Tabelião e Arlequim

     Desce a avenida o Arlequim, fantasiado no Carnaval tupiniquim. Deixou o macacão xadrez dourado e vermelho em Veneza e segue cantando e dançando nas ruas em busca da Colombina.

    Todo ano é assim na folia. Arlequim se diverte e esquece os problemas da vida, problemões melhor já lembrar.

   É hora de esquecer seus dois senhores, fruto da feliz idéia de servir a dois para comer duas vezes com infelizes resultados, já que seu tempo é um só e as ordens dos patrões são sempre para ontem e, pior, algumas vezes contraditórias.

    Tal escolha lhe reservara um triste destino, somente esquecido durante a folia.  É possível servir a dois senhores?

    Sim!, pensara entusiasmado, imaginando os dois almoços por dia.

    – Não, claro que não!, já gritava a sua mãezinha, já ida mas sempre lembrada por sábia e amorosa, muito mais de amor, pois nem estudara. Desde a infância, Arlequim ouvira a mãe citar trechos da bíblia e não é que havia um a ensinar que ninguém pode servir a dois senhores porque vai se devotar muito a um e esquecerá do outro senhor?

    Lembrar da bíblia em plena avenida buscando a Colombina prometida? Não será melhor ingerir mais bebida e um pouco também dessas novas pílulas coloridas?

    – Cruéis patrões, afastem-se de mim por ao menos quatro dias! Este período é feito para vestir e projetar as fantasias que moverão este trabalhador até a próxima folia!

    – Valha-me São Mateus!, perdoa mãezinha. Fui logo eu, mero tabelião, decidir-me a servir a dois senhores. Trabalho em dobro e não vejo o precioso tempo de meus dois almoços. De gula e ganância fui ser, como o homem que no carnaval se veste de mulher, escravo da ambiguidade.

  Neste instante, a Colombina desce a ladeira, cercada por Pierrôs. A purpurina brilha-lhe o corpo lindo e a luz dela projeta estrelas. Arlequim se revigora.

    – Vou deixar-te agora Estado-Pantaleão! Pouco me importam também os desejos do outro senhor, este cidadão, mais de mil palhaços metendo-se sempre a comprar e vender e a doar e a tantos ares e também verbos que terminam em eres e ires. Ora, quem vai me fazer feliz é Colombina!

    Ela leva seu bloco rua abaixo, lançando olhares para o folião atormentado. Arlequim admira enquanto pode a sua imagem já de costas, gravando a dança sensual, apesar dos Pierrôs que lhe bloqueiam mais e mais a visão de seu destino.

    Deixa-se cair sentado na calçada. Um dentre tantos foliões, a alegria sempre vencida pelo cansaço.

    Mas não neste caso. Arlequim, largara o corpo desalentado, mas a mente, tomada de lucidez, deixa o balanço do samba e decide purificar sua vida antes da carne.

    – Fico com um almoço e um senhor. É tudo de comida e trabalho. O resto é o amor de Colombina.

    Há um problema, porém. Qual senhor escolher?

    Rapidinho pensa nas pessoas que buscam seus esforços, nos dramas que lhes correm nas veias e como ele, Arlequim, os traduz em conselhos, escritos e até lágrimas sensíveis aos fatos.

    Vê a lógica de prover-lhes as formas aos atos e a de manter-lhes a dignidade da intimidade e vida privada. O que interessa aos outros foliões, e também a Estado-Pantaleão, o que constrói cada uma destas pessoas que a mim vem pedir meus serviços? Devo-lhes a fidelidade de um servidor, não cumplicidade a um outro senhor, conclui.

    As pessoas são seu senhor. Pelos meus serviços, dedicação e fidelidade, esta gente me pagará meus almoços seguidos de belas sobremesas, pensa Arlequim. Para elas, a utilidade de seus serviços decorre da lógica de prover-lhes a solução para os negócios que praticam. Ainda que muitos busquem sempre pagar-lhe o menor dos salários, a maioria sente a troca justa do ato autêntico pelo almoço que precisa.

    Seu outro senhor é o Estado-Pantaleão. Este, trata-o como um cachorro sarnento, dando todos os mimos para outros servos e amigos. As escrituras, seu principal serviço, são feitas há muito tempo por bancários e agora até por qualquer um. A mesma fé que Estado-Pantaleão lhe dera, dá hoje a quem quiser.

    Mas não é só. Estado-Pantaleão não lhe dá qualquer valor, despreza-o e exige que Arlequim conte, tintim por tintim, cada centavo do imposto ainda nem devido. Este senhor iníquo obriga que Arlequim exija tantos papéis e proíba de fazerem negócios entre si os que imagina dever-lhe dívidas. Qualquer erro ou falha, desconta-se lhe o salário.

    Por tudo isso, os ganhos do folião alucinado só minguaram. E não é que mesmo assim, o Estado-Pantaleão decidiu cobrar do servidor pela Ingestão de Sal no Serviço cobrando tal quantia por um percentual fixo!

    – Este ISS é a gota d´água, conclui Arlequim.

    – Minha decisão está feita. Nasci para servir às pessoas. É delas que me vem o sal da vida, o anima da alma, a alegria do Carnaval. Das pessoas tiro o bem. A elas dedico o carinho de meu trabalho para deixá-las seguras.

    – Ao Estado-Pantaleão, ao contrário, devo pouco, somente o que a lei me obriga. Por isso, nada mais devo querer com tal dessenhor.

    Volta a sentir o carnaval e vê que o bloco de Colombina se aproxima de novo. Sentado, é gozado pelos sambantes Pierrôs, como ele apaixonados pela musa.

    Ela olha-o e chama. Dá um salto e já dança. Fecha a janela do balanço de senhores. Já pode brincar o carnaval sem medo. Sabe que o pior servo é aquele que não quer ver.