CNJ: Extrajudicial – Pedido de Providências – Extrajudicial – Registro de Imóveis – Desconto de emolumentos – Artigo 290 da Lei n° 6.015/73 – Primeira aquisição imobiliária para fins residenciais financiada pelo SFH – Divergência de interpretação – Uniformização nacional – Interpretação literal – Desnecessidade de ausência de propriedade imobiliária anterior – Ciência às Corregedorias Estaduais – Arquivamento.
Conselho Nacional de Justiça
Autos: PEDIDO DE PROVIDÊNCIAS – 0007496-70.2024.2.00.0000
Requerente: CORREGEDORIA GERAL DA JUSTIÇA DO ESTADO DE GOIÁS – CGJGO
Requerido: CORREGEDORIA NACIONAL DE JUSTIÇA
EMENTA
EXTRAJUDICIAL. PEDIDO DE PROVIDÊNCIAS. PEDIDO DE PROVIDÊNCIAS. EXTRAJUDICIAL. REGISTRO DE IMÓVEIS. DESCONTO DE EMOLUMENTOS. ARTIGO 290 DA LEI N° 6.015/73. PRIMEIRA AQUISIÇÃO IMOBILIÁRIA PARA FINS RESIDENCIAIS FINANCIADA PELO SFH. DIVERGÊNCIA DE INTERPRETAÇÃO. UNIFORMIZAÇÃO NACIONAL. INTERPRETAÇÃO LITERAL. DESNECESSIDADE DE AUSÊNCIA DE PROPRIEDADE IMOBILIÁRIA ANTERIOR. CIÊNCIA ÀS CORREGEDORIAS ESTADUAIS. ARQUIVAMENTO.
DECISÃO
Trata-se de procedimento iniciado como Consulta, formulada pela CORREGEDORIA GERAL DA JUSTIÇA DO ESTADO DE GOIÁS (CGJ-GO), posteriormente convertido em Pedido de Providências. O presente expediente foi instruído com decisão proferida pela Corregedoria Geral da Justiça do Estado de Goiás nos autos de processo administrativo (n° 202408000555360), acerca de requerimento apresentado pelo Registro de Imóveis do Brasil – Seção de Goiás (RIB-GO), em que se solicitava a inclusão de um artigo no Código de Normas e Procedimentos do Foro Extrajudicial do Estado de Goiás. O artigo proposto visa estabelecer os requisitos para a concessão de desconto de 50% nos emolumentos relativos aos atos vinculados à primeira aquisição imobiliária para fins residenciais, financiada pelo Sistema Financeiro da Habitação, conforme o disposto no artigo 290 da Lei n. 6.015173. O RIB-GO argumenta que são frequentes as reclamações administrativas por supostas cobranças excessivas de emolumentos, especialmente quando os registradores deixam de aplicar o desconto previsto na norma. Por isso, propôs a seguinte redação a ser incluída no CNPFE:
“Art. 910-A. Os emolumentos devidos pelos atos relacionados com a primeira aquisição imobiliária para fins residenciais, financiada pelo Sistema Financeiro da Habitação, serão reduzidos em 50% (cinquenta por cento), nos termos do art. 290 da Lei n° 6.015/73. § 1° Para a obtenção do desconto aludido, deverão ser preenchidos três requisitos, cumulativamente:
a) que seja a primeira aquisição imobiliária do interessado, ou seja, que ele nunca tenha sido proprietário de qualquer imóvel;
b) que a aquisição na qual se pretenda o desconto seja para fins residenciais; e
c) que esta aquisição seja financiada pelo sistema financeiro de habitação.
§ 2° O oficial que descumprir a norma deste artigo, além da devolução da quantia recolhida a maior, devidamente atualizada, está sujeito às penalidades previstas na legislação vigente.
§ 3° O conteúdo deste artigo, caput, e parágrafos, deverá estar exposto na recepção da serventia.”
A Assessoria Correicional da CGJ-GO, em informação acostada aos autos, identificou duas possíveis interpretações do artigo 290 da Lei n. 6.015/73:
1) interpretação restritiva/reducionista (defendida pelo RIB-GO): segundo a qual, para obtenção do desconto legal, seria necessário o cumprimento cumulativo de três requisitos: a) tratar-se da primeira aquisição imobiliária; b) o imóvel ser destinado a fins residenciais; e c) a aquisição ser financiada pelo SFH.
2) interpretação literal: para a concessão do desconto de 50%, basta que o beneficiário comprove ser sua “primeira aquisição para fins residenciais” e que “o financiamento tenha sido realizado pelo Sistema Financeiro da Habitação (SFH)”, sendo irrelevante a existência de outros imóveis adquiridos por formas diversas.
A Assessoria Correicional concluiu que a interpretação literal se alinha mais adequadamente ao texto da lei e à função social da norma, sugerindo o deferimento parcial do pedido para incluir artigo no CNPFE com essa interpretação.
A Corregedoria-Geral da Justiça do Estado de Goiás, considerando a falta de uniformidade entre as unidades federativas quanto aos critérios para concessão do desconto, enviou consulta ao CNJ.
O RIB-GO peticionou solicitando seu ingresso nos autos na condição de interessado e ratificou sua posição quanto à interpretação restritiva, argumentando que a interpretação defendida pela CGJ-GO subverteria a intenção da norma.
Da mesma forma, o Registro de Imóveis do Brasil (RIB), entidade nacional, solicitou seu ingresso como amicus curiae, argumentando que possui interesse institucional legítimo na uniformização da interpretação da matéria em âmbito nacional.
É o relatório.
Da admissão das entidades intervenientes
Inicialmente, defiro o ingresso do Registro de Imóveis do Brasil – Seção Goiás (RIB-GO) nos autos, tendo em vista ser a entidade que originou o procedimento administrativo perante a CGJ-GO e possuir evidente interesse jurídico na decisão.
Quanto ao pedido de ingresso do Registro de Imóveis do Brasil (RIB) como amicus curiae, também o defiro, considerando a representatividade nacional da entidade, que congrega 20 associações estaduais e mais de 3.600 registradores de imóveis no país, além da pertinência temática entre o objeto deste procedimento e a atuação da requerente.
Do mérito da consulta
A questão central deste Pedido de Providências é a interpretação do artigo 290 da Lei n. 6.015/73, que assim dispõe:
Art. 290 – Os emolumentos devidos pelos atos relacionados à primeira aquisição imobiliária para fins residenciais, financiada pelo Sistema Financeiro da Habitação, serão reduzidos em 50% (cinquenta por cento).
O dispositivo legal tem por objeto conceder um benefício fiscal aos adquirentes de imóveis através do Sistema Financeiro da Habitação (SFH), consistente na redução de 50% dos emolumentos devidos pelos atos de registro.
Conforme apurado nos autos, a interpretação desse dispositivo não é uniforme entre as unidades federativas. As diferenças interpretativas residem, principalmente, na exigência ou não de que o adquirente nunca tenha sido proprietário de qualquer imóvel para fazer jus ao desconto.
De acordo com a interpretação restritiva, defendida pelo RIB-GO, o benefício só seria devido quando presentes, cumulativamente, três requisitos: a) que seja a primeira aquisição imobiliária do interessado, em qualquer circunstância; b) que a aquisição seja para fins residenciais; e c) que seja financiada pelo SFH.
Já a interpretação literal, sugerida pela Assessoria Correicional da CGJ-GO, entende que o desconto deve ser concedido quando se tratar da primeira aquisição imobiliária para fins residenciais financiada pelo SFH, não importando se o adquirente já possui outros imóveis adquiridos por formas diversas.
Após análise detida dos argumentos apresentados pelas partes e dos elementos constantes dos autos, entendo que a interpretação literal é a que melhor atende aos princípios da legalidade e da segurança jurídica, pelas razões a seguir expostas.
Princípio da legalidade e interpretação literal em matéria tributária
Os emolumentos, conforme entendimento consolidado pelo Supremo Tribunal Federal (ADI 3694), têm natureza tributária, sendo considerados taxas. Portanto, aplicam-se a eles os princípios fundamentais do direito tributário. Nesse contexto, as isenções em matéria tributária são submetidos à interpretação literal, conforme previsto no artigo 111, inciso II, do Código Tributário Nacional:
Art. 111. Interpreta-se literalmente a legislação tributária que disponha sobre:
[…]
II – outorga de isenção;
A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça tem aplicado esse dispositivo aos descontos e reduções tributárias, como se observa dos precedentes:
AGRAVO INTERNO. TRIBUTÁRIO. CONTRIBUIÇÃO EXTRAORDINÁRIA. PLANO DE PREVIDÊNCIA COMPLEMENTAR FECHADA. IMPOSTO DE RENDA. ISENÇÃO. INEXISTÊNCIA. DEDUÇÃO. IMPOSSIBILIDADE.
(…)
XII – Com efeito, permitir que as regras que disponham sobre isenção e dedutibilidade das contribuições normais alcancem as contribuições extraordinárias, como pretende o agravado, representa violação do art. 111 do Código Tributário Nacional, o qual exige interpretação literal dos dispositivos que tratam de outorga de favores fiscais. XIII – Agravo interno provido para dar provimento ao recurso especial da Fazenda Nacional.
(Aglnt no REsp n. 1.991.567/RN, relator Ministro Francisco Falcão, Segunda Turma, julgado em 9/11/2023, DJe de 17/11/2023.)
“Não cabe ao intérprete restringir o alcance do dispositivo legal que, a teor do art. 111 do CTN, deve ter sua aplicação orientada pela interpretação literal, a qual não implica, necessariamente, diminuição do seu alcance, mas sim sua exata compreensão pela literalidade da norma.”
(STJ, REsp 1.468.436/RS, Relator Ministro Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, j. 01.12.2015, DJe 09.12.2015)
Da análise literal do artigo 290 da Lei n. 6.015/73, constata-se que o legislador estabeleceu como requisitos para a concessão do desconto de 50% nos emolumentos a “primeira aquisição imobiliária para fins residenciais” e o “financiamento pelo Sistema Financeiro da Habitação (SFH)”.
A expressão “primeira aquisição imobiliária para fins residenciais” deve ser interpretada de forma literal, como a primeira vez que o adquirente utiliza o financiamento pelo SFH para comprar um imóvel residencial. Não há no texto legal qualquer menção à exigência de que o adquirente não possua outro imóvel registrado em seu nome, seja por compra anterior, herança ou qualquer outro meio.
Ao introduzir tal condição, a interpretação se torna restritiva e extrapola os limites do texto legal literal, criando um requisito negativo não previsto expressamente pelo legislador. Isso viola o princípio da legalidade, basilar em matéria tributária, segundo o qual a incidência do tributo (e seus descontos) deve ocorrer estritamente nos termos da lei e de forma literal, em se tratando de isenção, descontos e reduções, como ressaltado alhures.
Finalidade social da norma
Não se pode perder de vista que o Sistema Financeiro da Habitação (SFH), regulamentado pela Lei n. 4.380/1964, foi criado com o propósito de facilitar o financiamento da casa própria, especialmente para famílias de baixa e média renda.
O objetivo do legislador ao conceder o desconto de 50% sobre os emolumentos para a primeira aquisição imobiliária para fins residenciais financiada pelo SFH foi promover o acesso à moradia, facilitando a compra de imóveis mediante financiamento habitacional e reduzindo os custos envolvidos na aquisição.
A interpretação literal da norma está alinhada com essa finalidade social, pois amplia o alcance do benefício, atingindo um número maior de pessoas e facilitando o acesso ao registro imobiliário, que é pressuposto para a segurança jurídica da aquisição.
Embora seja compreensível a preocupação do RIB-GO de que a interpretação literal possa beneficiar pessoas que já possuem patrimônio imobiliário, é preciso considerar que não cabe ao intérprete restringir o alcance da norma além do que o texto legal expressamente prevê, sobretudo em matéria tributária.
Se o legislador quisesse restringir o benefício apenas às pessoas que nunca tiveram qualquer imóvel em seu nome, teria estabelecido expressamente tal condição no texto legal, o que não fez.
Dos requisitos para aquisição de imóvel financiado pelo Sistema Financeiro da Habitação (SFH)
A Lei n. 4.380/1964, que instituiu o Sistema Financeiro da Habitação, estabelece como finalidade essencial a promoção do acesso à moradia própria, especialmente às classes de menor renda. De acordo com o art. 9° da referida norma, os recursos do SFH devem ser aplicados, prioritariamente, na aquisição de imóveis residenciais destinados ao uso do adquirente e de sua família, sendo vedadas aplicações em terrenos não edificados, salvo como parte da operação de construção do imóvel.
Em sua redação original, o §1° do art. 9° proibia a concessão do financiamento a pessoas que já fossem proprietárias de imóvel residencial na mesma localidade. Contudo, essa restrição foi revogada pela Medida Provisória n. 2.197-43/2001, ampliando o acesso ao financiamento, inclusive àqueles que eventualmente já detenham imóvel anteriormente adquirido por outros meios.
As normas mais recentes do Conselho Monetário Nacional, em especial a Resolução CMN n. 5.197/2024, e as diretrizes operacionais da Caixa Econômica Federal, estabelecem que atualmente, para contratar financiamento no âmbito do SFH, o interessado deve atender aos seguintes requisitos: (i) o imóvel deve ser residencial e destinado à moradia própria; (ii) seu valor não pode ultrapassar R$ 1.500.000,00; (iii) o financiamento deve observar limite máximo de até 80% ou 90% do valor do imóvel, conforme o sistema de amortização utilizado; e (iv) o prazo de financiamento não pode exceder 35 anos.
A titularidade anterior de outro imóvel não constitui impedimento à concessão do financiamento, tampouco é condição para usufruir do benefício fiscal previsto no art. 290 da Lei n. 6.015/73.
Assim, os próprios critérios normativos e operacionais do SFH reforçam a interpretação de que a expressão “primeira aquisição” contida no artigo 290 deve se referir apenas à primeira aquisição feita por meio do SFH com finalidade residencial, sendo inadequado exigir a inexistência de qualquer imóvel anteriormente adquirido por outros meios, sob pena de criar restrição não prevista em lei.
Ante o exposto:
1. DEFIRO o pedido de ingresso do Registro de Imóveis do Brasil -Seção Goiás (RIB-GO) como interessado nos autos;
2. DEFIRO o pedido de ingresso do Registro de Imóveis do Brasil (RIB);
3. Quanto ao mérito, firmo o entendimento de que o desconto de 50% nos emolumentos, previsto no artigo 290 da Lei n. 6.015/73, será concedido quando se tratar da primeira aquisição imobiliária para fins residenciais, financiada pelo Sistema Financeiro da Habitação, sendo irrelevante para a concessão do benefício a existência de imóvel anterior adquirido de forma diversa da prevista nesse dispositivo;
4. Considerando que, conforme noticiado pela Corregedoria do Estado de Goiás, há divergência de interpretação acerca das condições do desconto de 50% nas aquisições de imóveis residenciais pelo SFH, DETERMINO que sejam intimadas todas as Corregedorias-Gerais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal, bem como as Corregedorias-Gerais do Foro Extrajudicial dos Estados do Maranhão e de Goiás, para que tomem ciência da presente decisão e a divulguem para uniformização dos procedimentos adotados nas serventias que são por si fiscalizadas.
Cumpra-se.
Arquive-se.
Brasília, data registrada no sistema.
Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES
Corregedor Nacional de Justiça