CSM|SP: Escritura pública de venda e compra – Desqualificação – Descrição do imóvel no título que não corresponde à descrição atual do imóvel – Violação do princípio da especialidade objetiva – Falta de anuência do último cessionário – Necessidade, sob pena de desrespeito ao princípio da continuidade – Falta de dados referentes aos titulares falecidos – Necessidade, para atendimento do princípio da continuidade – Desnecessidade de informação quanto ao número de CPF e CNPJ dos interessados, não havendo dúvida quanto a sua identificação, tendo em vista o disposto no art. 176, parágrafo 2º, da Lei de Registros Públicos – Dúvida julgada procedente – Recurso não provido.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos do(a) Apelação nº 1120203-09.2016.8.26.0100, da Comarca de São Paulo, em que são partes são apelantes ERNESTO OPITZ (REPRES. NELSON MONTOVANELII) e HANNA GUDRUN OPITZ (REPRES. NELSON MONTOVANELLI), é apelado 5º OFICIAL DE REGISTRO DE IMÓVEIS DA COMARCA DA CAPITAL.

ACORDAM, em Conselho Superior de Magistratura do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão: “Negaram provimento à apelação, v.u.”, de conformidade com o voto do Relator, que integra este Acórdão.

O julgamento teve a participação dos Exmos. Desembargadores PAULO DIMAS MASCARETTI (Presidente), ADEMIR BENEDITO, XAVIER DE AQUINO (DECANO), LUIZ ANTONIO DE GODOY(PRES. DA SEÇÃO DE DIREITO PRIVADO), RICARDO DIP (PRES. DA SEÇÃO DE DIREITO PÚBLICO) E SALLES ABREU (PRES. SEÇÃO DE DIREITO CRIMINAL).

São Paulo, 16 de outubro de 2017.

MANOEL DE QUEIROZ PEREIRA CALÇAS

Corregedor Geral da Justiça e Relator

Apelação nº 1120203-09.2016.8.26.0100

Apelantes: Ernesto Opitz (repres. Nelson Montovanelii) e Hanna Gudrun Opitz (repres. Nelson Montovanelli)

Apelado: 5º Oficial de Registro de Imóveis da Comarca da Capital

VOTO Nº 29.855

Escritura pública de venda e compra – Desqualificação – Descrição do imóvel no título que não corresponde à descrição atual do imóvel – Violação do princípio da especialidade objetiva – Falta de anuência do último cessionário – Necessidade, sob pena de desrespeito ao princípio da continuidade – Falta de dados referentes aos titulares falecidos – Necessidade, para atendimento do princípio da continuidade – Desnecessidade de informação quanto ao número de CPF e CNPJ dos interessados, não havendo dúvida quanto a sua identificação, tendo em vista o disposto no art. 176, parágrafo 2º, da Lei de Registros Públicos – Dúvida julgada procedente – Recurso não provido.

Cuida-se de recurso de apelação tirado de sentença que julgou procedente dúvida suscitada pelo 5º Oficial de Registro de Imóveis da Capital, a teor de que o título não se harmoniza com os princípios da especialidade objetiva e subjetiva e da continuidade.

A Procuradoria Geral da Justiça propôs o não provimento do recurso.

Foi regularizada a representação processual da apelante.

É o relatório.

Preliminarmente, anoto que foi regularizada a representação processual da recorrente, devendo constar dos autos que se cuida de Medeiros Negócios Imobiliários Ltda, retificando-se a anotação no sistema informatizado.

O dissenso versa sobre a registrabilidade da escritura de venda e compra de fls. 13/22, por meio da qual Ernesto Opitz adquiriu imóvel de Espólio de Adolfo Daniel Schritzmeyer e outros. Seu ingresso no fólio real foi recusado pelo Oficial porque: (1) a descrição do imóvel não corresponde ao que consta das transcrições imobiliárias, em desrespeito ao princípio da especialidade objetiva; (2) falta anuência da última cessionária, Empreendimentos Imobiliários Angelo Bortolo S/A, afrontando o princípio da continuidade; (3) necessária qualificação de alguns dos titulares de domínio, apresentando-se certidões de óbito dos falecidos, CPF e CNPJ.

A deficiente identificação do imóvel impede a inscrição pretendida, pois em desconformidade com os princípios da legalidade e da especialidade objetiva. Dispõe o art. 225, parágrafo 2º, da Lei de Registros Públicos, que “Consideram-se irregulares, para efeito de matrícula, os títulos nos quais a caracterização do imóvel não coincida com a que consta do registro anterior.”

No caso vertente, a descrição que consta do título não corresponde às transcrições, o que é bastante para que o Oficial desqualifique o título, recusando seu ingresso no cadastro imobiliário, em respeito ao princípio da especialidade objetiva, que impõe que cada imóvel tenha descrição precisa que viabilize sua completa identificação e localização, distinguindo-se de todos os demais (LRP, art. 176).

O tema já foi tratado em precedentes deste C. Conselho Superior da Magistratura, como no apelo n. 0010422-67.2013.8.26.0361, de relatoria do então Corregedor Geral de Justiça, Dr. Hamilton Elliot Akel:

“(…)

No que respeita ao principio da especialidade objetiva, ele apenas seria respeitado se o título descrevesse o imóvel tal como no assento e, também, se esse assento contivesse perfeita individualização do bem.

Para Afrânio de Carvalho, o princípio da especialidade do imóvel significa a sua descrição como corpo certo, a sua representação escrita como individualidade autônoma, com o seu modo de ser físico, que o torna inconfundível e, portanto, heterogêneo em relação a qualquer outro (Registro de Imóveis: comentários ao sistema de registro em face da Lei 6.015/73, 2ª ed., Rio de Janeiro, 1977, p. 219). Por isso, o imóvel deve estar perfeitamente descrito no título objeto de registro de modo a permitir sua exata localização e individualização, não se confundindo com nenhum outro.

Narciso Orlandi Neto, ao citar Jorge de Seabra Magalhães, lembra que “as regras reunidas no princípio da especialidade impedem que sejam registrados títulos cujo objeto não seja exatamente aquele que consta do registro anterior. É preciso que a caracterização do objeto do negócio repita os elementos de descrição constantes do registro” (Narciso Orlandi Neto, Retificação do Registro de Imóveis, Juarez de Oliveira, pág. 68).

É certo que caberia mitigação no princípio da especialidade, caso o título – formal de partilha – espelhasse a antiga transcrição. Mas nem isso ocorre no caso. Enquanto a certidão oriunda do 1º registro de Imóveis menciona dois lotes de terreno, o formal de partilha, ao tratar de deles, discrimina-os como um só imóvel, não obstante a ausência de qualquer procedimento de unificação. E, mais, como ressalta o Oficial, traz medidas laterais inéditas, que não constam do assento. (grifo nosso)

A situação não melhora com os documentos trazidos no curso do processo, que, de mais a mais, não integram o título e, portanto, não podem ser admitidos. Por meu voto, à vista do exposto, nega-se provimento ao recurso.”

No caso em exame, a descrição contida na escritura pública é absolutamente dissonante da descrição do imóvel que consta no registro imobiliário. É certo que tal distinção decorre das diversas alterações jurídicas pelas quais passou o imóvel, incluindo nova especificação do condomínio. A unidade autônoma em questão (box 26-D), em razão da especificação e instituição de condomínio, passou a ter existência jurídica autônoma, de maneira que sua alienação demandaria correta descrição da unidade, não sendo suficiente a menção à parte ideal do terreno a que a unidade corresponderia. Consta, ainda, da escritura, que o Box 26-D corresponderia à unidade autônoma denominada “apartamento 101”, quando, em razão das alterações registrarias, passou a corresponder ao apartamento 121.

Desse modo, a descrição do imóvel, tal como consta da escritura lavrada no longínquo ano de 1962, não permite o ingresso do título no fólio real.

O fato de que consta da transcrição n. 19.382 ressalva quanto aos direitos de todas as negociações de unidades autônomas já outorgadas não socorre os recorrentes. Isso porque apenas preserva seu direito subjetivo, o que não se confunde com as exigências técnicas que se impõem para o ingresso do título no fólio real.

Não consta, ainda, anuência da promitente cessionária Empreendimentos Imobiliários Angelo Bortolo S/A (fls. 40), o que fere o princípio da continuidade.

No tocante às exigências de apresentação da certidão de óbito de Adolfo Daniel Schritzmeyer, Guilherme Paulo Eduardo Kraemer Junior e Francisco Costa, a recusa do registrador funda-se no princípio da especialidade subjetiva, cuja finalidade é identificar, individualizar, aquele que está transmitindo ou adquirindo algum tipo de direito no registro de imóveis, tornando-o inconfundível com qualquer outra pessoa.

No tocante aos proprietários falecidos à época da lavratura da escritura, era necessária não apenas a exibição das certidões de óbitos, como também demonstração da solução dada aos inventários mencionados na escritura pública, a fim de se verificar o respeito à continuidade registraria.

Em apenas um ponto a nota de devolução não prospera, o que não é suficiente, de qualquer modo, para a improcedência da dúvida: a exigência de números de CPF e de CNPJ. Cediço que o princípio da especialidade objetiva não pode ser considerado um fim em si mesmo, sob pena de negar o que pretende proteger, que é a segurança jurídica.

Por essas razões, o C. Conselho Superior da Magistratura tem admitido, em hipóteses excepcionais, a mitigação da especialidade subjetiva:

REGISTRO DE IMÓVEIS – Carta de adjudicação – Promitente vendedor falecido – CPF/MF inexistente – Exigência afastada – Impossibilidade de cumprimento pela apresentante – Princípio da segurança jurídica – Princípio da razoabilidade – Dúvida improcedente – Recurso provido. (Apelação n° 0039080-79.2011.8.26.0100, CSM, rel. Des. José Renato Nalini, 20/09/2012).

“(…) Assim, para não sacrificar a segurança jurídica e a publicidade, é de rigor flexibilizar, in concreto, a severidade do princípio da especialidade subjetiva, dispensado a informação sobre o número do CPF/MF de Henri Marie Octave Sannejouand, cujo número de inscrição do Registro Geral é, de mais a mais, conhecido e consta da matrícula do imóvel (RG n.º 75.149 – mod. 19 – fls. 07), em sintonia com a carta de arrematação (fls. 23). A especialidade subjetiva, se, na hipótese, valorada com excessivo rigor, levará, em desprestígio da razoabilidade, até porque a exigência não pode ser satisfeita pela interessada, ao enfraquecimento do princípio da segurança jurídica, o que é um contrassenso. Com a exigência, o que se perde, confrontado com o ganho, tem maior importância, de sorte a justificar a reforma da sentença: a garantia registaria é instrumento, não finalidade em si, preordenando-se a abrigar valores cuja consistência jurídica supera o formalismo (…)”.

Assim, embora as qualificações das partes no título não estejam perfeitas, o registrador não afirmou não haver elementos suficientes a eliminar qualquer dúvida quanto às pessoas que figuram como titulares de domínio e cedentes.

É preciso observar, ainda, que os primeiros proprietários adquiriram o bem em 1943 e que a escritura que se pretende registrar foi lavrada em 1962, época em que não havia o rigor legal de hoje quanto à precisão da qualificação das partes, o que explica o motivo das omissões levantadas pelo registrador quanto aos cadastros mantidos junto à Receita Federal.

Ciente da falta de precisão de dados qualificativos antes da vigência da Lei de Registros Públicos, o legislador, ao editar a norma vigente, previu a regra de transição disposta no § 2º do art. 176:

§ 2º Para a matrícula e registro das escrituras e partilhas, lavradas ou homologadas na vigência do Decreto nº 4.857, de 9 de novembro de 1939, não serão observadas as exigências deste artigo, devendo tais atos obedecer ao disposto na legislação anterior.

Diante deste cenário, especialmente por não constar que haja dúvidas quanto à identidade das pessoas, apenas nesse ponto não devem prevalecer as exigências, ressalvada dúvida concreta quanto à identidade dos titulares de domínio e cedentes.

Isto posto, pelo meu voto, nego provimento à apelação.

MANOEL DE QUEIROZ PEREIRA CALÇAS

Corregedor Geral da Justiça e Relator 

(DJe de 07.12.2017 – SP)