CGJ|SP: Recurso administrativo – Apuração de conduta de delegatário – Lavratura de escritura pública de cessão de direitos possessórios com base em procuração sem poderes específicos – Exigência do art. 661, §1º, do Código Civil e das NSCGJ (Cap. XVI, item 42, “c”) de poderes especiais e expressos para atos que exorbitem da administração ordinária – Indícios de infração disciplinar por inobservância de prescrições legais e normativas (Lei 8.935/94, art. 31, I) – Instauração de processo administrativo disciplinar – Recurso provido.

PODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

CORREGEDORIA GERAL DA JUSTIÇA

Recurso Administrativo nº 1002061-46.2023.8.26.0247

(312/2025-E)

EMENTA: RECURSO ADMINISTRATIVO. APURAÇÃO DE CONDUTA DE DELEGATÁRIO. PROVIMENTO.

I. Caso em Exame

1. Recurso interposto contra decisão determinou 0 arquivamento de reclamação relacionada à lavratura indevida de escritura pública de cessão de direitos possessórios, com base em procuração sem poderes específicos.

II. Questão em Discussão

2. Discute-se se o delegatário observou os deveres previstos nas normas para a lavratura de escritura pública, especialmente quanto à conferência dos poderes de representação.

III. Razões de Decidir

3. A procuração outorgada, em princípio, não concedia poderes específicos para a cessão de direitos possessórios, conforme exigido pelo art. 661, §1∘, do Código Civil.

4. Indícios de infração ao disposto no §1∘ do art. 661 do Código Civil e nas Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça justificam instauração de processo disciplinar contra o Tabelião.

IV. Dispositivo e Tese

5. Recurso provido, com a determinação de instauração de processo administrativo disciplinar contra a titular do cartório.

Tese de julgamento: 1. A procuração deve conter poderes especiais e expressos para atos que exorbitem a administração ordinária. 2. A inobservância das prescrições legais ou normativas pode caracterizar infração disciplinar.

Legislação Citada:

– Código Civil, art. 661, §1∘ Lei n∘ 8.935/94, art. 31, I;

– NSCGJ, Capítulo XVI, item 42, “c”.

Excelentíssimo Senhor Corregedor Geral da Justiça,

Trata-se de recurso interposto por T. R. P. contra a r. sentença de fls. 102/110, proferida pelo MM. Juiz Corregedor Permanente do Registro Civil das Pessoas Naturais, Interdições, Tutelas e Tabelião de Notas de I., que, em expediente de apuração preliminar, rejeitou reclamação apresentada e determinou seu arquivamento.

Alega o recorrente, em síntese, que ofereceu representação contra o delegatário com o objetivo de apurar a responsabilidade dele pela lavratura indevida de escritura pública de cessão de direitos possessórios relativos a imóvel, com base em procuração que outorgou a seu genitor, a qual não conferia poderes específicos para a prática do referido ato. Pede, ao final, o provimento do recurso, a fim de que a conduta do Oficial seja apurada (fls. 116/128).

O Oficial apresentou contrarrazões (fls. 137/142).

A Procuradoria de Justiça manifestou-se pela sua não intervenção no feito, nos termos da Resolução n∘ 1167/2019-PGJ/CGMP (fls. 145/146).

É o relatório.

A presente apuração preliminar teve início a partir de representação formulada pelo ora recorrente contra delegatário de I., que teria agido de forma irregular por ocasião da lavratura de escritura pública de cessão de direitos possessórios.

Por meio da escritura pública cuja certidão está acostada a fls. 24/26, o ora recorrente (T. R. P.), representado por seu procurador (G. P., pai do recorrente), cedeu os direitos possessórios relativos a imóvel localizado em Ilhabela a AJE Empreendimentos, Administração e Participações.

Lavrada a escritura em 21 de julho de 2022 na serventia de titularidade do recorrido, o recorrente alega que o delegatário não observou que seu pai, G. P., não tinha poderes válidos de representação.

Prolatada sentença de arquivamento da apuração preliminar, o recorrente interpôs o presente recurso, alegando que os limites dos poderes outorgados a seu pai e procurador não foram observados na escritura de cessão lavrada em Ilhabela.

Deve-se destacar, de início, que a análise feita por esta Corregedoria Geral se circunscreve à atuação do Tabelião na lavratura da escritura de cessão de direitos possessórios. Decidir-se-á tão-somente se o delegatário recorrido observou dever que lhe toca constante na letra “c” do item 42 do Capítulo XVI das NSCGJ, que assim dispõe:

“42. O Tabelião de Notas, antes da lavratura de quaisquer atos, deve:

(…)

c) conferir as procurações para verificar se obedecem à forma exigida, se contêm poderes de representação para a prática do ato notarial e se as qualificações das partes coincidem com as do ato a ser lavrado, observando o devido sinal público e o prazo de validade da certidão, que não poderá exceder a 90 dias;”

O alerta é válido para que não se confunda o objeto do presente expediente – apuração de cometimento de falta funcional com da ação judicial noticiada pelo recorrente a fls. 118, em trâmite perante a 45ª Vara Cível do Foro Central da Capital – eventual nulidade da escritura cessão por simulação (autos nº 1102355-28.2024.8.26.0100).

Embora as questões se inter-relacionem, resta claro que são análises completamente diferentes: aqui busca-se definir se há indícios de falta funcional cometida pelo Tabelião; lá analisam-se todas as circunstâncias do negócio, inclusive a atuação das partes.

É possível, por exemplo, que, mesmo observando os limites formais do mandato, as provas produzidas indiquem que as partes deram ensejo a um ato simulado.

No mais, com razão o recorrente.

Isso porque a procuração que o recorrente outorgou a seu pai, lavrada no 13º Tabelionato de Notas da Capital em 15 de janeiro de 2019, aparentemente não concedia ao mandatário poderes para a realização do ato questionado.

De acordo com a procuração acostada a fls. 17/20, o ora recorrente outorgou poderes a G. P. para “receber e fazer cessão ou promessa de cessão de crédito hipotecário e outros direitos, inclusive de alienação fiduciária” (fls. 17).

Em uma análise preliminar, a cessão de direitos possessórios levada a efeito em Ilhabela, cujo instrumento foi lavrado pelo delegatário recorrido (fls. 24/26), afasta-se dos poderes outorgados em 2019.

Isso porque o art. 661, §1∘, do Código Civil¹ exige para os atos que exorbitem a administração ordinária, como é o caso da cessão, procuração com poderes especiais e expressos.

Sobre o tema, ensina Cláudio Luiz Bueno de Godoy:

“os poderes serão especiais quando determinados, particularizados, individualizados os negócios para os quais se faz a outorga (por exemplo, o poder de vender tal ou qual imóvel). Destarte, se no mandato se outorgam poderes de venda, mas sem precisão do imóvel a ser vendido, haverá poderes expressos, mas não especiais, inviabilizando então a consumação do negócio por procurador” (Código Civil Comentado, 4ª edição Manole, diversos autores coordenados pelo Min. Cezar Peluso, p. 678).

Desse modo, havendo indícios de infração ao disposto no §1∘ do art. 661 do Código Civil e na letra “c” do item 42 do Capítulo XVI das NSCGJ, parece prudente a instauração de processo administrativo para análise da conduta do delegatário, que, em tese, pode caracterizar a infração disciplinar prevista no inciso I (inobservância das prescrições legais ou normativas) do artigo 31 da Lei n∘ 8.935/94.

Ante o exposto, o parecer sugere, respeitosamente, que seja dado provimento ao recurso administrativo para determinar a instauração de processo administrativo disciplinar contra o delegatário, a fim de apurar a prática de eventual falta disciplinar.

Sub censura.

São Paulo, data registrada no sistema.

Carlos Henrique André Lisboa

Juiz Assessor da Corregedoria

Assinatura Eletrônica

CONCLUSÃO

Em 26 de agosto de 2025, faço estes autos conclusos ao Doutor FRANCISCO LOUREIRO, Excelentíssimo Corregedor Geral da Justiça. Eu, Letícia Osório Maia Gomide, Escrevente Técnico Judiciário, GAB 3.1, subscrevi.

Proc. n∘ 1002061-46.2023.8.26.0247

Vistos.

Aprovo o parecer apresentado pelo MM. Juiz Assessor da Corregedoria e por seus fundamentos, ora adotados, dou provimento ao recurso para determinar a instauração de processo administrativo disciplinar contra o delegatário, a fim de apurar a prática de eventual falta disciplinar.

São Paulo, data registrada no sistema.

FRANCISCO LOUREIRO

Corregedor Geral da Justiça

Assinatura Eletrônica

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1 Art. 661. O mandato em termos gerais só confere poderes de administração.

§ 1º Para alienar, hipotecar, transigir, ou praticar outros quaisquer atos que exorbitem da administração ordinária, depende a procuração de poderes especiais e expressos.

§ 2º O poder de transigir não importa o de firmar compromisso.