2ª VRP|SP: Tabelionato de Notas – União Estável – Modificação do Regime de Bens – Necessidade de intervenção judicial em analogia ao disposto no art. 1.639, §2º, do Código Civil – Ainda que imposto o regime legal de bens, as partes podem escolher o regime convencional de bens, por ser mais gravoso – Pedido indeferido. 

Processo 1006520-18.2021.8.26.0100

Pedido de Providências

2ª Vara de Registros Públicos

Vistos,

Cuida-se de pedido de providências formulado pelo Senhor Tabelião de Notas da Capital, suscitando dúvida quanto a pedido de Retificação e Ratificação em relação ao regime de bens escolhido em Escritura Pública de Declaração de União Estável.

Manifestou-se, quanto ao tema, o Colégio Notarial do Brasil Seção São Paulo, às fls. 06/11.

Sobrevieram esclarecimentos pelo Senhor Titular, às fls. 21/23.

O Ministério Público ofertou parecer opinando pelo indeferimento do pedido, no entendimento de que a via administrativa não é suficiente para a análise do pedido em tela (fls. 27/29).

É o breve relatório. Decido.

Trata-se de dúvida suscitada pelo Senhor Tabelião de Notas da Capital, relativa a pedido de Retificação do regime de bens apontado em Escritura Pública de Declaração de União Estável.

Narra o Senhor Titular que aos 21 de outubro de 2020 foi lavrada em sua serventia de notas a Escritura Declaratória de União Estável entre M. A. S. e D. S. S., escolhendo os conviventes o regime da separação de bens. Ocorre que, aos 11 de janeiro de 2021, o consorte retornou à unidade e referiu que se equivocou quanto ao acordo patrimonial escolhido para a convivência do casal, posto que desejava, na realidade, que a separação obrigatória regesse a união.

Destaca o Senhor Tabelião que, em razão da idade do convivente, maior de 70 anos, não se cuidaria, então, propriamente de escolha de regime, mas sim de mera aceitação dos efeitos patrimoniais decorrentes dos dispositivos legais que incidem sobre a matéria.

Não obstante todo o explanado, os Senhores Interessados desejam ver a Escritura Declaratória retificada no que tange ao acordo patrimonial, para que dela passe a figurar a separação obrigatória de bens na regência da união estável entre os conviventes (fls. 23).

De sua parte, compreende o i. Delegatário que, pese embora a afirmação pelas partes de que cometeram um engano na declaração anterior, a mudança não pode ser feita na via extrajudicial, sendo necessária a manifestação do Judiciário, razão pela qual suscitou a presente dúvida.

Noutro turno, veio aos autos o CNB-SP para se manifestar na mesma esteira do d. Notário, isto é, pela impossibilidade de alteração do regime de bens na via extrajudicial, não sendo caso de se aplicar o procedimento previsto no item 55, do Capítulo XVI, das NSCGJ, que trata da feitura da Escritura de Ret-Ratificação, não sendo possível se deduzir, de pronto, que houve erro, inexatidão material ou irregularidade na confecção do ato, tal como lavrado.

Nesse sentido, ressaltou o Colegiado que a Escritura de Retificação e Ratificação (item 55) não pode ser utilizada para inovar no ato anteriormente praticado, resultando em modificação na vontade das partes.

Ademais, por analogia, aplica-se à união estável a vedação atinente à alteração do regime de bens do casamento, que somente pode se dar na via judicial, por previsão expressa do artigo 1.639, §2º, do Código Civil.

Na mesma senda opinou o Ministério Público, aduzindo que a retificação, tal qual pretendida, é inviável na via extrajudicial. Sublinhou, ainda, o d. Promotor de Justiça, importante ponto que merece instrução processual adequada, qual seja, o momento de início da união, que pode ensejar, ou não, a obrigatoriedade do regime de bens.

Pois bem.

A dúvida levantada pelo Senhor Notário é pertinente e deve ser acolhida, com o indeferimento do pedido efetivado pelos Senhores Interessados, nesta via administrativa. Fundamento.

Inicialmente, cabe mencionar o tópico já levantado pelo CNB-SP, no que tange ao fato de que a Escritura de Retificação e Ratificação não se prestar a inovar o conteúdo do negócio jurídico anteriormente pactuado.

O item 55, Cap. XVI, das Normas de Serviço da E. Corregedoria Geral da Justiça (NSCGJ), é claro em sua dedução de que o instituto da Retificação e Retatificação se utiliza para a correção de erros, inexatidões materiais e irregularidades. Veja que não se cuida de, por meio do documento, realizar novo ato, desconectado do instrumento anterior, inclusive sendo necessário se proceder às decidas anotações e remissões em ambas as notas, em consonância aos itens 55.1 e 55.2, Cap. XVI, das NSCGJ.

A despeito do explicitado, mesmo que se insista na alegação da existência de erro, não se deve olvidar que o mesmo não se cuidaria, se o caso, de erro material, tal qual disposto no item 55, supra, mas sim de um error in negotia, isto é, um erro substancial, ou seja, um defeito do negócio jurídico, em conformidade ao artigo 139 do Código Civil.

Nesse sentido, refere o mencionado artigo:

Art. 139. O erro é substancial quando:

I – interessa à natureza do negócio, ao objeto principal da declaração, ou a alguma das qualidades a ele essenciais;

II – concerne à identidade ou à qualidade essencial da pessoa a quem se refira a declaração de vontade, desde que tenha influído nesta de modo relevante;

III – sendo de direito e não implicando recusa à aplicação da lei, for o motivo único ou principal do negócio jurídico. [grifo meu]

Veja que o equívoco sobre o qual se pretende fazer recair a retificação é parte essencial do contrato de convivência, sendo termo fundamental e indissolúvel da declaração de vontade firmada pelas partes, restando sobremaneira inviável que a alteração se dê da forma singela como pretendem os consortes, haja vista o impacto jurídico que dela pode advir.

No que tange à vontade das partes, que se diz manifestada da forma incorreta, resultando num embate entre eventual vontade real e alegado resultado errôneo, ensina Silvio Rodrigues [in: Direito Civil Parte Geral] que, na moderna teoria civil, aplicável ao presente caso, o declarante se responsabiliza pelo pacto firmado, em especial se suposto erro decorre de culpa ou dolo do interessado. In verbis:

Embora partindo do pressuposto de que o ordenamento jurídico busca realizar a autonomia da vontade, tal teoria [teoria da responsabilidade] reconhece que, mesmo desacompanhada da vontade, pode a declaração ter efeito obrigatório quando a disparidade entre ela e a vontade real decorrer de culpa ou dolo do declarante. Em tal caso, o declarante vincula-se, a despeito de o não querer, por isso que é responsável pelo desacordo entre o que disse e o que quis. Não se pode aproveitar de sua própria torpeza (se houver dolo), ou de sua própria incúria (se houver culpa), para promover a ineficácia do ato, com prejuízo para os terceiros de boa-fé que confiaram na verdade da declaração emitida. [Rodrigues, Silvio. Direito Civil. V. 1. Parte geral. 34. ed. atual, de acordo com o novo Código Civil (Lei n. 10.406, de 10-1-2002) – São Paulo: Saraiva, 2003. P. 185]

Dentre desse contexto, o regime de bens pactuado entre os cônjuges não se cuida de mera liberalidade íntima, de modo que seus efeitos ultrapassam, e muito, o âmbito do casal e os laços familiares, podendo afetar terceiros sem qualquer relacionamento com os integrantes da avença realizada.

Nessa toada, Silvio Rodrigues [idem, P. 186, sobre teoria da confiança], em continuação, indica que quando “a declaração difere da vontade, é a declaração que deve prevalecer, pois a pessoa a quem é dirigida [terceiro, neste caso concreto] decerto não tinha elementos para verificar tal disparidade.”

É por isso mesmo, pelo impacto jurídico que se estende para além da relação conjugal, que a alteração do regime patrimonial aplicado ao casamento somente pode ocorrer na via judicial, na decisão do legislador, por força do artigo 1.639, §2º, do Código Civil. Com efeito, sublinhe-se que após longa evolução histórica, que se iniciou com mudanças sociais, seguidas do reconhecimento da união estável como entidade familiar pela Constituição Federal, culminando em recente decisão do Supremo Tribunal Federal (RExt n° 646.721 e 878.694), que equiparou ambos os institutos União e Matrimônio para fins de sucessão, na atualidade, não se pode dizer que há distinções de cunho civil relevantes entre a convivência estável, para fins de constituição de família, e o matrimônio.

Assim sendo, igualmente, o regime de bens da união estável também não pode ser mudado na via extrajudicial ou administrativa, sem a participação da supervisão judicial, em analogia ao indicado no supramencionado artigo 1.639, §2º, do Código Civil. Assim também apontou o d. Promotor de Justiça, ao mencionar o REsp 1.383.624/MG, em julgado no qual o Superior Tribunal de Justiça firmou o exato entendimento.

Por fim, não verifico a ocorrência de ilícito funcional ou falha na prestação do serviço pelo Senhor Notário na lavra do ato fazendo constar o regime da separação convencional, em situação de existência de causa suspensiva em razão da idade do convivente varão, uma vez que é possível o entendimento de que esse acordo patrimonial é mais gravoso que o estabelecido legalmente, sendo, então, permitida sua escolha, nos termos do Enunciado 634 CJF, aprovado na VIII Jornada de Direito. In verbis:

É lícito aos que se enquadrem no rol de pessoas sujeitas ao regime da separação obrigatória de bens (art. 1.641 do Código Civil) estipular, por pacto antenupcial ou contrato de convivência, o regime da separação de bens, a fim de assegurar os efeitos de tal regime e afastar a incidência da Súmula 377 do STF.

Por todo o exposto, à vista do parecer do Ministério Público, acolho a dúvida do Senhor Titular e indefiro o pedido de alteração do regime de bens da união estável na via extrajudicial ou mesmo diante desta via administrativa, junto deste Juízo Corregedor Permanente, uma vez que o requerimento demanda a análise na via judicial pertinente.

Nessas condições, à míngua de providência censório-disciplinar a ser adotada, determino o arquivamento dos autos. Não menos importante, determino à z. Serventia Judicial que publique a presente decisão no DJE, haja vista a pertinência do tema ao serviço extrajudicial. Ciência ao Senhor Titular, que deverá cientificar os Senhores Interessados, ao Ministério Público e ao CNB-SP.

P.I.C.

(DJe de 26.05.2021–SP)