CSM|SP: Registro de Imóveis – Dúvida inversa – Escritura pública de compra e venda de imóvel em que figura, como vendedora, pessoa jurídica – Distrato social registrado anteriormente na Jucesp que não enseja a automática extinção da personalidade jurídica da empresa – Panorama fático desenhado nos autos que permite concluir pela regularidade da representação da pessoa jurídica no título levado a registro – Óbices apresentados pela registradora que merecem ser afastados para ingresso do título no fólio real – Apelação provida.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos do(a) Apelação nº 1027686-09.2016.8.26.0577, da Comarca de São José dos Campos, em que é apelante SÉRGIO ANTÔNIO MONTEIRO PORTO, é apelado TABELIAO DO PRIMEIRO CARTORIO DE REGISTRO DE IMOVEIS DE SÃO JOSÉ DOS CAMPOS.

ACORDAM, em Conselho Superior de Magistratura do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão: “Deram provimento à apelação, para o fim de julgar improcedente a dúvida registral e determinar o registro do título, v.u.”, de conformidade com o voto do Relator, que integra este Acórdão.

O julgamento teve a participação dos Exmos. Desembargadores PEREIRA CALÇAS (PRESIDENTE TRIBUNAL DE JUSTIÇA) (Presidente), ARTUR MARQUES (VICE PRESIDENTE), DAMIÃO COGAN (DECANO), EVARISTO DOS SANTOS(PRES. DA SEÇÃO DE DIREITO PÚBLICO), CAMPOS MELLO (PRES. DA SEÇÃO DE DIREITO PRIVADO) E FERNANDO TORRES GARCIA(PRES. SEÇÃO DE DIREITO CRIMINAL).

São Paulo, 13 de setembro de 2018.

GERALDO FRANCISCO PINHEIRO FRANCO

Corregedor Geral da Justiça e Relator

Apelação nº 1027686-09.2016.8.26.0577

Apelante: Sérgio Antônio Monteiro Porto

Apelado: Tabelião do Primeiro Cartório de Registro de Imóveis de São José dos Campos

VOTO Nº 37.557

Registro de Imóveis – Dúvida inversa – Escritura pública de compra e venda de imóvel em que figura, como vendedora, pessoa jurídica – Distrato social registrado anteriormente na Jucesp que não enseja a automática extinção da personalidade jurídica da empresa – Panorama fático desenhado nos autos que permite concluir pela regularidade da representação da pessoa jurídica no título levado a registro – Óbices apresentados pela registradora que merecem ser afastados para ingresso do título no fólio real – Apelação provida.

Trata-se de recurso de apelação [1] interposto por Sérgio Antônio Monteiro Porto contra a sentença proferida pelo MM. Juiz Corregedor Permanente do 1º Oficial de Registro de Imóveis, Títulos e Documentos e Civil de Pessoa Jurídica de São José dos Campos/SP [2], que em procedimento de dúvida inversa confirmou os óbices impostos pela registradora para registro da escritura de compra e venda tendo por objeto o imóvel matriculado sob nº 101.583 naquela serventia extrajudicial.

Em suas razões de inconformismo, alega o apelante, em síntese, ter adquirido o apartamento nº 11 do edifício localizado na Rua Bárbara K. Loureiro, 91, da empresa Concrex, da qual foi sócio majoritário. Aduz que a escritura de compra e venda foi lavrada em 10.08.2012, nela tendo figurado como comprador e também como representante legal da vendedora, nos termos do contrato social da empresa. Esclarece que, em 19.08.1998, a sócia Guilhermina doou a totalidade de suas quotas (1,32%) ao sócio, filho e herdeiro, ora apelante, com a expressa anuência e concordância de Luiz Roberto Monteiro Porto, seu outro filho e herdeiro, tendo constado que o valor correspondente às quotas integrava a parte disponível do bens da doadora, com dispensa da colação. Sustenta o apelante, assim, que todas as quotas da empresa passaram a lhe pertencer, sendo nomeado procurador da doadora, com poderes especiais para, a qualquer tempo, formalizar a transferência das quotas doadas para seu próprio nome ou de terceiros que indicasse e firmar alterações contratuais da empresa Concrex. Afirma que, em 20.01.1993, o apelante e Guilhermina, que já havia doado suas cotas, mas ainda constava formalmente dos quadros societários da empresa, firmaram distrato social em que constou a realização do ativo da sociedade e a inexistência de passivo ou de patrimônio a ser rateado entre os sócios. Acrescenta que, em 28.06.1997, ocorreu o óbito de Guilhermina, certo que, em razão da doação das quotas sociais realizada em favor do apelante e da anuência do outro herdeiro, nem as referidas quotas, nem o apartamento registrado em nome da sociedade dissolvida foram objeto de partilha. Dessa forma, entende que não há necessidade de transferência do imóvel, na proporção de 1,93%, ao espólio de Guilhermina, tampouco de partilha das quotas da empresa ou mesmo do imóvel, eis que válida a doação das quotas antes da dissolução da sociedade. Acrescenta que as exigências formuladas revelam extremo formalismo, pois demonstrada a ausência de prejuízos a terceiros.

A Douta Procuradoria de Justiça opinou pelo não provimento do recurso [3].

É o relatório.

O dissenso versa sobre a registrabilidade da escritura de venda e compra lavrada em 10 de agosto de 2012, por meio da qual a empresa Concrex – Tecnologia de Concreto Usinado Ltda. (dissolvida), representada por seu sócio, Sérgio Antônio Monteiro Porto, a ele vendeu o imóvel objeto da matrícula nº 101.583 do 1º Oficial de Registro de Imóveis de São José dos Campos/SP [4].

Na nota de devolução [5] elaborada por ocasião da qualificação negativa do título, a Oficial registradora formulou as seguintes exigências:

“a) A liquidação da sociedade, devendo existir uma alteração contratual para nomear um liquidante, sendo o espólio de Guilhermina Monteiro Porto representado por alvará judicial.

b) Lavratura de uma escritura de dação em pagamento, subscrito pelo liquidante, onde o imóvel será transferido para o sócio Sérgio Antonio Monteiro Porto e para o espólio do Guilhermina Monteiro Porto, na proporção da cota que cada um possuía na sociedade.

c) Partilha da parte pertencente ao espólio de Guilhermina Monteiro Porto, podendo essa ser judicial ou extrajudicial, essa última modalidade se preenchidos os requisitos exigidos pela lei.”

Aduz o apelante que as exigências apresentadas pela registradora não se sustentam porque a falecida Guilhermina havia lhe doado todas as suas quotas sociais, com a anuência do outro herdeiro, bem como porque, no instrumento de distrato social, constou expressamente que a pessoa jurídica realizou seu ativo e não deixou passivo, nem patrimônio a ser rateado entre os sócios. Assim foi feito, pois os bens da sociedade seriam revertidos ao sócio remanescente, ora apelante, a quem passou a pertencer a totalidade das quotas sociais.

Por conseguinte, afirma ser dispensável a transferência do imóvel, na proporção de 1,93%, ao espólio de Guilhermina, bem como sua partilha.

No caso concreto, mister consignar que o contrato de doação de quotas sociais não foi devidamente averbado na JUCESP, de forma que, à época do distrato social, Guilhermina ainda constava formalmente como sócia da pessoa jurídica denominada Concrex Tecnologia de Concreto Usinado Ltda.

Por outro lado, no instrumento de distrato acostado aos autos, datado de 20.01.1993 e averbado na JUCESP em 04.03.1993, ficou constando, expressamente, que: “a sociedade realizou o seu ativo e resolveu os compromissos, não restando passivo, nem patrimônio a ser rateado entre os sócios”. Consta, ainda, que “Os sócios dão-se, reciprocamente, ampla quitação, nada mais tendo a reivindicar a qualquer título, em qualquer época”, sendo que o “sócio Sérgio Antonio Monteiro Porto assume a responsabilidade da guarda doslivros e documentos da sociedade” [6].

O art. 51, caput, do Código Civil dispõe que nos casos de dissolução da pessoa jurídica ou cassada a autorização para seu funcionamento, ela subsistirá para fins de liquidação, até que esta se conclua. Na hipótese em análise, não houve liquidação, tendo os sócios deliberado pela extinção da sociedade de plano ao declarar a inexistência de passivo e ativo, o que, contudo, não corresponde à realidade na medida em que apenas em 2012 foi lavrada escritura de compra e venda tendo por objeto o imóvel de titularidade da Concrex.

É preciso lembrar que a dissolução da pessoa jurídica não extingue, de imediato, sua personalidade, que irá persistir até a finalização de sua liquidação, quando então se dará o cancelamento de sua inscrição no órgão competente (art. 51, § 3º, c.c. art. 1.109, caput, do Código Civil). É dizer: optando os sócios da pessoa jurídica pelo encerramento das atividades mercantis, o registro obrigatório do documento que formaliza a dissolução extrajudicial se caracteriza apenas como a primeira das três fases do procedimento de extinção da personalidade, disciplinadas pela lei (dissolução, liquidação e partilha).

Entende-se por liquidação a total destinação do acervo líquido da pessoa jurídica, com pagamento do passivo e rateio do ativo remanescente. Para tanto, se não houver designação do liquidante no contrato social, os sócios deverão deliberar a respeito (CC, art. 1.038, caput), ficando o escolhido incumbido de pagar o passivo e de receber os ativos, prestando contas ao final (CC, art. 1.108). Apenas após a prestação de contas tem-se por extinta a sociedade (CC, art. 1.109).

No caso concreto, considerando o panorama fático desenhado nos autos, é possível concluir que o sócio Sérgio, ora apelante, não está a ocultar ou desviar bens da pessoa jurídica a fim de fraudar os demais herdeiros de Guilhermina, sócia falecida, tampouco o direito de terceiros. De fato, por constar do distrato que a sociedade já havia realizado seu ativo e resolvido seus compromissos, não restando passivo, nem patrimônio a ser rateado entre os sócios e, ainda, porque ao sócio Sérgio, ora apelante, coube a guarda dos livros e documentos da sociedade, conclui-se que há implícita autorização da parte de Guilhermina para que este atue na qualidade de liquidante, de forma a concluir as formalidades necessárias ao cumprimento das obrigações assumidas pela pessoa jurídica. Entendimento contrário revelaria demasiado apego a um formalismo exacerbado.

Assim sendo, à luz do disposto no art. 1.103, inciso IV, e no art. 1.105, ambos do Código Civil, há que se admitir a regularidade da representação da pessoa jurídica na escritura de compra e venda em questão, o que leva à superação dos óbices apresentados pela registradora, bem como à desnecessidade do referido alvará judicial para venda do imóvel. Ademais, é certo que as questões referentes à partilha do produto da venda ou da finalização do procedimento de liquidação, para regular encerramento da pessoa jurídica, são estranhas aos autos e irrelevantes para alterar a solução da dúvida suscitada pela registradora.

Cumpre ressaltar, ainda, que as cláusulas do contrato de doação e do mandato outorgado por Guilhermina ao filho, ora apelante, além da anuência dos demais herdeiros com o negócio celebrado em nome da sociedade dissolvida, permitem afirmar que os prejuízos trazidos pela negativa de registro superam os benefícios advindos da estrita obediência ao formalismo dos registros públicos.

Daí porque, a despeito dos respeitáveis fundamentos da r. sentença, o recurso, dada a peculiaridade do caso, comporta provimento.

Diante do exposto, dou provimento à apelação, para o fim de julgar improcedente a dúvida registral e determinar o registro do título.

GERALDO FRANCISCO PINHEIRO FRANCO

Corregedor Geral da Justiça e Relator

Notas:

[1] Fls. 82/87.

[2] Fls. 78/79.

[3] Fls. 90/92.

[4] Fls. 34/37.

[5] Fls. 45/51.

[6] Fls. 19/20.

(DJe de 18.03.2019 – SP)