nova Iorque /EUA e, inclusive haver atuado por procurador, indicado como sócio administrador da sociedade comercial (a fls. 32/37).

Nessa perspectiva, como exposto, a titularidade de participação social não tem aptidão para demonstrar a existência de domicílio do falecido no Brasil de forma a permitir a aplicação legislação substantiva brasileira à sucessão.

A produção da prova oral referindo que o falecido possuía imóvel no Brasil, alienado antes do passamento, e por ele utilizado, igualmente, não tem aptidão de demonstrar a escolha do Brasil para o centro de sua atividade jurídica; pelo contrário a prova supra referida e a atuação por procurador, demonstra o oposto; especialmente pelo fato da exclusão do de cujus enquanto administrador da empresa.

Assim, não cabia a realização do ato notarial com aplicação das normas jurídicas brasileiras para o regramento da sucessão legítima, permanecendo a regra de conexão do domicílio do falecido no exterior, com aplicação do direito estrangeiro para tanto.

Passo ao exame da segunda imputação. Nos termos do artigo 9º, p. 1º, da LINBD; do art. artigo 657 do Código Civil e do artigo 12 da Resolução n. 35/2007 do Conselho Nacional de Justiça, a procuração outorgada pelo herdeiro H. P. S. B., na França, país que adota o sistema de notariado latino, deveria de ter sido lavrada por instrumento público e não particular, como o foi (a fls. 152/153), sendo certo que apostila notarial não o transforma em instrumento público.

Portanto, da mesma forma, houve irregularidade ao não se exigir instrumento público na hipótese em conformidade à possibilidade e regramento existente no país no qual foi produzido o negócio jurídico.

As alegações do Culto Dr. Advogado, respeitosamente, não são acolhidas pelas seguintes razões:

A interpretação e qualificação jurídica das normas incidentes não apresenta caráter dúbio, bem como, a complexidade jurídica não justifica os equívocos ocorridos na qualificação notarial;

Não se nega a independência funcional e aplicação de compreensão jurídica do Sr. Tabelião, o objeto deste expediente administrativo envolve equívoco inescusável na aplicação do Direito;

Apesar do respeitável depoimento, como mencionado, o falecido não era administrador da empresa (vide contrato social, fls. 32/37), bem como sua presença esporádica no Brasil e a eventual propriedade de bem imóvel não permite a conclusão da existência de domicílio;

Não constou na escritura pública a inscrição do CPF do falecido; seja como for, a mera inscrição não resulta em domicílio; observo que os herdeiros, todos estrangeiros não domiciliados no Brasil (cf. ato notarial), também possuem a referida inscrição;

O sistema de pluralidade de domicílios adotado pela legislação nacional, por si só, não implica em domicílio do falecido, igualmente, nada foi mencionado no ato notarial acerca do exercício de profissão por aquele no Brasil, apesar da participação societária;

Como mencionado a interpretação e aplicação do direito acima efetuada foi realizada de forma sistemática e lógica, desde o diálogo das fontes entre os diplomas legais acima referidos, com aplicação concreta para o momento da lavratura do ato notarial;

Com o máximo respeito à pessoa e experiência profissional dos Srs. Prepostos, aqueles incidiram em equívoco não escusável na realização do ato notarial;

Apesar da procuração realizada pelo herdeiro H. P. S. B. estar redigida no idioma inglês, sua qualificação indicava domicílio na França, bem como, os atos notariais foram realizados em território francês, destarte, não há escusa para o equívoco;

O regramento legal incidente impunha a necessidade de instrumento público, observadas as particularidades do sistema notarial do local de sua realização;

Não houve reconhecimento de nulidade do ato notarial, apenas seu bloqueio administrativo na forma da legislação incidente.

Considerado o equívoco na lavratura do ato notarial, o qual, apesar de não realizado diretamente pelo Sr. Tabelião, poderia ser evitado acaso o Sr. Delegatário cumprisse seus deveres de orientação e fiscalização adequada dos prepostos por ele nomeados. Observo que o erro foi inescusável e poderia ser evitado com atuação do Sr. Tabelião, conforme destacado.

Nessa ordem de ideias, está caracterizado ilícito administrativo culposo relativamente à insuficiência ou ausência de orientação e fiscalização dos prepostos pelo Sr. Tabelião.

Passo à fixação da pena administrativa, desde critérios de razoabilidade e proporcionalidade. A falta é culposa e de média gravidade, assim, excessiva a suspensão e incabível a repreensão reservada à falta leve, donde cabe aplicação da pena de multa. Estabelecidos os motes da culpabilidade, por critério de razoabilidade e proporcionalidade, tenho por cabível a imposição de multa no importe de R$ 15.000,00 (quinze mil reais).

Ante ao exposto, julgo procedente este processo administrativo disciplinar para imposição da pena de multa no importe de 15.000,00 (quinze mil reais) ao Sr. O. C., Tabelião de Notas da Comarca da Capital, com fundamento nos artigos 31, inc. I, 32, inc. II, e 33, inc. II, da Lei n. 8.935/94.

Encaminhe-se cópia desta decisão à E. Corregedoria Geral da Justiça, por e-mail, servindo esta decisão como ofício.

P.I.

(DJe de 22.03.2022 – SP)