STJ: Recurso especial – Direito civil – Família – União estável – Regime de bens – Comunhão parcial de bens – Valorização de cotas sociais.

EMENTA
RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL. FAMÍLIA. UNIÃO ESTÁVEL. REGIME DE BENS. COMUNHÃO PARCIAL DE BENS. VALORIZAÇÃO DE COTAS SOCIAIS. 1. O regime de bens aplicável às uniões estáveis é o da comunhão parcial, comunicando-se, mesmo por presunção, os bens adquiridos pelo esforço comum dos companheiros. 2. A valorização patrimonial das cotas sociais de sociedade limitada, adquiridas antes do início do período de convivência, decorrente de mero fenômeno econômico, e não do esforço comum dos companheiros, não se comunica. 3. RECURSO ESPECIAL PROVIDO. (STJ – REsp nº 1.173.931 – Rio Grande do Sul – 3ª Turma – Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino – DJ 28.10.2013)
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros da TERCEIRA Turma do Superior Tribunal de Justiça, A Terceira Turma, por unanimidade, dar provimento ao recurso especial, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Ricardo Villas Bôas Cueva, Nancy Andrighi e Sidnei Beneti votaram com o Sr. Ministro Relator.
Ausente, justificadamente, o Sr. Ministro João Otávio de Noronha.
Dr(a). PAULO LAITANO TÁVORA, pela parte REPR. POR: I M R
Brasília (DF), 22 de outubro de 2013 (data do julgamento)
MINISTRO PAULO DE TARSO SANSEVERINO – Relator.
RELATÓRIO
O EXMO. SR. MINISTRO PAULO DE TARSO SANSEVERINO (Relator):
Trata-se de recurso especial interposto pelo ESPÓLIO DE A. P. R. contra acórdão da 8.ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, ementada nos seguintes termos, verbis:
APELAÇÃO. PRESTAÇÃO JURISDICIONAL INSUFICIENTE. INOCORRÊNCIA. MARCO INICIAL DA UNIÃO ESTÁVEL. ESPECIFICAÇÃO. VALORIZAÇÃO DE COTAS SOCIAIS. PARTILHA. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. CABIMENTO. – Os pedidos de natureza cautelar feitos na petição inicial foram decididos liminarmente pelo juízo e depois pelo Tribunal, ao julgar um recurso. No decorrer do processo, mais nada foi dito ou postulado em relação aos pedidos cautelares. Logo, na sentença não havia mais nada a ser decidido sobre eles. Assim, não houve prestação jurisdicional insuficiente. – Não há nos autos elementos capazes de demonstrar que a união estável iniciou em 1990 (como quer a parte autora) ou em 1994 (como quer a parte ré). – O contexto probatório mostrou que a união iniciou-se em 1993, como decidido na sentença. Aquela decisão cabe apenas um reparo, para o fim de especificar qual o mês, dentro do ano de 1993, em que a união se iniciou. – As cotas sociais das empresas eram patrimônio exclusivo do de cujus. No entanto, a valorização experimentada por tais cotas durante o período em que o de cujus viveu em união estável é patrimônio comum que, por isso, deve ser partilhado. – Ficou demonstrado que o de cujus abusou da personalidade jurídica de suas empresas, ao utilizar de forma indevida delas para o fim de ocultar bens passíveis de partilha. – Nesse contexto, cabível desconsiderar a personalidade jurídica das empresas. REJEITARAM A PRELIMINAR E NEGARAM PROVIMENTO AO PRIMEIRO APELO. UNÂNIME. DERAM PARCIAL PROVIMENTO AO SEGUNDO. POR MAIORIA.
Na origem, a parte recorrida moveu ação de reconhecimento e dissolução de sociedade de fato contra a sucessão do seu companheiro falecido.
A sentença julgou parcialmente procedentes seus pedidos, declarando a existência de união estável entre a autora e A. P. R., no período de 1993 até seu passamento, em 24/10/1997, bem como determinou a partilha da valorização das cotas sociais das empresas tituladas pelo falecido, no período de duração da união estável. Determinou, ainda, a partilha, na proporção de 50% do imóvel situado na Rua Irmão Egídio Justo, n.º 50, Bairro Jardim do Lado, na Cidade de Canoas/RS, e do automóvel GM/Vectra IBD, ano 1992/1993.
As duas partes apelaram da sentença.
Por sua vez, o Tribunal de origem, à unanimidade, rejeitou a preliminar e negou provimento ao apelo da parte autora, bem como, por maioria, deu parcial provimento ao apelo da parte ré, ora recorrente.
Irresignada, a parte ré interpôs recurso especial e, em suas razões, sustentou que o acórdão recorrido violou os artigos 5.º da Lei 9.278/96, 263, XIII, 269, I e IV, do Código de Processo Civil e 271, V e VI, do Código Civil de 1916. Aduziu ainda dissídio jurisprudencial. Postulou conhecimento e provimento do recurso.
Presentes as contrarrazões, o recurso especial foi admitido por decisão prolatada no Agravo de Instrumento n. 852.467/RS, da lavra do ilustre Ministro Paulo Furtado (Desembargador Convocado TJ/BA).
É o relatório.
VOTO
O EXMO. SR. MINISTRO PAULO DE TARSO SANSEVERINO (Relator):
Eminentes Colegas! A controvérsia devolvida ao conhecimento desta Corte situa-se apenas em torno de um tópico do acórdão recorrido consistente na possibilidade de comunicação da valorização que as cotas sociais de sociedade limitada, adquiridas antes do início da união estável, obtiveram durante o período de convivência.
Alega a parte recorrente que o regime de bens aplicável à união estável (comunhão parcial) determina que os bens e direitos que cada um dos companheiros possuir ao início do relacionamento não se comunicam, sendo essa também a correta interpretação a ser conferida às cotas sociais que o falecido já possuía antes do início do período de convivência.
Sustentou que a valorização das cotas sociais é fato meramente econômico, não representando um acréscimo patrimonial a ser partilhado.
O Tribunal de origem, considerando a valorização das cotas sociais como acréscimo patrimonial ocorrido durante o período da união estável, entendeu que deve integrar o patrimônio comum a ser partilhado.
No ponto, o acórdão recorrido assim decidiu, verbis:
(b) Valorização de Cotas Sociais.
Em seu apelo, a SUCESSÃO aduz que é descabido determinar a partilha da valorização que as cotas sociais pertencentes ao falecido ANNIVALDO (patrimônio exclusivo dele) sofreram durante o período em que ele viveu em união estável com MARIA. Mas a pretensão não calha.
Foi a própria SUCESSÃO, em suas razões de apelo, quem trouxe o argumento mais forte para embasar a determinação de partilha da valorização que as cotas sociais sofreram durante o período da união estável.
O argumento da SUCESSÃO, articulado extensamente, é que a valorização das cotas sociais não é fruto civil ou do trabalho.
Precisamente. A valorização das cotas sociais não é mesmo fruto civil ou do trabalho.
Até porque, se fosse, a depender do regime de bens ou da interpretação que se dá às normas legais atinentes ao regime de bens, aí sim ela seria patrimônio exclusivo a não ser partilhado.
É justamente por não ser fruto civil ou do trabalho que a valorização que as cotas sociais experimentam durante o período de união estável integra o patrimônio comum a ser partilhado.
Vale a pena ressaltar, para dissipar uma confusão constante nas razões de apelo, que falar em ‘Valorização das cotas sociais” é bem diferente do que falar em ‘valorização do patrimônio social’.
O “patrimônio social”, com o perdão da redundância, é o patrimônio da própria sociedade, e não dos sócios. Qualquer valorização que ele – o patrimônio da sociedade – experimentar vai reverter em favor da própria sociedade.
Em outras palavras, a valorização do patrimônio da sociedade vai passar a integrar o patrimônio da própria sociedade, e não de seus sócios.
As cotas sociais, de outra banda, são de propriedade de cada um dos sócios, enquanto pessoas físicas.
As cotas sociais não integram o patrimônio da sociedade, mas sim o patrimônio dos sócios.
Logo, a valorização das cotas é algo que passa a integrar o patrimônio pessoal do sócio, enquanto pessoa física. E um acréscimo patrimonial que a pessoa física do sócio experimenta.
Enfim, o acréscimo patrimonial representado pela valorização das cotas sociais durante o período da união estável, por não se enquadrar em nenhuma das hipóteses de exclusão da comunhão no regime da comunhão parcial, deve integrar o patrimônio comum a ser partilhado.”
A controvérsia devolvida pelo presente recurso especial a este colegiado situa-se, assim, precisamente em torno da possibilidade de comunicação da valorização das cotas sociais experimentadas durante período de convivência, embora adquiridas anteriormente por um dos conviventes.
Antes de responder a essa questão, é preciso relembrar a moldura fática em que essa questão aflorou.
A união estável desenvolveu-se, conforma o relato das instâncias ordinárias, a partir do ano de 1993 até o dia 24/10/1997, quando ocorreu o falecimento do companheiro da recorrida, que era separado de fato.
Os fatos passaram-se, assim, ainda na vigência do Código Civil de 1916, após a Constituição de 1988, que em seu artigo 226, § 3.º, reconheceu o instituto da União Estável, justamente para substituir a figura do concubinato.
O Código Civil de 1916 não contemplava em seus dispositivos a figura do concubinato puro, apenas regulamentando preceitos pertinentes ao concubinato adulterino.
Nesse período, era utilizado o instituto da sociedade de fato para resolver a partilha de bens, apurando-se os efetivos ingressos ao patrimônio comum e os bens eram repartidos na proporção dos respectivos aportes a fim de evitar o enriquecimento sem causa. Assim, era apenas partilhado o patrimônio adquirido pelo esforço comum dos concubinos.
Avulta, nesse período, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal que, mediante a edição do enunciado sumular n. 380, estabeleceu que “comprovada a existência de sociedade de fato entre os concubinos, é cabível a sua dissolução judicial, com a partilha do patrimônio adquirido pelo esforço comum”.
Em 1994, foi editada a Lei nº 8.971/94, regulamentando a união estável e reconhecendo-a como entidade familiar, mas sem dispor acerca da partilha de bens, seguindo-se a aplicação da Súmula 380/STF.
Em 1996, editou-se a Lei nº 9.278/96, buscando corrigir as falhas da Lei nº 8.971/94, especialmente no que tange à separação de fato de convivente casado e ao prazo de cinco anos para caracterização da união estável.
Esse diploma legal, que era a lei vigente ao tempo do término da união estável em questão, regulamentou especificamente a partilha de bens, em seu art, 5º, dispondo o seguinte:
Art. 5° Os bens móveis e imóveis adquiridos por um ou por ambos os conviventes, na constância da união estável e a título oneroso, são considerados fruto do trabalho e da colaboração comum, passando a pertencer a ambos, em condomínio e em partes iguais, salvo estipulação contrária em contrato escrito.
§ 1° Cessa a presunção do caput deste artigo se a aquisição patrimonial ocorrer com o produto de bens adquiridos anteriormente ao início da união.
§ 2° A administração do patrimônio comum dos conviventes compete a ambos, salvo estipulação contrária em contrato escrito.
Dessa forma, passou-se a aplicar à união estável as regras atinentes ao regime da comunhão parcial de bens do casamento.
Acrescente-se ainda, embora os fatos tenham ocorrido antes de sua vigência, que o Código Civil de 2002, em seu artigo 1.723, regulamentou o instituto da união estávelverbis:
Art. 1.723. É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família.
Adotou, inclusive, o atual Código Civil, expressamente, o regime da comunhão parcial dos bens, ressalvando contrato escrito, para o instituto da união estável, em seu art. 1.725, verbis:
Art. 1.725. Na união estável, salvo contrato escrito entre os companheiros, aplica-se às relações patrimoniais, no que couber, o regime da comunhão parcial de bens.
Dessa forma, em sendo o regime da comunhão parcial de bens o aplicável para o presente caso, deve-se estar atento aos princípios que regem tal regime, em especial ao do patrimônio adquirido pelo esforço comum dos companheiros, como premissa inicial para a partilha em julgamento.
No regime da comunhão parcial, formam-se três grupos patrimoniais:
(i) os bens do companheiro;
(ii) os bens da companheira;
(ii) os bens comuns.
Comunicam-se apenas os bens comuns, ficando excluídos da comunhão os bens que cada companheiro já possuía antes do início da união estável, bem como os adquiridos na sua constância, a título gratuito, por doação, sucessão ou os sub-rogados em seu lugar.
No caso dos autos, restou incontroverso e reconhecido no acórdão recorrido que as cotas sociais do companheiro falecido já lhe pertenciam antes do início do período de convivência.
Apesar disso, o Tribunal de origem entendeu que a valorização dessas cotas sociais, por consubstanciarem acréscimo ao patrimônio do sócio (pessoa física) ocorrido no período de convivência estável, deveria ser objeto de partilha.
Não merece respaldo, com o devido respeito, essa orientação esposada pela maioria no acórdão recorrido.
É preciso destacar que, além de a aquisição ocorrer durante o período de convivência, é necessária a presença de um segundo requisito, qual seja, que esse crescimento patrimonial advenha do esforço comum, mesmo que presumidamente.
A valorização de cota social, pelo contrário, é decorrência de um fenômeno econômico, dispensando o esforço laboral da pessoa do sócio detentor.
Logo, não se faz presente, mesmo que de forma presumida, o segundo requisito orientador da comunhão parcial de bens, que é o esforço comum.
Não há, portanto, relação entre a comunhão de esforços do casal e a valorização das cotas sociais que o companheiro detinha antes do período de convivência.
No voto-vencido, na origem, o Desembargador-Vogal registrou textualmente o seguinte, verbis:
“Não houve um acréscimo porque foi injetado outro patrimônio ou outro capital nesta empresa, mas é a evolução normal desse patrimônio que acarretou esse aumento de valor.”
Citou, ainda, o ilustre Desembargador um exemplo bem elucidativo:
Fosse um imóvel adquirido antes do início do período de convivência, certamente, nem ele (imóvel), nem sua valorização imobiliária, seriam objeto de partilha, devendo ser aplicada a mesma lógica às cotas sociais.
Portanto, merece reforma, no ponto, o acórdão recorrido.
Ante o exposto, voto no sentido de dar provimento ao recurso especial para reformar, no ponto, o acórdão recorrido, retirando, assim, da partilha de bens a valorização das cotas sociais que o de cujus detinha antes do início do período de convivência.
É o voto.
Fonte: Boletim INR nº 6111 – São Paulo, 31 de Outubro de 2013