CGJ|SP: Recurso Administrativo – Pedido de cancelamento de registro imobiliário por suposta nulidade – Alegação de que a integralização de imóvel em sociedade ocorreu após a saída da recorrente do quadro societário – Título registrado perante a JUCESP considerado formalmente idôneo e suficiente para ingresso no fólio real – Qualificação registral limitada à análise formal dos elementos do título e documentos apresentados, não abrangendo fatos exógenos ou posteriores à prenotação – Obrigação de integralizar quotas subscritas que subsiste, com responsabilidade solidária dos sócios – Inexistência de vício formal – Ausência de nulidade do registro – Recurso não provido.

 

PODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

CORREGEDORIA GERAL DA JUSTIÇA

RECURSO ADMINISTRATIVO Nº 0001434-53.2023.8.26.0152

EMENTA: RECLAMAÇÃO (250/2025-E) – RECURSO ADMINISTRATIVO – REGISTRO DE IMÓVEIS – NULIDADE DE ATO (INTEGRALIZAÇÃO DE PATRIMÔNIO) – SÓCIA QUE JÁ HAVIA SE RETIRADO DO QUADRO SOCIETÁRIO AO TEMPO DO INGRESSO DO TÍTULO – PARECER PELO NÃO PROVIMENTO DO RECURSO.

I. Caso em exame

1. Trata-se de recurso interposto contra sentença que negou pedido de cancelamento de ato registral por ausência de vício.

2. A parte sustenta que já havia se retirado da sociedade ao tempo do ingresso do instrumento de integralização do capital.

II. Questão em discussão

3. A questão em discussão consiste em determinar se o ato registral é nulo devido à saída da parte recorrente do quadro societário antes do registro ou por violação da legislação atinente.

III. Razões de decidir

4. O ônus da prova do fato constitutivo do direito é da parte recorrente conforme artigo 373, I, do Código de Processo Civil, o qual tem aplicação subsidiária nesta via administrativa.

5. O título apresentado para registro encontrava-se hígido e apto a ingressar no fólio real.

6. A qualificação registral limita-se aos elementos extrínsecos do título: não cabe ao Registrador investigar fatos exógenos ou posteriores à prenotação.

IV. Dispositivo e Tese

7. Parecer pelo não provimento do recurso.

Tese de julgamento: “1. A qualificação registral cinge-se à análise dos elementos constantes do título, ao lado dos documentos apresentados, e não a elementos exógenos e particulares. 2. Nulidade inexistente: título que estava apto para registro na forma da lei”.

Legislação relevante:

Código Civil, art. 1.003, 1.032, 1.052, 1.057 e 1.245; Lei de Registros Públicos, art. 167, I, item 32, 214, § 1º e 252; Lei n. 8.934/1994, art. 64; Código de Processo Civil, art. 15 e 373, I; Código Judiciário do Estado de São Paulo, art. 246.

– NSCGJ, Capítulo XX, item 38.

Excelentíssimo Senhor Corregedor Geral da Justiça,

Trata-se de recurso de apelação interposto por Roselene Scarpelli contra a r. sentença de fls. 31/32, proferida pela MM. Juíza Corregedora Permanente do Oficial de Registro de Imóveis e Anexos da Comarca de Cotia, que julgou improcedente pedido de cancelamento do Registro n.07 da matrícula n.52.366 daquela serventia por suposta nulidade.

O ato impugnado teve suporte em instrumento particular de constituição de sociedade empresária registrado na JUCESP por meio do qual a recorrente conferiu o imóvel objeto da matrícula n.52.366, de sua propriedade, para integralização do capital social que subscreveu.

A parte alega que o ato de registro é nulo porque efetivado após a sua saída da empresa e com base em informações desatualizadas e premissa equivocada; que o título registrado não foi apresentado pelo Oficial aos autos como a ele incumbia em razão do ônus da prova; que o instrumento particular registrado na JUCESP não é o documento hábil para o registro da transmissão, uma vez que a lei se refere à “certidão” dos atos de constituição e de alteração emitida pela JUCESP; que o registro se fundou em título desatualizado; que o Registrador poderia ter tido acesso às alterações do contrato social arquivadas na JUCESP; que é dever do Registrador proceder ao exame exaustivo do título apresentado e observar requisitos básicos como a data e eventuais dados que pudessem de alguma forma modificar o direito real; que a alteração dos atos constitutivos da empresa é capaz de influenciar na constituição, modificação ou extinção do direito real, o que deveria ter sido apreciado; que a qualidade de sócio e a existência de quota social são requisitos básicos; que o registro se baseou em premissa equivocada, pois não se pode falar em sócia subscritora ou quota social à época do registro; que a alteração do contrato social com sua exclusão deveria ao menos ter gerado dúvida no Oficial acerca do cumprimento dos requisitos legais; que, se o Registrador soubesse da saída e ainda assim optasse pelo registro estaria atuando além de sua competência legal e inovando juridicamente; que saiu da sociedade sem integralizar o capital e não havia mais relação jurídica com a sociedade, de modo que não há sentido lógico em se permitir a integralização do capital nestas condições; que eventual apuração de haveres deve considerar a data da retirada do sócio e o montante do capital efetivamente realizado, de modo que sua saída antes da transferência afeta a juridicidade do registro; que o valor não integralizado pode ser suprido pelos sócios remanescentes; que, para que o imóvel pudesse ser transferido à empresa após sua retirada, como ocorreu, seria essencial a apuração de haveres que demonstrasse que a empresa ainda tinha direitos sobre ele (fls.39/50).

O Oficial se manifestou às fls.60/78, destacando que eventual responsabilidade funcional seria do antigo delegatário, que lançou o registro impugnado, e que o registro foi feito corretamente, com apoio em título idôneo, o qual atendia todos os requisitos formais (instrumento de integralização de capital social arquivado na JUCESP).

A Procuradoria de Justiça opinou pelo não provimento do recurso (fls. 120/123).

É o relatório.

De início, cumpre consignar que, como se busca cancelamento de registro, o que se faz por averbação, a apelação interposta deve ser recebida como recurso administrativo na forma do artigo 246 do Código Judiciário do Estado de São Paulo.

Vale anotar, ainda, que o sistema registral se funda no princípio da fé pública: atribui-se ao registro presunção relativa que prevalece até a decretação de eventual invalidade, de modo que incumbe à parte interessada demonstrar o vício que alega afetar a regularidade da inscrição (aplicação subsidiária do Código de Processo Civil aos processos administrativos – artigo 252 da LRP e artigos 15 e 373, I, do CPC).

Outrossim, a decretação de nulidade na via administrativa depende da oitiva dos atingidos conforme determina o artigo 214, § 1º, da LRP, sendo imprescindível a intimação da pessoa jurídica que, por meio do ato impugnado, passou a figurar como proprietária tabular do imóvel (fl.10), o que não foi observado no caso.

Entretanto, os elementos que constam nos autos são suficientes para a avaliação do mérito, o que passa a ser feito.

O recurso não comporta provimento. Vejamos os motivos.

Não há controvérsia quanto ao fato de que a parte recorrente firmou instrumento particular para formação de sociedade empresária limitada, a qual foi registrada na JUCESP em 10/09/2012 conforme ficha cadastral que instruiu seu requerimento inicial (fls. 11/13).

A própria parte reconhece que ofereceu o imóvel objeto da matrícula 52.366 para integralização do capital social que subscreveu, no valor de R$ 104.500,00, enquanto a outra sócia participou com a subscriçao de R$ 5.500,00, o que totalizou capital social de R$ 110.000,00 (fls.11/13).

Como se sabe, o registro do contrato social perante a JUCESP não é suficiente para a efetiva transmissão do domínio do imóvel para a empresa, o que somente se realiza com o registro do título translativo perante o Registro de Imóveis, tal como determina o artigo 1.245 do Código Civil.

O inconformismo da recorrente se dá porque, no caso concreto, esse registro somente foi providenciado após ela ter se retirado da sociedade.

De acordo com a ficha cadastral da JUCESP, a sua saída foi registrada em 14/08/2015, oportunidade em que nova sócia adentrou com a mesma participação (R$104.500,00), enquanto a transmissão do imóvel para a sociedade foi lançada posteriormente na matrícula 52.366, na data de 13/10/2015 (fl.10):

Este documento é cópia do original assinado digitalmente por LUCIANA CARONE NUCCI EUGENIO MAHUAD. Para acessar os autos processuais, acesse o site https://esaj.tjsp.jus.br/pastadigital/sgcr/abrirConferencia Documento.do, informe o processo 0001434-53.2023.8.26.0152 e o código 13462F4.

“R.07, em 13 de outubro de 2015.

CONFERÊNCIA DE BENS

À requerimento firmado aos 10 de fevereiro de 2014, em Vargem Grande Paulista-SP, e conforme instrumento particular firmado 25 de julho de 2012, em Vargem Grande Paulista-SP, registrado na Junta Comercial do Estado de São Paulo, sob n° 3522688885-1, em 10/09/2012, a proprietária ROSELENE SCARPELLI, já qualificada, conferiu o imóvel desta matrícula ao CENTRO DE REABILITAÇÃO GESSY EVARISTO DE SOUZA LTDA-ME, com sede na Rua Homero, n. 131, Chácara Santa Mônica, Vargem Grande Paulista-SP, inscrita no CNPJ/MF sob n° (…), para integralização de capital, sendo atribuído para efeitos fiscais o valor de R$ 104.500,00″.

Em que pese a ausência nos autos de cópia do título que deu suporte ao registro, não há controvérsia de que não se tratou de simples instrumento particular, mas de contrato social com o registro certificado pela JUCESP, o que permitiu referência expressa na matrícula não apenas à data do arquivamento (10/09/2012), mas também à NIRE matriz n.3522688885-1, em perfeita consonância com a ficha cadastral que instruiu o requerimento inicial (fls.11/13).

Trata-se, portanto, de título hábil ao registro nos termos do artigo 64 da Lei n.8.934/94 e do artigo 167, I, item 32, da LRP.

A qualificação registral, por sua vez, se restringe aos elementos do título e do fólio real (quod non est in tabula et in instrumentum non est in mundo). Em outros termos, cinge-se à análise formal do título e à sua conformidade com o registro no momento da prenotação.

Assim, não cabe ao Registrador investigar fatos ou negócios jurídicos exógenos ou posteriores à prenotação, ainda que estes possam, em tese, alterar a situação do documento protocolizado. O exame a ser feito pelo Oficial, embora exaustivo, limita-se, assim, aos aspectos formais e ao conteúdo do título e dos documentos complementares apresentados, bem como à sua conformidade com as informações constantes da cadeia matricial (NSCGJ, Capítulo XX, item 38).

Desta forma, não há obrigatoriedade de o Registrador realizar investigações complementares aos documentos apresentados com o requerimento, exceto em procedimentos onde a lei expressamente faculta ou determina tal providência, como nos pedidos de usucapião extrajudicial.

Há que se reconhecer, ainda, que a saída da recorrente da sociedade não revoga automaticamente a obrigação de integralização do capital social.

Ao firmarem o contrato social, os contratantes não apenas assumem direitos e obrigações como também criam novo sujeito com o qual passam a manter vínculos jurídicos, como credores e devedores.

Como explica Fábio Ulhôa Coelho:

“A pessoa da limitada não é parte do contrato social, até mesmo porque deriva dele, e os contratantes devem, por imposição lógica, preexistir à formação do contrato. Mas ela é, pronta e necessariamente, envolvida pelo contratado entre os sócios participantes do contrato social. Ou seja, o que os sócios negociam, entre eles, gera direitos e obrigações também para a pessoa jurídica em gestação.

A obrigação do sócio de integralizar a quota subscrita do capital social é exemplo do mecanismo próprio aos atos de constituição de pessoa jurídica. Os sócios estipulam, mediante negociação, no contrato social, quanto será a contribuição de cada um, para se reunir o capital necessário à organização da empresa. Essa estipulação se traduz na cláusula do contrato social que dispõe sobre a quota de cada sócio no capital da sociedade. Pois bem, o titular do direito ao recebimento dos recursos correspondentes é a pessoa jurídica nascida do contrato social, e não os demais sócios. Se o capital é subscrito em dinheiro como ocorre na expressiva maioria das vezes – o sócio torna-se devedor da sociedade do montante correspondente à sua quota; ou, dito pelo outro ângulo, a sociedade se torna credora do sócio”.

Quanto à responsabilidade dos sócios, o Código Civil dispõe o seguinte (destaques nossos):

“Art. 1.003. A cessão total ou parcial de quota, sem a correspondente modificação do contrato social com o consentimento dos demais sócios, não terá eficácia quanto a estes e à sociedade.

Parágrafo único. Até dois anos depois de averbada a modificação do contrato, responde o cedente solidariamente com o cessionário, perante a sociedade e terceiros, pelas obrigações que tinha como sócio.

Art. 1.032. A retirada, exclusão ou morte do sócio, não o exime, ou a seus herdeiros, da responsabilidade pelas obrigações sociais anteriores, até dois anos após averbada a resolução da sociedade; nem nos dois primeiros casos, pelas posteriores e em igual prazo, enquanto não se requerer a averbação.

Art. 1.057. Na omissão do contrato, o sócio pode ceder sua quota, total ou parcialmente, a quem seja sócio, independentemente de audiência dos outros, ou a estranho, se não houver oposição de titulares de mais de um quarto do capital social.

Parágrafo único. A cessão terá eficácia quanto à sociedade e terceiros, inclusive para os fins do parágrafo único do art. 1.003, a partir da averbação do respectivo instrumento, subscrito pelos sócios anuentes”.

Não resta dúvida, portanto, de que a obrigação de efetivar a integralização prometida permanece, sendo todos os sócios solidariamente responsáveis por eventual omissão nos termos do artigo 1.052 do Código Civil.

A alteração da forma de integralização estabelecida no instrumento de constituição da sociedade dependeria de nova manifestação de vontade, o que não diz respeito à qualificação registral por se tratar de elemento estranho ao título apresentado.

Assim, não houve equívoco no registro da transmissão, que teve como premissa justamente a vontade expressa da proprietária de atribuir o bem à pessoa jurídica da qual participou.

Note-se que, em havendo inadimplência, a sociedade pode cobrar judicialmente o aporte contratado acrescido de indenização ou deliberar pela expulsão do sócio remisso.

No caso concreto, a escolha foi pelo registro da transmissão do imóvel mediante apresentação de título hábil.

Investigação sobre a situação da sociedade ao tempo da apresentação do título a registro também extrapola a verificação dos requisitos formais que incumbe ao Registrador.

Neste ponto, por constatar a presença de questões exógenas, a r. sentença recorrida remeteu corretamente a parte interessada às vias judiciais ordinárias, onde poderá, com observância do contraditório, esclarecer o conflito de interesses que envolve o domínio do imóvel.

Não bastasse tudo isso, ainda que o Oficial investigasse em profundidade as condições em que a parte recorrente se retirou da sociedade, iria constatar que ela transferiu onerosamente as quotas que subscreveu como se estivessem totalmente integralizadas, pelo mesmo valor de sua participação inicial (fls.95/97, destaques nossos):

Cláusula Primeira – A sócia ROSELENE SCARPELLI já qualificada, possuidora de 104.500 (cento e quatro mil e quinhentas) quotas de valor nominal de R$1,00 (um real) cada uma, neste ato, cede e transfere, a título oneroso, 104.500 (cento e quatro mil e quinhentas) quotas que possui na sociedade, totalmente integralizadas, com tudo o que elas representam, para a sócia que neste ato é admitida e ingressa na sociedade, a saber (…).

Parágrafo Único – A Cedente e a Cessionária, dão-se, neste ato, reciprocamente, a mais ampla, plena, rasa, geral, irrevogável e irretratável quitação quantas às quotas ora cedidas e transferidas, para nada mais reclamarem uma da outra, a qualquer tempo, seja a que título for“.

Ou seja, a transmissão do imóvel apenas aperfeiçoou a prometida integralização do capital social, sem a qual a recorrente não poderia ceder onerosamente suas quotas.

Por todos os motivos delineados, sob o aspecto formal e nos limites desta via administrativa, não se identifica nulidade no Registro n.07 da matrícula 52.366 do Registro de Imóveis de Cotia.

Ante o exposto, o parecer que submeto ao elevado critério de Vossa Excelência é no sentido de que seja negado provimento ao recurso administrativo.

Sub censura.

São Paulo, data registrada no sistema.

Luciana Carone Nucci Eugênio Mahuad

Juíza Assessora da Corregedoria

Assinatura Eletrônica

CONCLUSÃO

Em 02 de julho de 2025, faço estes autos conclusos ao Doutor FRANCISCO LOUREIRO, Excelentíssimo Corregedor Geral da Justiça.

Eu, Letícia Osório Maia Gomide, Escrevente Técnico Judiciário, GAB 3.1, subscrevi.

Proc. n° 0001434-53.2023.8.26.0152

Vistos.

Aprovo o parecer apresentado pela MM. Juíza Assessora da Corregedoria e por seus fundamentos, ora adotados, nego provimento ao recurso.

Int.

São Paulo, data registrada no sistema.

FRANCISCO LOUREIRO

Corregedor Geral da Justiça

Assinatura Eletrônica

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1 COELHO, Fábio, Curso de Direito Comercial – Volume 2 (1. Integralização do Capital Social), São Paulo: editora Revista dos Tribunais, 2024.