CSM|SP: Registro de imóveis – Dúvida registral – Regularização fundiária urbana (Reurb-E) – Indeferimento de registro de certidão de regularização fundiária – Imóvel público localizado em loteamento regular e ocupado por única empresa – Inexistência de núcleo urbano informal – Impossibilidade de uso da Reurb e da legitimação fundiária fora das hipóteses legais – Finalidade da Lei nº 13.465/2017 limitada à incorporação de núcleos urbanos informais ao ordenamento urbano – Tentativa de utilizar instituto excepcional para fins ordinários – Inviabilidade – Precedentes do CSM – Apelação não provida.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Cível nº 1000540-18.2024.8.26.0575, da Comarca de São José do Rio Pardo, em que é apelante MARMORARIA ASNAR LTDA-ME, é apelado OFICIALA DE REGISTRO DE IMÓVEIS E ANEXOS DA COMARCA DE SÃO JOSÉ DO RIO PARDO.

ACORDAM, em Conselho Superior da Magistratura do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão: “Negaram provimento à apelação, v.u.”, de conformidade com o voto do Relator, que integra este acórdão.

O julgamento teve a participação dos Exmos. Desembargadores FERNANDO TORRES GARCIA (PRESIDENTE TRIBUNAL DE JUSTIÇA) (Presidente), BERETTA DA SILVEIRA (VICE PRESIDENTE), VICO MAÑAS (DECANO), TORRES DE CARVALHO(PRES. SEÇÃO DE DIREITO PÚBLICO), HERALDO DE OLIVEIRA (PRES. SEÇÃO DE DIREITO PRIVADO) E CAMARGO ARANHA FILHO(PRES. SEÇÃO DE DIREITO CRIMINAL).

São Paulo, 26 de junho de 2025.

FRANCISCO LOUREIRO

Corregedor Geral da Justiça e Relator

APELAÇÃO CÍVEL nº 1000540-18.2024.8.26.0575

Apelante: Marmoraria Asnar Ltda-me

Apelado: Oficiala de Registro de Imóveis e Anexos da Comarca de São José do Rio Pardo

VOTO Nº 43.834

Direito Registral – Apelação em procedimento de dúvida registral – Regularização Fundiária Urbana – Recurso não provido.

I. Caso em Exame

1. Apelação interposta contra sentença que manteve o óbice ao registro de Certidão de Regularização Fundiária.

II. Questão em Discussão

2. A questão em discussão consiste em saber se é possível utilizar o procedimento de Regularização Fundiária Urbana (Reurb) para transferir a propriedade de imóvel público para um particular, quando o bem está inserido em loteamento regular e ocupado por uma única empresa.

III. Razões de Decidir

3. A Lei nº 13.465/2017 destina-se à incorporação de núcleos urbanos informais ao ordenamento territorial urbano, de modo que não se aplica à transferência de bem público ao domínio particular se essa ocupação não se caracteriza como núcleo urbano informal.

4. Do mesmo modo, o instituto da legitimação fundiária, conforme § 2º do art. 9º da Lei nº 13.465/2017, só se aplica a núcleos urbanos informais.

IV. Dispositivo e Tese

5. Apelação não provida.

Tese de julgamento: “1. O procedimento de Reurb não pode ser utilizado fora das hipóteses de núcleos urbanos informais. 2. A legitimação fundiária é instituto de uso exclusivo no âmbito da Reurb”.

Legislação Citada:

– Lei nº 13.465/201 § 2º; art. 11, incisos II e III.

Jurisprudência Citada:

– CSM/SP, Apelação nº 1000524-56.2021.8.26.0450, Rel. Des. Torres Garcia, j. em 21/6/2022.

– CSM/SP, Apelação nº 1005822-87.2021.8.26.0269, Rel. Des. Torres Garcia, j. em 14/11/2023.

Trata-se de apelação interposta por Marmoraria Asnar Ltda. contra a r. sentença de fls. 357/393, proferida pelo MM. Juiz Corregedor Permanente do Registro de Imóveis de São José do Rio Pardo, que, em suscitação de dúvida, manteve o óbice ao registro na matrícula nº 22.813 daquela serventia de Certidão de Regularização Fundiária expedida pela Prefeitura Municipal de São José do Rio Pardo.

Defende a recorrente, em síntese, que a utilização da Reurb é possível na espécie, na medida em que a área onde o imóvel está inserido, embora parcelada de forma regular, possui irregularidades relacionadas à titulação dos ocupantes. Sustenta que a regularização da titularidade dominial do imóvel que ocupa não pôde ser feita de outro modo. Aponta, ainda, os dispositivos legais e normativos que entende aplicáveis ao caso em análise. Pede, ao final, a reforma da sentença de primeiro grau, julgando-se a dúvida improcedente (fls. 396/411).

A Procuradoria de Justiça opinou pelo não provimento do recurso (fls. 456/459).

É o relatório.

A ora apelante prenotou no Registro de Imóveis de São José do Rio Pardo Certidão de Regularização Fundiária expedida pela Prefeitura local, visando à regularização de um único imóvel localizado em loteamento regular. Referida certidão, copiada a fls. 21/22, mostra que, por meio de Reurb de interesse específico (Reurb-E), a municipalidade pretende promover a legitimação fundiária (“mecanismo de reconhecimento da aquisição originária do direito real de propriedade sobre unidade imobiliária objeto da Reurb[1]“) de um imóvel de 600 m² (fls. 23), devidamente matriculado, inserido em loteamento regular, transferindo- o por inteiro à empresa apelante. Ou seja, Município e apelante pleiteiam que o imóvel objeto da matrícula nº 22.813 do RI de São José do Rio Pardo tenha sua propriedade transferida do primeiro para a segunda.

E como bem concluíram Oficial e MM. Juiz Corregedor Permanente, a pretensão é inviável.

Com efeito, os interessados tentam usar institutos excepcionais, criados para atender casos específicos, para resolver questão cuja solução pode ser obtida de forma ordinária.

Preceitua o art. 9º, caput, da Lei nº 13.465/2017:

Art. 9º Ficam instituídas no território nacional normas gerais e procedimentos aplicáveis à Regularização Fundiária Urbana (Reurb), a qual abrange medidas jurídicas, urbanísticas, ambientais e sociais destinadas à incorporação dos núcleos urbanos informais ao ordenamento territorial urbano e à titulação de seus ocupantes.

Núcleo urbano informal e núcleo urbano informal consolidado são assim definidos pelos incisos II e III do art. 11 do mesmo diploma legal:

II- núcleo urbano informal: aquele clandestino, irregular ou no qual não foi possível realizar, por qualquer modo, a titulação de seus ocupantes, ainda que atendida a legislação vigente à época de sua implantação ou regularização;

III- núcleo urbano informal consolidado: aquele de difícil reversão, considerados o tempo da ocupação, a natureza das edificações, a localização das vias de circulação e a presença de equipamentos públicos, entre outras circunstâncias a serem avaliadas pelo Município;

Nota-se que o procedimento da Regularização Fundiária Urbana (Reurb) visa atender demandas específicas; destina-se a promover a efetiva incorporação de núcleos urbanos informais à cidade em especial as denominadas “favelas” , com a concessão de título de propriedade a seus ocupantes.

Diferentemente do que é buscado neste feito, a Lei nº 13.465/2017 não objetiva facilitar a transferência da propriedade de bem público ao particular. Para isso existem mecanismos específicos eficientes. A Lei nº 13.465/2017, por meio de institutos específicos e excepcionais, foi editada para tentar promover a integração a nossas cidades de verdadeiros bairros informais.

É evidente que uma empresa que ocupa um lote público objeto de matrícula individualizada, em cujo interior não há parcelamento irregular, em que não há ocupantes, no plural, mas ocupação por uma única empresa, não pode ser valer do procedimento da Reurb para obter a titularidade dominial de um bem.

Se não bastasse, o § 2º do art. 9º da Lei nº 13.465/2017 ressalta a aplicação excepcional da legitimação fundiária, instituto usado pelo Município de São José do Rio Pardo no caso em análise (fls. 23).

§ 2º A Reurb promovida mediante legitimação fundiária somente poderá ser aplicada para os núcleos urbanos informais comprovadamente existentes, na forma desta Lei, até 22 de dezembro de 2016.

Não se concebe, portanto, legitimação fundiária fora do âmbito do procedimento de Regularização Fundiária Urbana (Reurb), o qual, como se viu, pressupõe núcleo urbano informal.

E se o procedimento de Regularização Fundiária Urbana (Reurb) foi criado pelo legislador federal, dentro de sua competência de atuação, para lidar com situações específicas, não pode o ente municipal utilizá-lo para tentar reparar casos cuja solução deveria ter sido obtida por outros meios.

Nem se argumente que o item 275 do Capítulo XX das NSCGJ[2] poderia ser usado para justificar a regularização da titularidade dominial do imóvel da apelante por meio da Reurb.

Não obstante referido dispositivo se refira a “empreendimento registrado, em que não foi possível realizar, por qualquer modo, a titulação”, sua interpretação deve ser feita de acordo com a Lei nº 13.465/2017, que, como se viu, em diversos dispositivos, liga de forma indissociável “Reurb” e “núcleo urbano informal”.

E mesmo o item 275 do Capítulo XX das NSCGJ se refere a “titulação de seus ocupantes”, o que afasta o procedimento de Reurb para a regularização de um único imóvel que não se insere nem está próximo a núcleo urbano informal.

Destaque-se que casos semelhantes já foram analisados, mais de uma vez, por este Conselho Superior em datas recentes:

REGISTRO DE IMÓVEIS – DÚVIDA NEGATIVA DE REGISTRO DE CERTIDÃO DE REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA – AUSÊNCIA DE REQUISITOS DA LEI 13.465/2017 – INEXISTÊNCIA DE NÚCLEO URBANO INFORMAL – AUSÊNCIA DE ADENSAMENTO HUMANO – EXISTÊNCIA DE GLEBAS VAZIAS, CUJA REGULARIZAÇÃO DEVERÁ SE SUBMETER À LEI n.º 6.766/79 – APELAÇÃO A QUE SE NEGA PROVIMENTO” (CSM/SP Apelação nº 1000524-56.2021.8.26.0450, Rel. Des. Torres Garcia, j. em 21/6/2022).

REGISTRO DE IMÓVEIS – REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA – INTERESSE SOCIAL – LOTEAMENTO REGULARIZADO NOS TERMOS DA LEI N.º 6.766/79 – INADEQUAÇÃO – AQUISIÇÃO DOS LOTES QUE DEVE SE DAR PELOS MEIOS TRADICIONAIS LEI Nº 13.465/2017 QUE TRAZ INSTITUTOS EXCEPCIONAIS QUE NÃO DEVEM SER UTILIZADOS EM SITUAÇÕES ORDINÁRIAS – APELAÇÃO NÃO PROVIDA” (CSM/SP Apelação nº 1005822-87.2021.8.26.0269, Rel. Des. Torres Garcia, j. em 14/11/2023).

Nesse último julgado, a posição de Paola de Castro Ribeiro Macedo sobre o tema é citada:

Permitir a titulação de unidades não advindas de regularização fundiária parece violar o direito à estabilidade do sistema registral imobiliário uma vez que os instrumentos de titulação aos ocupantes são devastadores aos proprietários dos imóveis.

A legislação da REURB traz institutos de exceção, devendo ser utilizados em situações extremas em que os métodos tradicionais não podem ser aplicados. Não é o caso dos imóveis regulares, pendentes de outorga de direitos reais pelos empreendedores. Se fosse possível utilizar a REURB para obter a transmissão de domínio em loteamentos regulares, as partes envolvidas evitariam, em tese, o pagamento de impostos ou a obrigatoriedade da lavratura de escrituras públicas, em possível burla ao arcabouço legal de transmissão da propriedade formal.

O sistema de regularização trazido pela Lei n.º 13.465/2017 não serve ao propósito de evitar pagamento de tributos, taxas ou permitir a perda de propriedade daqueles que cumpriram rigorosamente a legislação de parcelamento do solo. O sistema de REURB visa corrigir distorções causadas pela irregularidade na divisão da terra, que trouxe insegurança aos ocupantes sem títulos ao priva-los da possibilidade de transacionar suas propriedades.

Claro que podem ocorrer situações excepcionais que justifiquem a REURB-titulação em imóveis já parcelados, mas essa hipótese deve ser vista com muita cautela por parte dos operadores da Reurb[3]“.

Ressalte-se, ainda, que os Termos de Ajustamento de Conduta firmados pelo Município com o Ministério Público (fls. 344/347 e 348/351) não modificam as conclusões até aqui expostas.

Isso porque, em ambos, o município se comprometeu a regularizar a posse e a propriedade de cada um dos lotes desocupados do loteamento onde o imóvel matriculado sob nº 22.813 está inserido (“Distrito Industrial”). Há previsão de multa aplicável à municipalidade em caso de descumprimento da obrigação assumida e de reversão de lotes ao Município na hipótese de o ocupante não dar ao imóvel a destinação fixada pela Lei Municipal (edificação, com uso dela em atividade empresarial/comercial).

Sobre os TACs, duas questões devem ser observadas: a) como apontado pelo i. Promotor de Justiça que atuou em primeiro grau, tudo indica que houve edificação no lote ocupado pela apelante e a ele foi dada destinação adequada (fls. 354); b) em momento algum cogitou-se a utilização do procedimento de Reurb para a regularização dos imóveis integrantes do loteamento denominado “Distrito Industrial”.

Em outros termos: não se pode imputar ao Ministério Público a incorreta utilização do procedimento de Reurb, pois embora a regularização da propriedade dos lotes tenha sido exigida, isso deveria ter ocorrido utilizando-se os métodos tradicionais de transferência de titularidade do bem público ao particular.

A r. sentença, portanto, deve ser integralmente mantida.

Ante o exposto, pelo meu voto, nego provimento à apelação.

FRANCISCO LOUREIRO

Corregedor Geral da Justiça e Relator

Notas:

[1] Art. 11, VII, da Lei nº 13.465/2017.

[2] 275. Para a Reurb de núcleo urbano decorrente de empreendimento registrado, em que não foi possível realizar, por qualquer modo, a titulação de seus ocupantes, a CRF será apresentada de modo simplificado, devendo apenas atestar a implantação do núcleo nos exatos termos do projeto registrado e conter a listagem descrita no inciso VI do art. 41 da Lei n. 13.465/2017.

[3] Regularização Fundiária Urbana e seus Mecanismos de Titulação dos Ocupantes: Lei nº 13.465/2017 e Decreto n.º 9.310/2018. São Paulo Thomson Reuters Brasil, 2022. (Coleção Direito Imobiliário; Vol. V / Alberto Gentil de Almeida Pedroso, coord.).

(DJe de 07.07.2025 – SP)