CGJ/SP: Averbação. Desdobro. Contrato arquivado no RI que proíbe o desdobro. Aprovação de lei municipal superveniente que permite o desdobro. Prevalência da lei municipal.

PARECER Nº 396/2009-E – PROCESSO CG Nº 2009/79569 – Data inclusão: 19/01/2010

REGISTRO DE IMÓVEIS – Desdobro – Lote – Aprovação pelo Município que faz presumir o respeito à legislação urbanística – Restrição urbanística prevista no contrato padrão arquivado com o registro do loteamento, por outro lado, que foi expressamente revogada por legislação municipal posterior – Recurso provido para afastar a recusa da averbação do desdobro.

Excelentíssimo Senhor Corregedor Geral da Justiça:

Trata-se de recurso interposto por Assir Soares de Oliveira contra r. decisão da MM. Juíza Corregedora Permanente do Oficial de Registro de Imóveis, Títulos e Documentos e Civil de Pessoa Jurídica da Comarca de Lins que manteve a recusa de averbação do desdobro do imóvel objeto da matrícula nº 33.139, consistente no lote 41 da quadra “A” do loteamento denominado “Recanto Dourado”, em razão da existência de restrição convencional.

O recorrente alega, em suma, que em ocasião anterior foram admitidos e averbados os desdobros dos lotes nºs 22 da quadra A do Loteamento “Recanto Dourado”, o que ensejou a abertura das matrículas nºs 26.597 e 26.598, e também dos lotes nºs 44 e 50, não podendo receber tratamento distinto daquele dispensado aos proprietários de outros lotes. Assevera que compete ao município promover o ordenamento territorial mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano, como previsto no artigo 30, inciso VII, da Constituição Federal. Aduz que a jurisprudência adotada para a recusa da averbação do desdobro viola disposição da Constituição Federal, ficando a matéria prequestionada para efeito de recurso. Afirma, por outro lado, que a Lei Complementar Municipal nº 488, de 11 de maio de 1999, revogou a restrição urbanística convencional e deve prevalecer porque é posterior ao registro do loteamento. Requer a reforma da r. decisão recorrida para que seja promovido o desdobro do imóvel.

A douta Procuradoria Geral da Justiça opina pelo não provimento do recurso.

Opino.

Conforme consta das informações e dos documentos apresentados pelo Sr. Oficial de Registro de Imóveis de Lins, o contrato padrão arquivado com o registro do loteamento “Recanto Dourado” contém, em sua cláusula décima primeira, vedação ao desdobro dos lotes (fls. 27/44).

Essa restrição urbanística convencional, ainda segundo informado pelo Sr. Oficial de Registro de Imóveis de Lins, foi imposta com o registro do loteamento promovido, na matrícula nº 22.507, em 26 de setembro de 1997 (fls. 29).

Ocorre que a Lei Complementar nº 488, de 11 de março de 1999, do Município de Lins, cuja vigência também se verifica nas informações prestadas pelo Sr. Oficial de Registro de Imóveis (fls. 29/30), expressamente revogou, em seu artigo 3º, parágrafo 1º, todas as restrições urbanísticas, relativas a desmembramentos e unificações, previstas em memoriais descritivos de loteamentos já existentes e aprovados, o que fez da seguinte forma:

Art. 3º – Desde que atenda aos requisitos desta Lei Complementar e da Lei Federal nº 6.766, de 19/12/79, poderão ser executados quaisquer tipos de loteamento, desmembramento, unificação, remembramento e assentamento urbano e de expansão urbana do município de Lins, quer sejam já existentes, aprovados ou novos.

§ 1º – Não serão consideradas as eventuais restrições previstas em memoriais descritivos de loteamentos já existentes e aprovados, devendo os mesmos também se enquadrar nesta Lei Complementar e na Lei Federal nº 6.766, de 19/12/79, para fins de desmembramentos ou unificações”.

Pretendeu-se, pois, com a nova ordem legal, alterar o ordenamento urbanístico existente naquele Município, afastando-se, em relação aos loteamentos já existentes e aprovados, as restrições para desmembramentos ou unificações impostas de forma convencional (artigos 18, inciso VI e 26, inciso VII, da Lei nº 6.766/79) que ficaram, a partir de sua vigência, sujeitas apenas aos requisitos da legislação municipal aplicável.

Sem ignorar os precedentes desta Egrégia Corregedoria Geral da Justiça e do Colendo Conselho Superior da Magistratura sobre a matéria, tenho que a nova legislação urbanística municipal prevalece em relação às restrições convencionais anteriormente impostas, se conflitantes.

João Baptista Galhardo esclarece que as restrições urbanísticas convencionais são supletivas da legislação permanente e, ainda, que:

As limitações urbanísticas são impostas em benefício geral do loteamento. Gravam o lote em favor de uma comunidade. Obriga tanto quem originalmente adquiriu a unidade do parcelador, como também seus sucessores a título universal ou singular. Essas restrições a que ficam obrigados os lotes referem-se, entre outras, ao tamanho, desdobro, tipo de construção, natureza do aproveitamento (comercial, residencial, industrial), recuo etc.” (O Registro do Parcelamento do Solo para fins Urbanos, Porto Alegre: IRIB: S.A. Fabris, 2004, p. 84).

São, desse modo, restrições mais gravosas em relação à legislação urbanística vigente na época da aprovação e do registro do loteamento, impostas pelo loteador com o referido registro, e prevalecem em relação a todos os lotes, mesmo que renegociados pelos adquirentes originais, enquanto não forem regularmente revogadas.

E por serem supletivas em relação à legislação urbanística, não se exige do Município o controle do respeito às restrições convencionais impostas com o registro de loteamento, assim como não tem a autorização municipal para o desdobro ou construção, emitida na via administrativa, o condão de, por si só, revogá-las. Desse modo ficou assentado no Processo CG nº 227/07, em que aprovado parecer da lavra do MM. Juiz Auxiliar da Corregedoria, Dr. Vicente de Abreu Amadei, com ementa em que se verifica:

Registro de Imóveis – Loteamento – Requerimento de averbação de desdobro de lote – Restrição urbanística do loteamento publicada no registro predial, que veda a subdivisão de lotes – Prevalência da restrição convencional à aprovação municipal do desdobro (Processos CG nºs 29/2006 e 453/2006; CSM, Apelações Cíveis nºs 22.300 – 0/0 e 63.641 – 0/6) – Irrelevância da anuência do loteador e de sociedade de amigos de bairro, fora do quadro adequado para alteração ou cancelamento da restrição – Averbação indeferida – Recurso não provido”.

Bem por isso, a Lei nº 6.766/79 não prevê, em seus artigos 18, inciso VI, e 26, a obrigatoriedade da aprovação municipal do contrato padrão que deverá ser arquivado com o registro do loteamento.

Dessa forma, se do município não é exigido o controle das restrições urbanísticas convencionais para a emissão do ato administrativo de autorização para desdobro ou, por exemplo, construção, não tem esse ato, por sua natureza, o condão de revogar restrições convencionais mais gravosas que as decorrentes da legislação municipal vigente quando do registro do loteamento.

O Município, porém, é dotado de competência concorrente para legislar sobre matéria urbanística, de forma a ordenar a ocupação e o uso de seu solo urbano, prevendo o artigo 30, inciso VIII, da Constituição Federal que:

Art. 30. Compete aos Municípios:

VIII – promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano;

Em complementação, o artigo 182 da Constituição Federal atribui ao Poder Público municipal a execução da política de desenvolvimento urbano, o faz do seguinte modo:

Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem _ estar de seus habitantes.

§ 1º – O plano diretor, aprovado pela Câmara Municipal, obrigatório para cidades com mais de vinte mil habitantes, é o instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana.

§ 2º – A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor”.

Para a consecução da política urbana, a Lei nº 10.257/01 permite ao Município, entre outras medidas: I) elaborar o plano diretor, aprovado por lei municipal, como instrumento básico da política de desenvolvimento e expansão urbana (artigo 40); II) determinar, por meio de lei municipal específica para área incluída no plano diretor, o parcelamento, a edificação ou a utilização compulsórios do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, devendo fixar as condições e os prazos para implementação da referida obrigação (artigo 5º); III) delimitar área para aplicação das operações urbanas consorciadas a que se refere seu artigo 32; IV) autorizar, por lei, que o proprietário de imóvel urbano, privado ou público, exerça em outro local ou aliene o direito de construir previsto no plano diretor ou em legislação urbanística dele decorrente, nas hipóteses previstas em seu artigo 35; V) definir, por lei, os empreendimentos e atividades privados ou públicos, em área urbana, que dependerão de elaboração de estudo prévio de impacto de vizinhança (EIV) para obtenção das licenças ou autorizações de construção, ampliação ou funcionamento a cargo do Poder Público municipal, como previsto no artigo 36.

Na consecução da política urbana, assim, pode o município, respeitado o princípio da legalidade, impor restrições ao exercício do direito de propriedade para que essa cumpra a sua função social, o que, reitero, ocorre quando a propriedade atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor (artigo 182, parágrafo 2º, da Constituição Federal).

Diante disso, não há como, nesta esfera administrativa, negar vigência à Lei Complementar nº 488/99, do Município de Lins, que de forma expressa revogou as restrições urbanísticas convencionais, para desmembramentos e unificações de lotes, impostas em loteamentos anteriores à sua vigência, o que é o caso do loteamento “Recanto Dourado”.

Solução diversa, no sentido da prevalência das restrições urbanísticas convencionais revogadas por posterior lei municipal específica, depende do recurso de eventual interessado às vias ordinárias, por implicar em declaração de ilegalidade ou inconstitucionalidade de lei, o que o presente procedimento administrativo não comporta (cf. C. Conselho Superior da Magistratura, Apelação Cível nº 85 _6/9, da Comarca de Ribeirão Pires, e Colendo Conselho Nacional de Justiça, PP 200710000016070 – Rel. Cons. Andréa Pachá – 60ª Sessão – j. 08.04.2008 – DJU 07.05.2008; PCA 200810000012457 – Rel. Cons. Paulo Lôbo – 72ª Sessão – j. 21.10.2008 – DJU 07.11.2008; PP 200810000007000 – Rel. Cons. Altino Pedrozo dos Santos – 69ª Sessão – j. 09.09.2008 – DJU 26.09.2008; PCA 199 – Rel. Cons. Marcus Faver – 30ª Sessão – j. 28.11.2006 – DJU 13.12.2006).

Admitiu-se, é certo, no âmbito da Egrégia Corregedoria Geral da Justiça, em hipótese excepcional, havendo evidente contradição entre o texto de artigo da Constituição Federal e aquele contido em norma infraconstitucional, o reconhecimento da prevalência do primeiro, situação que, contudo, não se configura neste caso concreto.

Portanto, a restrição urbanística convencional prevalece sempre que for mais gravosa em relação à legislação vigente quando do registro do loteamento, desde que não colida com norma de ordem pública, e perdura enquanto for compatível com a legislação que lhe seguir, não for regularmente revogada, ou não cair em desuso.

No sentido da solução proposta, cabe anotar, encontra-se o r. parecer apresentado pelo MM. Juiz Auxiliar da Corregedoria, Dr. Márcio Martins Bonilha Filho, no Processo CG nº 1993/95, da Comarca de Rio Claro, que foi acolhido pelo Excelentíssimo Desembargador Antônio Carlos Alves Braga, então Corregedor Geral da Justiça, com o seguinte teor:

Quanto ao mais, fosse a mera autorização municipal obtida, penderiam, na hipótese vertente, restrições convencionais, entre elas, a vedação de subdividir o lote, a ensejar o motivo da recusa. Contudo, na hipótese vertente, a questão posta em controvérsia deveria ter recebido outro enfoque, na consideração que, sobre o tema, houve superveniente edição da Lei Municipal n. 2.114 de 22 de dezembro de 1.986, autorizando o desdobro de lotes e revogando disposições contrárias. Mais do que simples autorização, a pretensão, portanto, está escorada em norma legal formalmente editada, que prevalecerá sobre as cláusulas contratuais de loteamento.

Vale dizer, no exercício de sua soberania política, o Município entendeu conveniente remanejar o uso do solo urbano, permitindo desdobros e fracionamentos de lotes, inserindo na aludida Lei o loteamento Jardim Azul.

A formalização da Lei Municipal, que sobreveio, regulando diversamente o uso do solo no local, não se confunde com mera autorização, anotado que seus preceitos, porque legais, passam a prevalecer sobre convenções particulares, em quadro diverso daquele encontrado nos autos do Proc. CG 994/95 e na Apelação Cível 22.300 – 0/0. Bem por isso, verifica-se que a pretensão da recorrente não ofende direito do loteador, de vizinhos ou de terceiros, tendo em vista que se está exercendo o direito conferido pela legislação municipal concernente ao local. Nesse sentido, já se assentou que “quem usa normal e legalmente de seu direito não ofende o direito de outrem, pois não há direito contra direito. Usar do solo urbano segundo a destinação legal da área é exercício regular do direito de propriedade” (Hely Lopes Meirelles, Estudos e Pareceres de Direito Público, vol. V, RT, pág. 09). Na espécie, o interesse público expresso na norma legal urbanística suplanta o interesse particular do loteador dos adquirentes do lote, consignado em suas avenças individuais (RDA 120/479)”.

Ante o exposto, o parecer que respeitosamente submeto à elevada apreciação de Vossa Excelência é no sentido de dar provimento ao recurso para afastar a recusa de averbação do desdobro do imóvel objeto da matrícula nº 33.139 do Registro de Imóveis de Lins.

Sub censura.

São Paulo, 02 de dezembro de 2009.

José Marcelo Tossi Silva – Juiz Auxiliar da Corregedoria

DECISÃO: Aprovo o parecer do MM. Juiz Auxiliar da Corregedoria e, por seus fundamentos, que adoto, dou provimento ao recurso para afastar a recusa de averbação do desdobro do imóvel objeto da matrícula nº 33.139 do Registro de Imóveis da Comarca de Lins. Publique-se. São Paulo, 9 de dezembro de 2009. REIS KUNTZ – Corregedor Geral da Justiça.