STJ: Direito civil – Recurso especial – Ação de dissolução de união estável – Desconsideração inversa da personalidade jurídica – Possibilidade – Reexame de fatos e provas – Inadmissibilidade – Legitimidade ativa – Companheiro lesado pela conduta do sócio – Artigo analisado: 50 do CC/02.

Superior Tribunal de Justiça

RECURSO ESPECIAL Nº 1.236.916 – RS (2011/0031160-9)
RELATORA : MINISTRA NANCY ANDRIGHI
RECORRENTE : TECNOVIDRO INDÚSTRIA DE VIDROS LTDA
ADVOGADO : AIR PAULO LUZ E OUTRO(S)
RECORRIDO : LEONOR MASSOLINI SCHULKE
ADVOGADO : DENISE FÁTIMA KEMPF E OUTRO(S)
INTERES. : MARCO DE BASTIANI
EMENTA

DIREITO CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE DISSOLUÇÃO DE UNIÃO ESTÁVEL. DESCONSIDERAÇÃO INVERSA DA PERSONALIDADE JURÍDICA. POSSIBILIDADE. REEXAME DE FATOS E PROVAS. INADMISSIBILIDADE. LEGITIMIDADE ATIVA. COMPANHEIRO LESADO PELA CONDUTA DO SÓCIO. ARTIGO ANALISADO: 50 DO CC/02.

1. Ação de dissolução de união estável ajuizada em 14.12.2009, da qual foi extraído o presente recurso especial, concluso ao Gabinete em 08.11.2011.
2. Discute-se se a regra contida no art. 50 do CC/02 autoriza a desconsideração inversa da personalidade jurídica e se o sócio da sociedade empresária pode requerer a desconsideração da personalidade jurídica desta.
3. A desconsideração inversa da personalidade jurídica caracteriza-se pelo afastamento da autonomia patrimonial da sociedade para, contrariamente do que ocorre na desconsideração da personalidade propriamente dita, atingir o ente coletivo e seu patrimônio social, de modo a responsabilizar a pessoa jurídica por obrigações do sócio controlador.
4. É possível a desconsideração inversa da personalidade jurídica sempre que o cônjuge ou companheiro empresário valer-se de pessoa jurídica por ele controlada, ou de interposta pessoa física, a fim de subtrair do outro cônjuge ou companheiro direitos oriundos da sociedade afetiva.
5. Alterar o decidido no acórdão recorrido, quanto à ocorrência de confusão patrimonial e abuso de direito por parte do sócio majoritário, exige o reexame de fatos e provas, o que é vedado em recurso especial pela Súmula 7/STJ.
6. Se as instâncias ordinárias concluem pela existência de manobras arquitetadas para fraudar a partilha, a legitimidade para requerer a desconsideração só pode ser daquele que foi lesado por essas manobras, ou seja, do outro cônjuge ou companheiro, sendo irrelevante o fato deste ser sócio da empresa.
7. Negado provimento ao recurso especial.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da TERCEIRA Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas constantes dos autos, por unanimidade, negar provimento ao recurso especial, nos termos do voto da Sra. Ministra Relatora. Os Srs. Ministros Sidnei Beneti, Paulo de Tarso Sanseverino e Ricardo Villas Bôas Cueva votaram com a Sra. Ministra Relatora. Ausente, justificadamente, o Sr. Ministro João Otávio de Noronha.

Brasília (DF), 22 de outubro de 2013(Data do Julgamento)

MINISTRA NANCY ANDRIGHI

Relatora

RELATÓRIO

A EXMA. SRA. MINISTRA NANCY ANDRIGHI (Relator):

Cuida-se de recurso especial interposto por TECNOVIDRO INDÚSTRIA DE VIDROS LTDA. com fundamento nas alíneas “a” e “c” do permissivo constitucional, contra acórdão proferido pelo TJ/RS.
Ação: de dissolução de união estável, ajuizada por Leonor Massolini Schulke, em face de Marco de Bastiani, em que o interessado apresentou reconvenção.
Decisão interlocutória: determinou: i) a desconsideração da personalidade jurídica da empresa recorrente, da qual a recorrida e seu companheiro são sócios, para atingir o patrimônio do ente societário, em virtude da existência de confusão patrimonial, e ii) a indisponibilidade dos bens da recorrente e da Casa Vitra Indústria de Eletrodomésticos Ltda., sob o fundamento de que essa empresa teria sido criada para servir de instrumento para práticas fraudulentas, envolvendo o patrimônio da recorrente.
Acórdão: manteve a decisão unipessoal do Relator que negou provimento ao agravo de instrumento, nos termos da seguinte ementa:

AGRAVO INTERNO. DISSOLUÇÃO DE UNIÃO ESTÁVEL. DESCONSTITUIÇÃO INVERSA DA PERSONALIDADE JURÍDICA. POSSIBILIDADE. CONFUSÃO PATRIMONIAL. VARÃO QUE TEM QUASE A TOTALIDADE DAS COTAS PATRIMONIAIS DA EMPRESA. PATRIMÔNIO QUE SE CONFUNDE. INDÍCIOS DE FRAUDE NA CONSTITUIÇÃO DA NOVA EMPRESA. MANUTENÇÃO DA DECISÃO ATACADA. (e-STJ fl. 485)

Recurso especial: alega a violação do art. 50 do CC/02. Assevera que a desconsideração é possível apenas com o objetivo de responsabilizar o patrimônio pessoal do sócio por obrigações da sociedade. Argumenta que a desconsideração da personalidade jurídica da empresa não pode ser requerida por sócio dessa empresa. Sustenta a inexistência de comprovação do abuso da personalidade jurídica da sociedade. Aduz a violação do princípio da boa-fé objetiva, do qual decorre o venire contra factum proprium, na medida em que a recorrida somente deixou de concordar com a lisura da composição do quadro societário após mais de vinte anos. Argumenta que, ao contrário do que afirma a recorrida, a empresa Casa Vitra não foi criada para desviar valores da recorrente, tendo em vista que o objeto social das empresas é distinto.
Juízo de admissibilidade: após a apresentação das contrarrazões, o recurso especial foi admitido na origem.
Parecer do MPF: de lavra do i. Subprocurador-Geral da República Hugo Gueiros Bernardes Filho, opina pelo desprovimento do recurso.

É o relatório.

VOTO

A EXMA. SRA. MINISTRA NANCY ANDRIGHI (Relator):

Cinge-se a controvérsia, em síntese, a determinar se a regra contida no art. 50 do CC/02 autoriza a chamada desconsideração inversa da personalidade jurídica; se a sócia da sociedade empresária pode requerer a desconsideração da personalidade jurídica desta; e se, na hipótese, está configurado o abuso de personalidade jurídica.

1. Da desconsideração inversa da personalidade jurídica.

Violação do art. 50 do CC/02.

01. A desconsideração inversa da personalidade jurídica caracteriza-se pelo afastamento da autonomia patrimonial da sociedade, para, contrariamente do que ocorre na desconsideração da personalidade jurídica propriamente dita, atingir o ente coletivo e seu patrimônio social, de modo a responsabilizar a pessoa jurídica por obrigações do sócio.
02. Conquanto a consequência de sua aplicação seja inversa, sua razão de ser é a mesma da desconsideração da personalidade jurídica propriamente dita: combater a utilização indevida do ente societário por seus sócios. Em sua forma inversa, mostra-se como um instrumento hábil para combater a prática de transferência de bens para a pessoa jurídica sobre o qual o devedor detém controle, evitando com isso a excussão de seu patrimônio pessoal.
03. Na seara doutrinária, quem primeiramente tratou do tema, foi o Prof. Fábio Konder Comparato, em sua obra “O Poder de Controle na Sociedade Anônima” (Rio de Janeiro: Editora Forense, 2008), da qual se extrai o seguinte ensinamento:

Aliás, a desconsideração da personalidade jurídica não atua apenas no sentido da responsabilidade do controlador por dívidas da sociedade controlada, mas também em sentido inverso, ou seja, no da responsabilidade desta última por atos do seu controlador. A jurisprudência americana, por exemplo, já firmou o princípio de que os contratos celebrados pelo sócio único, ou pelo acionista largamente majoritário, em benefício da companhia, mesmo quando não foi a sociedade formalmente parte do negócio, obrigam o patrimônio social, uma vez demonstrada a confusão patrimonial de facto. (p. 464)

04. Na mesma senda, o entendimento de Fábio Ulhoa Coelho:

Em síntese, a desconsideração é utilizada como instrumento para responsabilizar sócio por dívida formalmente imputada à sociedade. Também é possível, contudo, o inverso: desconsiderar a autonomia patrimonial da pessoa jurídica para responsabilizá-la por obrigação de sócio (Bastid-David-Luchaire, 1960:47). (Curso de Direito Comercial, volume 2: direito de empresa , 15ª ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 65)

05. Note-se que essa 3ª Turma, no julgamento do REsp 948.117/MS, de minha relatoria, DJe de 03.08.2010, já decidiu pela possibilidade da desconsideração inversa da personalidade jurídica.
06. A desconsideração inversa tem largo campo de aplicação no direito de família, em que a intenção de fraudar a meação leva à indevida utilização da pessoa jurídica.
07. No campo familiar, a desconsideração da personalidade jurídica, compatibilizando-se com a vedação ao abuso de direito, é orientada para reprimir o uso indevido da personalidade jurídica da empresa pelo cônjuge (ou companheiro) sócio que, com propósitos fraudatórios, vale-se da máscara societária para o fim de burlar direitos de seu par. Nessa medida, o que se pretende aqui, com a disregard doctrine, é afastar momentaneamente o manto fictício que separa os patrimônios do sócio e da sociedade para, levantando o “véu” da pessoa jurídica, buscar o patrimônio que, na realidade, pertence ao cônjuge (ou companheiro) lesado.
08. Pode-se vislumbrar situações, por exemplo, em que o cônjuge ou companheiro esvazia seu patrimônio pessoal, enquanto pessoa natural, e o integraliza na pessoa jurídica, de modo a afastá-lo da partilha. Também é possível que o cônjuge ou companheiro, às vésperas de seu divórcio ou dissolução da união estável, efetive sua retirada aparente da sociedade da qual é sócio, transferindo sua participação para outro membro da empresa ou para terceiro, também com o objetivo de fraudar a partilha.
09. Nessa ordem de ideias, a desconsideração inversa da personalidade jurídica poderá ocorrer sempre que o cônjuge ou companheiro empresário valer-se de pessoa jurídica por ele controlada, ou de interposta pessoa física, a fim de subtrair do outro cônjuge ou companheiro direitos oriundos da sociedade afetiva.
10. Na hipótese dos autos, o Tribunal de origem assim se manifestou a respeito da confusão patrimonial:

Observando as notas fiscais das fls. 1.259/1.290, verifica-se que são emitidas em nome da empresa, mas com endereço de imóvel pessoal do sócio. Referidas notas foram emitidas para compra de materiais empregados na construção de apartamento e reforma de sua residência. Há indicativos, ademais, que os automóveis utilizados pelas partes estariam registrados no nome da empresa. Os veículos da família, de igual sorte, seriam abastecidos em posto de gasolina na conta da empresa. (e-STJ fl. 488)

11. Percebe-se, portanto, que, à luz das provas produzidas, as instâncias ordinárias concluíram pela ocorrência de confusão patrimonial e abuso de direito por parte do sócio majoritário. Alterar o acórdão recorrido, quanto ao ponto, não seria possível sem o reexame de fatos e provas, o que é vedado em recurso especial pela Súmula 7/STJ.
12. Feitas essas considerações, tem-se que, a partir de uma a interpretação teleológica do art. 50 do CC/02, é possível a desconsideração inversa da personalidade jurídica, de modo a atingir bens da sociedade em razão de dívidas contraídas pelo sócio controlador, desde que preenchidos os requisitos previstos na norma. Por outro lado, se o Tribunal de origem, soberano na análise das provas, conclui pela existência de confusão patrimonial, não é possível alterar o acórdão recorrido, quanto ao ponto.

2. Da legitimidade ativa da recorrida.

13. Fixada a possibilidade da desconsideração inversa da personalidade jurídica, e tendo em vista que o Tribunal de origem, soberano na análise das provas, concluiu pela existência de confusão patrimonial, passa-se à análise da legitimidade ativa da recorrida.
14. A legitimidade para atuar como parte no processo, por possuir, em regra, vinculação com o direito material, é conferida, na maioria das vezes, somente aos titulares da relação de direito material.
15. Nesse contexto, ordinariamente, a legitimidade ativa para requerer a superação da personalidade jurídica no Direito de Família recai na figura do ente familiar titular do direito material perseguido, consoante o disposto no art. 6º do CPC.
16. A desconsideração inversa pretende alcançar bens ou rendimentos do ente familiar que, indevidamente, se confundiram com os da sociedade da qual é sócio. Nessa medida, a legitimidade para requerer a desconsideração é atribuída, em regra, ao familiar lesado pela conduta do sócio.
17. Na hipótese dos autos, ademais, a recorrida, apesar de sócia da sociedade recorrente, detém apenas 0,18% de suas quotas sociais, sendo a empresa gerida apenas por seu ex-companheiro. Por essa razão, a recorrida pode ser facilmente afastada de todas as decisões da empresa.
18. Não se olvida, ainda, que, detendo a recorrida uma parcela muito pequena das quotas sociais, seria extremamente difícil, quando não impossível, investigar os bens da empresa, a fim de que fosse respeitada sua meação. Não seria possível, ainda, garantir que os bens da empresa não seriam indevidamente dissipados, antes da conclusão da partilha.
19. Assim, se as instâncias ordinárias concluem pela existência de manobras arquitetadas para fraudar a partilha, a legitimidade para requerer a desconsideração só pode ser daquele que foi lesado por essas manobras, ou seja, do outro cônjuge ou companheiro, sendo irrelevante o fato deste ser sócio da empresa.
20. A legitimidade da recorrida, na hipótese, decorre não da sua condição de sócia, mas em virtude da sua condição de companheira.
21. Diante do exposto, portanto, conclui-se que o art. 50 do CC/02 não foi violado.

Forte nessas razões, NEGO PROVIMENTO ao recurso especial.

CERTIDÃO

Certifico que a egrégia TERCEIRA TURMA, ao apreciar o processo em epígrafe na sessão realizada nesta data, proferiu a seguinte decisão:
A Terceira Turma, por unanimidade, negou provimento ao recurso especial, nos termos do voto da Sra. Ministra Relatora.
Os Srs. Ministros Sidnei Beneti, Paulo de Tarso Sanseverino e Ricardo Villas Bôas Cueva votaram com a Sra. Ministra Relatora.
Ausente, justificadamente, o Sr. Ministro João Otávio de Noronha.