1ª VRP|SP: Dúvida – Registro de Imóveis – Escritura Pública de Compra e Venda – Súmula 377 – Releitura pelo STJ – Incidência que depende do exercício de pretensão e de efetiva demonstração do esforço comum – Dúvida improcedente.

SENTENÇA

Processo Digital nº: 1123212-32.2023.8.26.0100

Classe – Assunto Dúvida – Registro de Imóveis

Suscitante: 4º Oficial de Registro de Imóveis da Capital

Suscitado: Espólio de Lucia Di Sessa Patricio

Juiz(a) de Direito: Dr(a). Luciana Carone Nucci Eugênio Mahuad

Vistos.

Trata-se de dúvida suscitada pelo Oficial do 4º Registro de Imóveis da Capital a requerimento de Maria Cecília Fricke Siqueira ChohfiMartha Gonçalves de Souza espólio de Lucia Di Sessa Patrício, representado pela inventariante Maria Cristina Di Sessa Carvalho, diante da negativa de registro de escritura pública de compra e venda lavrada em 19 de julho de 2023 pelo 1º Tabelião de Notas e de Protesto de Letras e Títulos da Comarca de São Roque/SP (matrícula n. 15.185; prenotação n. 648.788).

A devolução do título se apoiou na súmula 377 do Supremo Tribunal Federal.

O Oficial esclarece que o imóvel foi adquirido a título oneroso por Lucia Di Sessa Patrício enquanto casada com Antonio Patrício pelo regime da separação obrigatória de bens; que, na escritura, apenas constou como vendedor o espólio de Lucia, sem prévio registro da partilha dos bens decorrentes do falecimento de Antonio, que ocorreu anteriormente, em 16/03/2002; que, embora não se desconheça a releitura da mencionada súmula pelo Superior Tribunal de Justiça e as decisões desta Corregedoria Permanente, a matéria parece não estar pacificada no Estado São Paulo; que, em caso similar, o E. Conselho Superior da Magistratura manteve o entendimento a respeito da comunicabilidade patrimonial em virtude de a aquisição onerosa ter ocorrido na vigência do Código Civil de 1916 (Apelação Cível n. 1004185-35.2022.8.26.0506).

Documentos vieram às fls. 05/39.

Em manifestação dirigida ao Oficial, a parte suscitada alegou que o imóvel não foi relacionado no inventário de Antonio porque ele não contribuiu com a sua aquisição; que o entendimento do STJ, pacificado nos embargos de divergência opostos no REsp n. 1.623.858/MG, é no sentido da necessidade de comprovação do esforço comum para que haja comunicação dos bens em hipóteses como a dos autos; que tal entendimento já é adotado pela 1ª Vara de Registros Públicos (processo de autos n. 1011668-39.2023.8.26.0100); que a venda do imóvel foi autorizada por decisão judicial proferida no inventário de autos n. 1012436-53.2014.8.26.0011; que a matéria era bastante controvertida na vigência do Código Civil de 1916; que não cabe ao Oficial pressupor que o bem adquirido na constância do casamento era de propriedade do casal quando não há indícios de esforço comum na aquisição do imóvel; que, embora falecido há mais de vinte e dois anos, não há notícia de que os sucessores de Antonio tenham reivindicado sua participação na aquisição do imóvel; que o patrimônio de Antonio foi partilhado sem menção ao apartamento objeto da presente dúvida e seus herdeiros não reivindicaram qualquer direito nos autos do inventário de Lucia; que a jurisprudência atual, vigente na época da apresentação do título, deve ser obedecida (fls. 08/13). Nestes autos, porém, não houve impugnação (fl. 40).

O Ministério Público opinou pela improcedência (fls. 43/46).

É o relatório.

Fundamento e decido.

De início, é importante ressaltar que o Registrador dispõe de autonomia e independência no exercício de suas atribuições, podendo recusar títulos que entender contrários à ordem jurídica e aos princípios que regem sua atividade (art. 28 da Lei n. 8.935/1994), o que não se traduz como falha funcional.

No mérito, porém, considerando o dever de uniformização da jurisprudência, com respeito à sua integridade e coerência, concluo que a dúvida deve ser julgada improcedente. Vejamos os motivos.

No caso concreto, extrai-se da matrícula n. 15.185 que o imóvel foi adquirido por Lucia Di Sessa Patrício no ano de 1981, quando estava casada com Antonio Patrício pelo regime da separação obrigatória de bens (R.02 e R.05 fls. 34/39). Antonio e Lucia faleceram em 16/03/2002 e 22/11/2013, respectivamente (Av.09 e Av.10 fl. 38).

A alienação do imóvel foi autorizada pelo juízo da 11ª Vara da Família e Sucessões do Foro Central Cível, conforme alvará expedido no inventário dos bens deixados por Lucia (processo de autos n. 1012436-53.2014.8.26.0011 item XII, fls. 18/23).

Houve, porém, devolução pelo Oficial Registrador, sob o fundamento de comunicação de aquestos na constância do casamento entre os de cujus, sendo que não houve registro prévio da partilha dos bens deixados pelo falecimento de Antonio.

A súmula 377 do STF dispõe que “no regime de separação legal de bens, comunicam-se os adquiridos na constância do casamento”.

O Oficial, portanto, aplicou entendimento que parece ainda vigorar perante o Conselho Superior da Magistratura do E. Tribunal de Justiça de São Paulo:

“REGISTRO DE IMÓVEIS. DÚVIDA NEGATIVA DE REGISTRO DE ESCRITURA PÚBLICA DE INVENTÁRIO E PARTILHA IMÓVEIS QUE FORAM ADQUIRIDOS A TÍTULO ONEROSO E NA VIGÊNCIA DO CÓDIGO CIVIL DE 1916, POR PESSOA CASADA EM REGIME DE SEPARAÇÃO OBRIGATÓRIA DE BENS. SÚMULA Nº 377 DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. PRESUNÇÃO DE COMUNICAÇÃO DOS AQUESTOS. DÚVIDA PROCEDENTE. APELAÇÃO NÃO PROVIDA” (TJSP; Apelação Cível 1004185-35.2022.8.26.0506; Relator (a): Fernando Torres Garcia(Corregedor Geral); Órgão Julgador: Conselho Superior da Magistratura; Foro de Ribeirão Preto – 5ª Vara Cível; Data do Julgamento: 05/05/2023; Data de Registro: 10/05/2023).

“REGISTRO DE IMÓVEIS. Escritura Pública de Inventario e Partilha Extrajudicial. Falecida proprietária casada no regime da separação obrigatória de bens. Bem adquirido na constância do casamento. Cônjuges falecidos. Inventário da falecida esposa por meio do qual a totalidade do imóvel é partilhada. Impossibilidade de registro. Aplicabilidade da Súmula 377 do STF. Cabimento da retificação do título. Apelação não provida” (TJSP; Apelação Cível 1004533- 95.2018.8.26.0505; Relator (a): Pinheiro Franco (Corregedor Geral); Órgão Julgador: Conselho Superior de Magistratura; Foro de Ribeirão Pires – 1ª Vara; Data do Julgamento: 07/11/2019; Data de Registro: 25/11/2019).

“REGISTRO DE IMÓVEIS. Escritura Pública de Inventário e Partilha Extrajudicial. Falecida proprietária casada no regime da separação obrigatória de bens. Bem adquirido na constância do casamento. Cônjuge falecido. Impossibilidade de registro sem a prévia inscrição do formal de partilha extraído do inventário do falecido marido. Aplicabilidade da Súmula 377 do Supremo Tribunal Federal. Apelação não provida” (TJSP; Apelação Cível 1046515-98.2018.8.26.0114; Relator (a): Pinheiro Franco (Corregedor Geral); Órgão Julgador: Conselho Superior de Magistratura; Foro de Campinas – 1ª Vara Cível; Data do Julgamento: 07/11/2019; Data de Registro: 25/11/2019).

“REGISTRO DE IMÓVEIS. Dúvida. Compra e venda de imóvel. Espólio que promoveu a venda autorizado por alvará expedido em inventário judicial. Imóvel, porém, que foi parcialmente adquirido, a título oneroso e na vigência do Código Civil de 1916, por pessoa casada em regime de separação obrigatória de bens. Súmula nº 377 do Supremo Tribunal Federal. Presunção de comunicação dos aquestos. Falecimento da esposa sem que promovido o inventário da meação na parte do imóvel adquirida por seu marido a título oneroso. Pretensão de registro de venda da integralidade do bem, pelo espólio do marido posteriormente falecido. Ausência de menção, na matrícula do imóvel, da partilha relativa à metade ideal adquirida a título oneroso. Afronta ao princípio da continuidade. Dúvida procedente. Apelação não provida” (TJSP; Apelação Cível 1135175-81.2016.8.26.0100; Relator (a): Pinheiro Franco (Corregedor Geral); Órgão Julgador: Conselho Superior de Magistratura; Foro Central Cível – 1ª Vara de Registros Públicos; Data do Julgamento: 10/04/2018; Data de Registro: 16/04/2018).

“REGISTRO DE IMÓVEIS. Arrolamento de Bens. Carta de adjudicação. Partilha de imóvel adquirido na constância do casamento do falecido. Casamento celebrado sob a égide do Código Civil de 1916. Regime da separação obrigatória de bens. Súmula n.º 377 do STF. Deve ser partilhada a integralidade dos bens para solução do estado de indivisão provocado pela morte de um dos cônjuges. Indicação do título pelo qual houve a transmissão do bem adjudicado. Recusa mantida. Recurso improvido” (TJSP; Apelação Cível 0006511-11.2015.8.26.0318; Relator (a): Pinheiro Franco (Corregedor Geral); Órgão Julgador: Conselho Superior de Magistratura; Foro de Leme – 2ª Vara Cível; Data do Julgamento: 09/03/2018; Data de Registro: 20/03/2018).

A interpretação da referida súmula quanto à necessidade de prova do esforço comum é tema extremamente controvertido, o que leva a interpretações divergentes, inclusive no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, que analisou a questão para sua uniformização em duas oportunidades.

Primeiramente, nos Embargos de Divergência n. 1.171.820/PR, a corte superior concluiu que o reconhecimento do esforço comum do casal na aquisição onerosa de bens dependeria de prova. Foi nesse sentido o julgamento, que teve a seguinte ementa:

“EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA NO RECURSO ESPECIAL. DIREITO DE FAMÍLIA. UNIÃO ESTÁVEL. COMPANHEIRO SEXAGENÁRIO. SEPARAÇÃO OBRIGATÓRIA DE BENS (CC/1916, ART. 258, II; CC/2002, ART. 1.641, II). DISSOLUÇÃO. BENS ADQUIRIDOS ONEROSAMENTE. PARTILHA. NECESSIDADE DE PROVA DO ESFORÇO COMUM. PRESSUPOSTO DA PRETENSÃO. EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA PROVIDOS. 1. Nos moldes do art. 258, II, do Código Civil de 1916, vigente à época dos fatos (matéria atualmente regida pelo art. 1.641, II, do Código Civil de 2002), à união estável de sexagenário, se homem, ou cinquentenária, se mulher, impõe-se o regime da separação obrigatória de bens. 2. Nessa hipótese, apenas os bens adquiridos onerosamente na constância da união estável, e desde que comprovado o esforço comum na sua aquisição, devem ser objeto de partilha. 3. Embargos de divergência conhecidos e providos para negar seguimento ao recurso especial” (EREsp 1171820/PR, Rel. Ministro RAUL ARAÚJO, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 26/08/2015, DJe 21/09/2015).

Para correta aplicação do precedente, é importante verificar os elementos que envolvem o caso concreto.

Conforme indicado expressamente no corpo do referido acórdão:

“A tese central da controvérsia cinge-se, portanto, em definir se, na hipótese de união estável envolvendo sexagenário e cinquentenária, mantida sob o regime da separação obrigatória de bens, a divisão entre os conviventes dos bens adquiridos onerosamente na constância da relação depende ou não da comprovação do esforço comum para o incremento patrimonial”.

Também o fato de o aresto embargado cuidar da hipótese de partilha de bens foi destacado nos seguintes termos:

“Aqui, o fenômeno sucessório é elemento meramente circunstancial da tese ora discutida, o que não afasta a similitude fática entre os arestos confrontados, porque as eventuais peculiaridades da sucessão não foram levadas em conta, pois o que pretendia a convivente supérstite era a meação dos bens”.

Naquele julgamento, o Ministro Paulo de Tarso Sanseverino pronunciou voto-vencido, no qual defendeu a aplicação da regra do artigo 5º da Lei n. 9.278/96, que estabelece exatamente a presunção legal do esforço comum na aquisição onerosa de bens na constância de união estável.

A Ministra Maria Isabel Gallotti, por sua vez, seguiu a maioria, lembrando que a lei civil que determina o regime da separação obrigatória para o sexagenário afasta a presunção do esforço comum, sendo que os bens adquiridos antes da entrada em vigor da Lei n. 9.278/96 têm sua propriedade disciplinada pelo ordenamento jurídico anterior, que não estabelecia essa presunção de esforço comum.

Posteriormente, no julgamento dos Embargos de Divergência n. 1.623.858/MG, ora invocado pela parte suscitada, a necessidade de prova do esforço comum foi reafirmada, com expressa indicação de releitura da antiga súmula 377/STF, fixando-se nova compreensão, com a seguinte ementa:

“EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA NO RECURSO ESPECIAL. DIREITO DE FAMÍLIA. UNIÃO ESTÁVEL. CASAMENTO CONTRAÍDO SOB CAUSA SUSPENSIVA. SEPARAÇÃO OBRIGATÓRIA DE BENS (CC/1916, ART. 258, II; CC/2002, ART. 1.641, II). PARTILHA. BENS ADQUIRIDOS ONEROSAMENTE. NECESSIDADE DE PROVA DO ESFORÇO COMUM. PRESSUPOSTO DA PRETENSÃO. MODERNA COMPREENSÃO DA SÚMULA 377/STF. EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA PROVIDOS. 1. Nos moldes do art. 1.641, II, do Código Civil de 2002, ao casamento contraído sob causa suspensiva, impõe-se o regime da separação obrigatória de bens. 2. No regime de separação legal de bens, comunicam-se os adquiridos na constância do casamento, desde que comprovado o esforço comum para sua aquisição. 3. Releitura da antiga Súmula 377/STF (No regime de separação legal de bens, comunicam-se os adquiridos na constância do casamento), editada com o intuito de interpretar o art. 259 do CC/1916, ainda na época em que cabia à Suprema Corte decidir em última instância acerca da interpretação da legislação federal, mister que hoje cabe ao Superior Tribunal de Justiça. 4. Embargos de divergência conhecidos e providos, para dar provimento ao recurso especial” (EREsp 1623858/MG, Rel. Ministro LÁZARO GUIMARÃES (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TRF 5ª REGIÃO), SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 23/05/2018, DJe 30/05/2018).

Neste caso, como anotado no acórdão:

“(…) a moldura fática e jurídica dos arestos confrontados é idêntica: saber se a comunicação/partilha dos bens adquiridos na constância de casamento submetido ao regime da separação legal de bens depende da comprovação do esforço comum na aquisição do acervo”.

O fenômeno sucessório, tal como no EREsp n. 1.171.820, foi considerado elemento meramente circunstancial da celeuma.

Verificou-se que a súmula 377/STF apenas apregoa a comunicação dos bens, mas não esclarece se a comunicabilidade depende de algum outro requisito, permitindo a presunção pelo esforço comum do casal na aquisição do acervo ou exigindo comprovação desse esforço.

A conclusão foi de que a presunção do esforço comum conduz à ineficácia do regime da separação obrigatória por exigir produção de prova negativa para se comprovar que o ex-cônjuge ou ex-companheiro nada contribuiu para a aquisição onerosa do bem.

A regra, portanto, é a aplicação do regime da separação.

A comunicação dos bens adquiridos na constância do casamento sob o regime da separação obrigatória, embora admitida nos termos da súmula 377/STF, depende do exercício de pretensão e de efetiva demonstração do esforço comum.

Neste contexto, não cabe ao Oficial Registrador qualificar negativamente o título com base na presunção do esforço comum, notadamente porque houve autorização judicial para a venda e o cônjuge pré-morto faleceu há mais de vinte anos, sem notícia de que seus herdeiros tenham reivindicado qualquer direito relativo ao imóvel.

O artigo 489, §1º, VI, do CPC, dispõe que não se considera fundamentada qualquer decisão judicial que deixe de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento.

Note-se que a Corregedoria Permanente é exercida por órgão judicial, embora em procedimento administrativo, não jurisdicional.

A hipótese ora analisada se enquadra perfeitamente no precedente invocado: embora aquele trate de união estável, envolve a aplicação subsidiária do regime da separação obrigatória, o qual incide no caso concreto, sendo que a presunção do esforço comum prevista na Lei n. 9.278/96 se refere apenas ao reconhecimento da união estável, não se aplicando à situação sub judice.

Ressalta-se, por fim, que, nos termos da ementa do EREsp 1.623.858, a interpretação da súmula 377/STF é mister que hoje cabe ao STJ.

Assim, considerando que referida súmula é o fundamento básico da orientação firmada pelo C. Conselho Superior da Magistratura do Tribunal de Justiça de São Paulo, se definida sua releitura pelo STJ, toda a jurisprudência deve ser uniformemente orientada, como disciplina o artigo 926 do CPC, o que passa a ser feito por este juízo.

Diante do exposto, JULGO IMPROCEDENTE a dúvida e determino o registro do título. Regularize-se o polo passivo (fls. 08 e 18), anotando-se e comunicando-se.

Deste procedimento não decorrem custas, despesas processuais ou honorários advocatícios.

Oportunamente, remetam-se os autos ao arquivo.

P.R.I.C.

São Paulo, 10 de outubro de 2023.

Luciana Carone Nucci Eugênio Mahuad

Juíza de Direito

(DJe de 16.10.2023 – SP)