1ª VRP|SP: Dúvida – Registro de Imóveis – Usucapião extrajudicial – Soma da posse – Um dos cedentes com indisponibilidade – Execuções que não recaem sobre a posse alegada – A indisponibilidade, não retroage e não afeta os cessionários – Por meio do edital que se dá ciência a terceiros indeterminados que possam ser atingidos pela decisão final – As fazendas públicas serão notificadas e poderão se manifestar – Documentos probatórios aparentemente insuficientes – O Registrador, tal como o juiz na via jurisdicional, deve se restringir aos limites objetivos do pedido, analisando os fatos alegados pela parte requerente com base na prova produzida e, se esta não for suficiente, exigir reforço até que esteja seguro para proferir, com independência, seu julgamento sobre o mérito.

SENTENÇA

Processo Digital nº: 1092717-05.2023.8.26.0100

Classe – Assunto Dúvida – Registro de Imóveis

Suscitante: 6º Oficial de Registro de Imóveis da Comarca da Capital – Sp

Suscitado: Solange Daniel de Souza e outro

Juiz(a) de Direito: Dr(a). Luciana Carone Nucci Eugênio Mahuad

Vistos.

Trata-se de dúvida suscitada pelo Oficial do 6º Registro de Imóveis da Capital a requerimento de Solange Daniel de Souza e Dejair Daniel de Souza à vista de exigências feitas em procedimento extrajudicial de reconhecimento de usucapião do imóvel objeto da matrícula n.146.607 daquela serventia.

O Oficial informa que a parte suscitada requer o reconhecimento de usucapião extraordinário do apartamento n.1.115 do Edifício Blue Tower, integrante do empreendimento denominado “Condomínio Prime House”, sob o fundamento de exercício da posse por mais de quinze anos quando somado o período de seus antecessores; que o imóvel tem como proprietária tabular EZ Giopris Empreendimentos Imobiliários S/C Ltda, a qual prometeu vender o bem para Roberval Zopolato Mendes e sua mulher, Iara Iuze Zopolato Mendes, por instrumento particular de promessa de venda e compra firmado em novembro de 2000, não registrado; que os promitentes compradores cederam seus direitos sobre o imóvel para Solange Daniel de Souza e Dejair Daniel de Souza por instrumento particular firmado em dezembro de 2010; que Roberval é irmão de Solange e figura no polo passivo de algumas execuções, com indisponibilidade de seus bens no CNIB, decretada em 28/10/2022; que, como não houve publicidade das promessas de venda e compra, concluiu que há fortes indícios de fraude à execução por meio de simulação, que é causa de nulidade do negócio jurídico, pelo que exigiu a retificação do polo ativo do procedimento extrajudicial para fazer constar apenas Roberval Zopolato Mendes e Iara Iuze Zopolato Mendes.

Cópia integral do procedimento extrajudicial foi produzida às fls.06/378.

A parte suscitada apresentou impugnação às fls.381/387, alegando que a posse foi devidamente comprovada nos autos; que não cabe ao Oficial, em sede administrativa, reconhecer a existência de nulidade de negócio jurídico ou de fraude contra credores; que a indisponibilidade decretada não alcança a parte requerente nem impede o processamento do pedido extrajudicial.

O Ministério Público opinou pela procedência, entendendo presentes os indícios de simulação para evitar correto recolhimento dos tributos (fls.391/392).

É o relatório.

Fundamento e decido.

Por primeiro, é importante consignar que a existência de outras vias de tutela não exclui a da usucapião administrativa, que segue rito próprio, com regulação pelo artigo 216-A da Lei n. 6.015/73, pelo Prov. 65/2017 do CNJ e pela Seção XII do Cap. XX das NSCGJSP.

Assim, como a parte interessada optou por esta última para alcançar a propriedade do imóvel, a análise deve ser feita dentro de seus requisitos normativos.

Neste sentido, decidiu o Conselho Superior da Magistratura na Apelação Cível n. 1004044-52.2020.8.26.0161, com relatoria do então Corregedor Geral da Justiça, Des. Ricardo Anafe (destaque nosso):

“Usucapião Extrajudicial direito que deve ser declarado por ação judicial ou expediente administrativo nas hipóteses em que os pressupostos legais estejam rigorosamente cumpridos possibilidade de regularização do imóvel de maneira diversa à usucapião que não impede esta última, inclusive por procedimento administrativo recusa indevida quanto ao processamento do pedido dúvida improcedente – Recurso provido com determinação para prosseguimento do procedimento de usucapião Extrajudicial”.

Vale observar, ainda, que a dúvida decorre do inconformismo da parte requerente após exigências formuladas pelo Oficial, as quais não foram reconsideradas (fls. 371/372 e 374/378), com prosseguimento nos termos do §5º, do artigo 17, do Provimento n. 65/2017 do CNJ, e dos itens 421.2 e 421.4, Cap. XX, das Normas de Serviço da Corregedoria do Tribunal de Justiça de São Paulo:

“Art. 17. Para a elucidação de quaisquer dúvidas, imprecisões ou incertezas, poderão ser solicitadas ou realizadas diligências pelo oficial de registro de imóveis ou por escrevente habilitado.

(…)

§ 5º A rejeição do requerimento poderá ser impugnada pelo requerente no prazo de quinze dias, perante o oficial de registro de imóveis, que poderá reanalisar o pedido e reconsiderar a nota de rejeição no mesmo prazo ou suscitará dúvida registral nos moldes dos art. 198 e seguintes da LRP”.

“421.2. Se, ao final das diligências, ainda persistirem dúvidas, imprecisões ou incertezas, bem como a ausência ou insuficiência de documentos, o oficial de registro de imóveis rejeitará o pedido mediante nota de devolução fundamentada

(…)

421.4. A rejeição do requerimento poderá ser impugnada pelo requerente no prazo de quinze dias, perante o oficial de registro de imóveis, que poderá reanalisar o pedido e reconsiderar a nota de rejeição no mesmo prazo ou suscitará dúvida registral nos moldes dos art. 198 e seguintes da LRP e item 39 deste capítulo”.

No mérito, em que pese a cautela do Oficial registrador, a dúvida é improcedente. Vejamos os motivos.

A parte suscitada pretende o reconhecimento de usucapião extraordinário nos termos do artigo 1.238 do Código Civil, alegando posse por prazo superior a quinze anos quando somada ao tempo exercido por seus antecessores, de quem adquiriu direitos possessórios por instrumento particular de cessão datado de 08 de novembro de 2010 (fls.62/66).

O imóvel corresponde ao objeto da matrícula n.146.607 daquela serventia, em que figura como proprietária tabular a empresa Ez-Giopris Empreendimentos Imobiliários S/C Ltda (fls.33/34), a qual prometeu vendê-lo para Roberval Zopolato Mendes e sua mulher, Iara Iuze Zopolato Mendes, por meio de instrumento particular e aditamento datados de 30/11/2000 e 10/11/2004 (fls.41/61).

Os promitentes compradores, por sua vez, transferiram a sua posse para a parte suscitada por instrumento particular firmado em novembro de 2010 (fls.62/66).

As certidões dos distribuidores copiadas às fls.181/182, 188/192 e 198/201 apontam a existência de algumas execuções envolvendo os cedentes da posse, Roberval Zopolato Mendes e Iara Iuze Zopolato Mendes, mas não identificam ação possessória que possa interferir na análise do pedido.

Nesse contexto, ainda que o requerimento envolva a soma do tempo de posse exercido pelos cedentes, que aparentam ser devedores, não é possível impor a alteração do polo ativo visando tutelar a satisfação de eventuais credores.

Também não é possível reconhecer na via administrativa a ocorrência de suposta fraude a credores, o que somente pode ser apurado na via judicial mediante provocação de parte interessada para que se reconheça e declare a invalidade de negócio jurídico (hipótese de anulabilidade conforme previsto no artigo 158 do Código Civil).

É certo que a falta de publicidade acerca da aquisição do imóvel impossibilita o amplo conhecimento e a adoção de providências por eventuais credores.

Contudo, é por meio do edital que se dá ciência a terceiros indeterminados que possam ser atingidos pela decisão final (Cap. XX, NSCGJ):

“418.21. Após as notificações dos titulares do domínio do imóvel usucapiendo e dos confrontantes, o oficial de registro de imóveis expedirá edital, que será publicado pelo requerente e às expensas dele, na forma do art. 257, III, do CPC, para ciência de terceiros eventualmente interessados, que poderão manifestar-se nos quinze dias subsequentes ao da publicação…”.

Também as Fazendas Públicas serão cientificadas na forma do item 418.20, Cap. XX, das NSCGJ, e terão oportunidade para conhecer os fatos apontados pelo Oficial e postular eventuais medidas que entendam cabíveis, inclusive sobre eventual evasão fiscal.

Observe-se que até o presente momento não se identifica a existência de lide relativa à posse alegada, de modo que, somente mediante impugnação, a via judicial se tornará necessária e caberá à parte requerente emendar a petição inicial para adequá-la ao procedimento comum nos termos do §10, do artigo 216-A, da Lei n. 6.015/73.

Observe-se, ainda, que, inexistindo impugnação, sequer na via judicial eventual fraude poderá ser reconhecida de ofício, uma vez que a jurisdição depende de provocação e deve se restringir aos limites objetivos do pedido em respeito ao princípio da adstrição ou congruência.

Da mesma forma, a indisponibilidade dos bens de Roberval lançada no sistema do CNIB em 28/10/2022 não pode afetar o pedido formulado por Solange e Daniel, que alegam ter adquirido a posse em novembro de 2010.

Mesmo que a parte suscitada pretenda, para os efeitos legais, unir sua posse à do antecessor, conforme autoriza o artigo 1.207 do Código Civil, deve-se atentar que a usucapião não implica na alienação do imóvel, mas na regularização do domínio pelo reconhecimento do exercício de uma posse qualificada por um determinado período de tempo previsto em lei.

A usucapião é modo originário de aquisição da propriedade, seu reconhecimento possui natureza meramente declaratória e o seu registro no cartório extrajudicial serve principalmente para conferir segurança jurídica e dar publicidade à nova realidade, permitindo o exercício do ius disponendi (REsp n.118.360/SP).

A transmissão da posse, por sua vez, é imediata e se opera, nos termos do artigo 1.204, do Código Civil, “desde o momento em que se torna possível o exercício, em nome próprio, de qualquer dos poderes inerentes à propriedade”, distinguindo-se da transmissão da propriedade imobiliária, a qual depende essencialmente do registro do título translativo.

Assim, considerando que o ato da cessão da posse é regido pela situação existente no momento da transferência do exercício dos poderes sobre o bem (tempus regit actum) e que a ordem de indisponibilidade identificada pelo Registrador é posterior, não há irregularidade aparente na cessão veiculada pelo instrumento copiado às fls.62/66.

A indisponibilidade, em outros termos, não retroage e não afeta os cessionários.

Vale anotar que eventual simulação também não constitui matéria preliminar determinante da legitimidade da parte, mas envolve o próprio mérito e deve ser oportunamente apurada na decisão final do Registrador.

Neste ponto, importante ressaltar que não foi apresentada prova documental da posse que a parte suscitada alega exercer há tantos anos: apenas foram apresentados os lançamentos de IPTU em nome da proprietária tabular e os boletos de condomínio em nome de Roberval, sendo que os comprovantes informam que os pagamentos foram feitos por Clelia Zopolato, que é mãe de Roberval e de Solange (fls.89/149). Uma única conta de consumo de energia elétrica foi apresentada, referente ao mês de janeiro de 2021, e continua em nome de Roberval (fl.150).

A posse dos requerentes se sustenta apenas no instrumento de cessão de fls.62/66, o qual, aparentemente, não traz reconhecimento de firma que certifique a data de sua confecção; nas declarações de duas testemunhas (fls.37/38) e na anuência do condomínio, que, de maneira contraditória, reconhece a posse, mas continua cobrando as taxas por boletos sacados contra Roberval.

Nesse contexto, ganha força a tese da simulação apresentada pelo Registrador.

No entanto, não é possível determinar a regularização do polo ativo para reconhecimento do direito em favor de terceiro, que não se faz presente. O Registrador, tal como o juiz na via jurisdicional, deve se restringir aos limites objetivos do pedido, analisando os fatos alegados pela parte requerente com base na prova produzida e, se esta não for suficiente, exigir reforço até que esteja seguro para proferir, com independência, seu julgamento sobre o mérito.

Diante do exposto, JULGO IMPROCEDENTE a dúvida suscitada para determinar o prosseguimento do procedimento extrajudicial, ainda que com as observações feitas na fundamentação.

Deste procedimento não decorrem custas, despesas processuais ou honorários advocatícios.

Oportunamente, ao arquivo.

P.R.I.C.

São Paulo, 10 de agosto de 2023.

Luciana Carone Nucci Eugênio Mahuad

Juiz de Direito

(DJe de 14.08.2023 – SP)