“Algumas provas têm uma confiabilidade maior: é o caso do instrumento público”

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Em entrevista exclusiva ao Jornal do Notário, o Juiz auxiliar da CGJ-SP, Dr. Roberto Maia Filho fala sobre os temas polêmicos envolvendo o testamento público e a importância da atividade notarial para a sociedade

Jornal do Notário – Como avalia a possibilidade da lavratura do testamento vital e quais cautelas devem ser tomadas na lavratura do ato?

Roberto Maia Filho – Como bem observou o Dr. Francisco José Cahali, em entrevista ao Jornal do Notário de fevereiro último, não se trata, verdadeiramente, de testamento. Há na essência, uma declaração unilateral. Por seu intermédio, a pessoa expressa seus futuros e derradeiros anseios e expectativas, para o caso de sobrevir doença ou acidente que lhe retire a possibilidade de, ao depois, expressar sua vontade. Assim agindo, ela desde logo manifesta seu desejo de realizar (ou não) este ou aquele tratamento ou procedimento, terapia ou intervenção médica; enfim, tudo que diga respeito aos artifícios utilizados para prolongamento artificial da vida, que por vezes são física e psiquicamente dolorosos e atentam contra sua dignidade. Tal questão veio à baila por ocasião da recente aprovação do novo Código de Ética Médica, que aumentou a autonomia do paciente frente ao próprio tratamento, reduzindo as posturas paternalistas e impositivas dos médicos. Foi também objeto de reportagem de capa da revista Veja, de 28 de abril passado.

Jornal do Notário – Quanto à publicidade do testamento público, o Tabelião pode emitir certidão de testamento a qualquer pessoa enquanto vivo o testador?

Roberto Maia Filho – Trata-se de questão polêmica. Diversos estudiosos sustentam que isto não seria possível. Isto porque, embora a função registral seja duplamente pública (quanto ao órgão que a realiza e à abertura dos dados nela contida), isto não se dá, entretanto, com relação à totalidade das escrituras resultantes da atividade notarial, em especial às de testamento público, que só interessam, única e exclusivamente, ao testador, enquanto vivo ele for. O mesmo entendimento é sustentado na Consolidação Normativa da CGJRS (art. 637, §§1º e 2º) e no Código de Normas da CGJ do Paraná (itens 11.7.4 e 11.7.4.1), bem como na legislação de alguns países estrangeiros. Não é esta a opinião que vem predominando em São Paulo, todavia. Aqui, as Normas de Serviço da CGJ, em seu capítulo XIII, itens 31 e 32, são fiéis aos termos dos arts. 16 e 17 da LRP, que asseguram o fornecimento de informações, inclusive sob a forma de certidões, sem que o requerente necessite fundamentar seu pedido. Tais Normas até prevêem exceções às liberdades de informar e certificar, mas só quando houver expressa disposição em contrário, o que não se verifica no caso dos testamentos públicos. Assim foi decidido nos autos do Processo n° 72.110/84 e do Protocolado n° 37.957/04, no sentido da liberdade de informação e certidão, ante a natureza pública do testamento lavrado pelo notário. Mas atenção: tal publicidade, acima referida, só se dá em relação às certidões requeridas diretamente junto aos tabelionatos. Diferente é o tratamento normativo quando o interessado desconhece o notário que lavrou o ato e, por isso, almeja busca centralizada perante o banco de dados denominado RCT-O (Registro Central de Testamentos On-line). Em tais hipóteses, exige-se prova da morte do testador ou autorização do juízo (NSCGJSP, cap. XIV, it. 26-C.1). Pergunto: justifica-se tal disparidade ou uma padronização se impõe? É algo que comporta futura reflexão, no meu modo de entender. Caso se decida pela ampliação do sigilo, vedando-se no futuro, também aqui em São Paulo, a expedição de certidões de testamentos públicos, pelos tabeliães, antes da morte do testador (na esteira do entendimento já adotado em terras gaúchas e paranaenses), deveria tal proibição também se estender às escrituras de separação, divórcio e inventário previstas na Lei n°. 11.441/07? Será que os direitos constitucionais à privacidade e à intimidade justificam, necessariamente, tal vedação, ou a possibilidade de se optar pelos testamentos cerrado ou particular, ou ainda pelas separações, divórcios e inventários judiciais, protegidos pelo sigilo do art. 155 do CPC, modificam tal panorama? Não tenho, nem de longe, a pretensão de esgotar, em tão breve conversa, estes assuntos por demais palpitantes que, com certeza, merecerão estudos e discussões verdadeiramente consistentes.

Jornal do Notário – E em caso de testamento onde exista disposição testamentária de reconhecimento de paternidade, o filho poderia solicitar certidão demonstrando seu legítimo interesse enquanto vivo o testador?

Roberto Maia Filho – Penso que sim, considerando a filiação como um direito fundamental da personalidade do ser humano. Não se olvide que a regra é a irrevogabilidade do testamento, mas o reconhecimento de filho, nele contido, implica em exceção (arts. 1610 do CC e 1º, III, da Lei nº 8560/92). Do mesmo modo, embora o testamento só surta efeitos após a morte, eventual reconhecimento de filho expresso em seu bojo pode, excepcionalmente, ser usado como prova (e até mesmo ensejar a concessão de tutela antecipada) em ação judicial de investigação de paternidade.

Jornal do Notário – Em caso de testador idoso, deve ou não o Tabelião solicitar atestado médico para comprovar a sanidade mental do testador?

Roberto Maia Filho – Depende do que indicar a sensibilidade e a experiência do notário. O local e as circunstâncias (lavratura no interior de hospital, antecedentes pessoais ou familiares relativos a enfermidades psíquicas, idade exageradamente avançada, etc.) podem recomendar tal cautela. Mas há que se deixar claro ao testador que, em nenhum momento, o notário suspeita de sua higidez, mas, sim, está prevenindo futuros questionamentos, não raros, de pessoas preteridas. Já decidiu a 2ª Vara de Registros Públicos desta Capital que, no caso de pessoas internadas, pode ser recomendável o pedido de atestado do médico que está acompanhando o paciente para garantir que o motivo da internação não afetou a sua capacidade civil (Pedido de Providência 583.00.2007.220262-7 – nº ordem 9890/2 007).

Jornal do Notário – Quais são as principais causas de anulação judicial de testamento e quais as principais cautelas que os tabeliães devem tomar ao lavrar um testamento?

Roberto Maia Filho – Quem não é contemplado pela liberalidade, quase sempre fica insatisfeito e, muitas vezes, busca a Justiça pedindo a anulação do testamento. Tais pessoas nunca admitem que fracassaram na tentativa de cativar a afeição do testador. Invariavelmente preferem afirmar em juízo: a) que o testador não estava em sua perfeita higidez mental; b) que há vício formal. Assim, devem os senhores notários sempre imaginar que qualquer suspeita relativa à sanidade mental, ou a mínima preterição de formalidade, podem deixar uma porta entreaberta para a entrada daquele que quer enriquecer, ao arrepio da última vontade do testador declarada perante o Tabelião e as testemunhas. Exatamente do mesmo modo que o criminoso busca se tornar impune, anulando o processo penal, por eventual descumprimento de formalidade pela polícia ou pela Justiça.

Jornal do Notário – Qual sua opinião sobre a importância da função exercida pelo Registro Central de Testamentos do Colégio Notarial do Brasil – seção São Paulo (CNB-SP)?

Roberto Maia Filho – Fundamental. Vivemos numa sociedade que não prescinde de uma boa gestão da tecnologia da informação, sendo essencial a existência de um banco de dados seguro e confiável.

Jornal do Notário – Qual sua opinião sobre a possibilidade de ampliação da competência do Tabelião de Notas para a realização de inventários extrajudiciais consensuais quando existir testamento?

Roberto Maia Filho – Não vejo problemas, pelo menos neste primeiro momento no qual penso no assunto, mormente quando houver apenas partes capazes. Já na hipótese de, excepcionalmente, fazê-lo com incapazes, isto teria que se dar na presença de membro do MP e ainda mereceria melhor estudo acerca da viabilidade e da oportunidade da tal medida.

Jornal do Notário – Quais outros atos poderiam ser praticados pelas serventias extrajudiciais visando a desjudicialização de procedimentos e ‘desafogamento’ do Poder Judiciário?

Roberto Maia Filho – A experiência bem sucedida da implementação da Lei nº 11.441/07 (regulamentada pela Resolução n° 35/2007 do CNJ e pelos itens 89/154 do Cap. XIV das NSCGJ) leva à conclusão que outras práticas tendentes à desjudicialização de procedimentos podem ser testadas. A título de exemplo, a ampliação das hipóteses de separação, divórcio e inventário na via extrajudicial.

Jornal do Notário – Em sua experiência como magistrado, qual a diferença ao analisar um instrumento público e um instrumento particular como meio de prova em uma ação judicial?

Roberto Maia Filho – Teoricamente, não há hierarquia entre provas. Pelo princípio da persuasão racional, também conhecido como da livre convicção motivada do Juiz, consagrado no art. 131 do Código de Processo Civil, cabe ao Juiz apreciar livremente as provas dos autos, escolhendo qualquer delas que lhe pareça convincente, desde que fundamente os motivos e as razões do seu convencimento. Na prática, todavia, algumas provas têm, de antemão, uma confiabilidade maior e são muito bem vindas pelo magistrado, pois lhe dão segurança e permitem um julgamento solidamente fundamentado. É o caso do instrumento público, que se não de todo invulnerável, resiste bem mais às suspeitas de toda ordem que os demais meios ordinários probatórios.

Fonte: Jornal do Notário, Informativo do Colégio Notarial do Brasil – seção São Paulo – Ano XII – N.º 137 maio – 2010