CSM|SP: Dúvida Registral – Compra e venda de imóvel – Alienação exclusiva pelo cônjuge sobrevivente, na condição de viúvo – Propriedade registrada de forma exclusiva em nome do alienante – Casamento celebrado na Itália, antes da reforma de 1975, sob o regime da separação legal de bens – Regime de bens que obedece a lei do domicílio dos nubentes, nos termos do art. 7º, § 4º, LINDB – Separação legal de bens no sistema italiano que decorria, até 1975, da ausência de convenção em sentido contrário – Situação que não se amolda ao regime da separação legal ou obrigatória de bens do direito brasileiro, previsto no art. 1.641 do CC – Regime de separação legal que podia ser afastado pelos cônjuges por convenção válida, nos termos da legislação italiana vigente na época do casamento – Opção de um dos cônjuges de permanecer no regime da separação de bens – Eficácia ante a previsão expressa do art. 228, § 1º, da Lei italiana nº 151/1975 – Manutenção do regime de separação por opção que não traduz similitude com o regime da separação obrigatória – Situação que configura regime da separação convencional de bens – Não incidência do entendimento da Súmula 377 do STF – Bem imóvel particular alienável pela vontade exclusiva do cônjuge proprietário – Óbices afastados – Recurso provido para julgar improcedente a dúvida e determinar o registro do título.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Cível nº 1002816-34.2018.8.26.0445, da Comarca de Pindamonhangaba, em que é apelante ALESSANDRO BAZZEA, é apelado OFICIAL DE REGISTRO DE IMÓVEIS E ANEXOS DA COMARCA DE PINDAMONHANGABA.

ACORDAM, em Conselho Superior de Magistratura do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão: “Deram provimento ao recurso para julgar improcedente a dúvida, determinando o registro do título, v.u.”, de conformidade com o voto do Relator, que integra este acórdão.

O julgamento teve a participação dos Exmos. Desembargadores PINHEIRO FRANCO (PRESIDENTE TRIBUNAL DE JUSTIÇA) (Presidente), LUIS SOARES DE MELLO (VICE PRESIDENTE), XAVIER DE AQUINO (DECANO), GUILHERME G. STRENGER (PRES. SEÇÃO DE DIREITO CRIMINAL), MAGALHÃES COELHO (PRES. DA SEÇÃO DE DIREITO PÚBLICO) E DIMAS RUBENS FONSECA (PRES. DA SEÇÃO DE DIREITO PRIVADO).

São Paulo, 3 de março de 2020.

RICARDO ANAFE

Corregedor Geral da Justiça e Relator

Apelação Cível nº 1002816-34.2018.8.26.0445

Apelante: Alessandro Bazzea

Apelado: Oficial de Registro de Imóveis e Anexos da Comarca de Pindamonhangaba

VOTO Nº 31.101

Dúvida Registral – Compra e venda de imóvel – Alienação exclusiva pelo cônjuge sobrevivente, na condição de viúvo – Propriedade registrada de forma exclusiva em nome do alienante – Casamento celebrado na Itália, antes da reforma de 1975, sob o regime da separação legal de bens – Regime de bens que obedece a lei do domicílio dos nubentes, nos termos do art. 7º, § 4º, LINDB – Separação legal de bens no sistema italiano que decorria, até 1975, da ausência de convenção em sentido contrário – Situação que não se amolda ao regime da separação legal ou obrigatória de bens do direito brasileiro, previsto no art. 1.641 do CC – Regime de separação legal que podia ser afastado pelos cônjuges por convenção válida, nos termos da legislação italiana vigente na época do casamento – Opção de um dos cônjuges de permanecer no regime da separação de bens – Eficácia ante a previsão expressa do art. 228, § 1º, da Lei italiana nº 151/1975 – Manutenção do regime de separação por opção que não traduz similitude com o regime da separação obrigatória – Situação que configura regime da separação convencional de bens – Não incidência do entendimento da Súmula 377 do STF – Bem imóvel particular alienável pela vontade exclusiva do cônjuge proprietário – Óbices afastados – Recurso provido para julgar improcedente a dúvida e determinar o registro do título.

1. Trata-se recurso de apelação interposto por ALESSANDRO BAZZEA, visando a reforma da sentença de fls. 145/146, que manteve a dúvida suscitada pelo Oficial de Registro de Imóveis, Títulos e Documentos e Civil das Pessoas Jurídicas da Comarca de Pindamonhangaba, recusando o registro de escritura pública de compra e venda do imóvel matrícula nº 35.715, firmada por Ivan Lamberti e Alessandro Bazzea, por ter figurado no ato como vendedor somente o cônjuge varão, Ivan Lamberti, entendendo pela incidência do entendimento da Súmula 377 do Supremo Tribunal Federal, com a comunicação do bem à cônjuge falecida, Andreina Ponti.

A Nota de Devolução, após indicar a incidência da comunhão dos aquestos por força do entendimento da Súmula 377 do Supremo Tribunal Federal, exigiu a comprovação de que “(i) o imóvel, no âmbito do inventário de Andreina Ponti, foi atribuído com exclusividade ao viúvo, registrando-se o correspondente formal de partilha ou escritura pública, se o caso; ou (ii) houve autorização do Juízo Sucessório para alienação do bem, na forma do artigo 619, inciso I, do Código de Processo Civil, aditando-se o título para consignação do respectivo alvará; ou, ainda, (iii) houve afastamento judicial da incidência de referida súmula” (fls. 20).

2. O recurso sustenta, em resumo, que não se aplica ao caso concreto o entendimento da Súmula 377 do Supremo Tribunal Federal, por força da opção feita pelo alienante de permanecer no regime da separação de bens pelo regime italiano; que recente precedente do Superior Tribunal de Justiça entendeu pela necessidade de comprovação do esforço comum para aquisição para fins de aplicação do entendimento da referida Súmula; que a opção feita pelo alienante perante o notário italiano, em 29.08.1977, na cidade de Torino, transcrito no assento de casamento em 09.09.1977, nos termos do art. 228, § 1º, da Lei italiana nº 151/1975, traduz aplicação do regime da separação convencional de bens, sendo eficaz a manifestação unilateral por um dos cônjuges, por expressa previsão legal. Pretende a reforma da sentença, afastando-se o óbice apontado pelo Oficial, determinando-se o registro do título (fls. 154/170).

A Procuradoria Geral de Justiça manifesta-se pelo provimento da apelação, afastando-se o óbice levantado pelo Oficial (fls. 213/216).

É o relatório.

3. Conheço do recurso, pois que presentes seus requisitos de admissibilidade.

O Oficial do Registro de Imóveis, Títulos e Documentos e Civil das Pessoas Jurídicas da Comarca de Pindamonhangaba, recusou o registro de escritura de compra e venda de bem imóvel em que figura como alienante tão-somente Ivan Lamberti, exigindo a integração do título com a comprovação de decisão judicial atribuindo o bem exclusivamente ao alienante, por conta do óbito de sua esposa, Andreina Ponti, ou, alternativamente, alvará judicial autorizando a venda ou decisão judicial declarando sua propriedade exclusiva, não compondo a herança da cônjuge falecida.

O fundamento da recusa se baseia na interpretação de que o regime da separação legal de bens, em casamento celebrado pela lei italiana, equivale ao regime da separação legal ou obrigatória de bens previsto no art. 1.641 do Código Civil, não sendo eficaz a opção unilateral feita por um dos cônjuges, nos termos da legislação italiana, para a conversão do regime para a separação convencional. Entendeu o Oficial, neste ponto, que a manifestação unilateral de um dos cônjuges não pode ser considerada como pacto antenupcial para fins de estabelecimento da separação convencional de bens, nem vincula o cônjuge que não tenha declarado expressamente tal vontade. E, por isto, aplicou o entendimento geral da jurisprudência brasileira, consolidado na Súmula nº 377 do Supremo Tribunal Federal, de que os aquestos, na separação legal ou obrigatória de bens, se comunicam.

O recurso comporta provimento.

De plano, observe-se que a fixação da legislação aplicável para a fixação do regime de bens, em caso de casamentos por pessoas não domiciliadas no Brasil, é a lei do domicílio do casal por conta do casamento. Assim prevê o art. 7º, § 4º, da LINDB:

Art. 7º. (…)

§ 4º O regime de bens, legal ou convencional, obedece à lei do país em que tiverem os nubentes domicílio, e, se este for diverso, a do primeiro domicílio conjugal.

(…)”

No caso concreto, o alienante casou-se na Itália, no ano de 1970, mantendo domicílio conjugal naquele país, aplicando-se ao seu casamento o regime de bens previsto na legislação italiana.

Do R.7 da matrícula nº 35.715 consta a aquisição do bem exclusivamente por Ivan Lamberti, com a seguinte qualificação:

“… casado desde 20 de abril de 1970, pelo regime da separação de bens, nos termos das Leis Italianas, conforme escritura pública datada de 29 de agosto de 1977 e certidão de casamento, as quais foram devidamente traduzidas e registradas no Oficial de Registro de Títulos e Documentos desta Comarca, sob nºs 21.084 e 21.085, no livro nº B-20, em data de 16 de agosto de 2005, com ANDREINA PONTI …” (fls. 18).

Na escritura pública de venda e compra do imóvel consta como vendedor Ivan Lamberti, na condição de viúvo, sem qualquer referência a Andreina Ponti (fls. 9). Não se vê, assim, referência ou participação da ex-cônjuge por conta da aquisição da propriedade e de sua alienação, embora tenha o notário indicado que lavrava o ato a pedido das partes, fundado em interpretação de decisão da Corregedoria Geral da Justiça no sentido da não aplicação da Súmula 377 do Supremo Tribunal Federal a caso similar.

A solução da questão passa pelo correto entendimento do termo “separação legal” utilizado pela legislação italiana, não se observando o mesmo tratamento jurídico previsto no direito brasileiro, já que o Código Civil brasileiro diferencia o regime da separação de bens em suas subespécies, quais sejam: a separação legal ou obrigatória de bens e a separação convencional de bens.

O Código Civil italiano, em sua redação original, previa que o regime da comunhão de bens era decorrente da manifestação de vontade dos nubentes, convencional, portanto, nos termos dos revogados arts. 215[1] e 216[2], alterados na reforma do direito de família italiano, ocorrida no ano de 1975. Até então, o regime legal que resultava do casamento sem pacto antenupcial era o da separação de bens, chamado, por isto, de separação legal.

Não existe, no Código Civil Italiano, seja no regime original da codificação, seja no regime decorrente da Lei italiana nº 151/1975, situação similar ao que se denomina, no direito brasileiro, de regime da separação legal ou obrigatória de bens, previsto para os casos do art. 1.641 do Código Civil.

Na redação original do código italiano, havia o regime da comunhão de bens, decorrente da vontade declarada dos nubentes, o regime dotal e o regime da separação legal de bens, este como regime legal, decorrente do silêncio dos contraentes a respeito do regime de bens do casamento. No dizer da doutrina italiana:

“Como já acenamos, enquanto no texto original do código o regime patrimonial legal, aplicável na falta de convenção matrimonial especial, era aquela da separação de bens, com a reforma o regime patrimonial legal da família, na falta de outra convenção estipulada na forma do art. 162, é constituído da comunhão de bens (art. 159 no texto reformado), que é regulada nos artigos 177 e seguintes do código civil” (trad. livre) (TORRENTE, Andrea; SCHLESINGER, Piero. Manuale di dirito privato. 22ª ed., Giuffrè Ed.: Milão, 2015, § 596, p. 1.249).

A atual redação do Código Civil italiano limita a dois os regimes comuns de bens: a comunhão legal de bens, previsto no art. 159, e a separação convencional de bens, prevista no art. 162, decorrente da manifestação de vontade dos nubentes.

A separação de bens, hoje convencional, era então legal, resultando tão somente da ausência de pacto, não podendo ser comparada ao nosso regime da separação obrigatória de bens. Não há disposição similar ao art. 1.641 do Código Civil, impondo aos cônjuges um regime legal que não o decorrente da ausência de pacto, por força de circunstâncias como a idade de um dos nubentes, risco de confusão patrimonial ou suprimento judicial da capacidade matrimonial.

Ou seja, quando se afirma o regime da separação legal de bens na Itália, não se está tratando de situação similar ao que se denomina, no direito brasileiro, de separação legal de bens, como subespécie, ao lado da separação convencional. Não havia, naquele sistema, para casamentos anteriores a 1975, uma separação convencional de bens, já que a separação era a regra geral, somente afastada pela vontade dos nubentes.

Desta forma, a leitura feita pelo Oficial, no sentido de que o termo “separação legal” de bens do direito italiano equivaleria à nossa “separação legal ou obrigatória” de bens do direito brasileiro, não é correta.

Fixada tal premissa, entende-se pela eficácia da declaração unilateral de um dos cônjuges que, nos termos das disposições transitórias da Lei italiana nº 151/1975, previu a suficiência do ato, perante o notário e com anotação no registro do casamento, para a manutenção do regime da separação de bens que, antes da mudança da lei, era legal por ser geral, não se diferenciando em nada da separação convencionada após o novo regime.

E, por força da opção legal decorrente da norma transitória, tem-se a manutenção de ambos os cônjuges no regime de separação de bens, não havendo, desde a vigência da Lei italiana nº 151/1975, um regime de separação legal de bens na Itália. E tal regime, por não decorrer da lei, mas sim da opção declarada de um dos cônjuges, deve manter aquilo que pretenderam no momento do casamento. Afinal não realizaram pacto de escolha da comunhão de bens. Assim, a declaração de um dos cônjuges, no sentido de manter o casamento no regime da separação de bens, gera por consequência o regime da separação convencional como da legislação brasileira, afastando a incidência da Súmula 377 do Supremo Tribunal Federal.

E nem se diga pela insuficiência da manifestação feita pelo alienante perante o notário italiano (fls. 29/31).

A opção foi objeto de anotação à margem do registro de casamento, conforme a tradução do Resumo do Registro dos Termos de Casamento do Município de Castiglione Torinese, Província de Turim (fls. 44), havendo nos autos manifestação notarial indicando sua eficácia. Ambos os atos foram levados a registro no livro B-20 do Oficial de Registro de Imóveis, Títulos e Documentos e Civil de Pessoa Jurídica sob os nºs 21.084 e 21.085, em 16 de agosto de 2005, produzindo seus efeitos também em território nacional.

Tal escolha podia ser feita unilateralmente por qualquer um dos cônjuges, nos termos do art. 228, § 1º, da Lei Italiana nº 151/1975, in verbis:

“As famílias já constituídas na data de entrada em vigor da presente lei, decorrido o prazo de dois anos da data citada, estão sujeitas ao regime de comunhão legal para os bens adquiridos, a menos que dentro do mesmo prazo, um dos cônjuges não manifeste vontade contrária em um ato recebido por tabelião ou pelo oficial do registro civil do lugar onde foi celebrado o casamento”.

A opção unilateral eficaz é afirmada também pela doutrina italiana:

“Na verdade a nova disciplina teve aplicação automática somente para os casais casados após a entrada em vigor da lei de reforma (20 de setembro de 1975). Para os casais já unidos em matrimônio naquela data uma norma transitória (art. 228, Lei de 19 de maio de 1975, n. 151) previu um período de pendência de dois anos a partir da entrada em vigor da reforma (período depois prorrogado até 15 de janeiro de 1978): se durante este período qualquer um dos cônjuges, com ato unilateral recebido pelo notário ou pelo oficial do registro civil do local no qual fora celebrado o matrimônio, declarar não querer o regime de comunhão legal, o casal permanecerá vinculado, como antes, ao regime de separação de bens” (trad. livre) (TORRENTE, Andrea; SCHLESINGER, Piero. Manuale di dirito privato. 22ª ed., Giuffrè Ed.: Milão, 2015, § 596, p. 1.249).

Sendo válida a opção do alienante de permanecer casado pela lei italiana no regime da separação de bens, e ante a inexistência no Código Civil italiano de um regime de separação legal ou obrigatória de bens, imposto aos cônjuges pelas circunstâncias do art. 1.640 do Código Civil, é de se considerar a existência, no caso concreto, de um regime de separação convencional de bens, afastando-se a incidência da Súmula 377 do Supremo Tribunal Federal.

Suficiente, assim, a manifestação de vontade do alienante, pois o imóvel vendido tem natureza de bem particular, não sujeito à comunicação com a ex-cônjuge. Respeita-se, assim, o regime de bens fixado no casamento, bem como o princípio da continuidade registral.

4. Por tais fundamentos, DOU PROVIMENTO ao recurso para julgar improcedente a dúvida, afastando as exigências do Oficial de Registro de Imóveis, Títulos e Documentos e Civil das Pessoas Jurídicas da Comarca de Pindamonhangaba, determinando o registro do título.

RICARDO ANAFE

Corregedor Geral da Justiça e Relator

Notas:

[1] A redação original do art. 215, CCIt foi substituída pela redação atual por força do art. 83, da Lei Italiana nº 151, de 19 de maio de 1975, passando a prever a possibilidade dos cônjuges, mediante convenção, estabeleceram o regime da separação de bens.

[2] Ab-rogado pelo art. 84, da Lei Italiana nº 151, de 19 de maio de 1975.

(DJe de 01.04.2020-SP)