1ª VRP|SP: Dúvida – Registro de Imóveis – Usucapião extrajudicial – Correquerentes herdeiros – Desistência de um – Soma da posse pela successio possessionis – Inviabilidade do procedimento seguir em nome de um – Necessidade da comprovação da posse exclusiva para tanto – Dúvida procedente.

SENTENÇA

Processo Digital nº: 1073972-74.2023.8.26.0100

Classe – Assunto Dúvida – Registro de Imóveis

Suscitante: Primeiro Cartório de Registro de Imóveis de São Paulo

Suscitado: Cesar de Almeida Júnior e outros

Juiz(a) de Direito: Dr(a). Luciana Carone Nucci Eugênio Mahuad

Vistos.

Trata-se de dúvida suscitada pelo Oficial do 1º Registro de Imóveis da Capital em procedimento de usucapião extrajudicial requerido Cesar de Almeida Júnior e Lucimara de Almeida Cruz sobre o imóvel descrito nas transcrições n. 47.337 e 67.687 daquela serventia (prenotação 403.647).

O Oficial esclarece que o procedimento se desenvolveu com todos os trâmites necessários, estando a usucapião apta a ser reconhecida; que os valores relativos aos emolumentos finais do processamento e do registro foram informados e depositados pela advogada dos requerentes; que restava apenas a elaboração de decisão final, com reconhecimento da usucapião; que, em 31 de maio de 2023, o correquerente Cesar de Almeida Júnior esteve pessoalmente em cartório e apresentou requerimento de desistência de próprio punho; que a correquerente Lucimara Ferreira de Almeida Cruz se manifestou contrariamente à desistência feita por seu irmão e requereu o seguimento do expediente, com registro da usucapião; que, como a desistência é ato unilateral, pode ser deferida, o que impede o prosseguimento do expediente pela via administrativa.

Documentos vieram às fls. 03/739.

Embora tenha sido comprovada notificação (fls. 738/739), impugnação não foi produzida (fl. 740).

O Ministério Público opinou pela procedência (fls. 744/745).

É o relatório

Fundamento e decido.

Vê-se que a parte suscitada iniciou procedimento extrajudicial de usucapião do imóvel descrito na inicial, alegando posse por mais de quinze anos quando somada à de seus antecessores (artigos 1.238 e 1.243 do Código Civil – fls. 03/737).

De acordo com sua narrativa, o imóvel usucapiendo foi adquirido por seus bisavós, Manuel Rodrigues Ferreira e Izaldina Maria da Conceição Fereira, dos proprietários tabulares, Jamil Beyrut e sua esposa, Sosephine Attieh Beyruti, Bechara Beyruti e sua esposa, Maria Beyrut, mas sem formalização por escrito.

Com a morte dos bisavós, a posse foi transmitida à avó dos requerentes, Maria da Conceição Ferreira.

Posteriormente, com o falecimento de Maria da Conceição Ferreira, a posse do bem passou a ser exercida pela filha dela, mãe dos requerentes, Maria Filomena Ferreira Raimundo. Após, com seu óbito em 31/01/2019, a posse passou a ser exercida em conjunto pelos requerentes.

Diante do princípio da saisine, os herdeiros recebem o acervo hereditário desde a abertura da sucessão, o qual será indivisível até a finalização da partilha, seguindo as normas relativas ao condomínio (artigos 1.784 e 1.791 do Código Civil).

Assim, a posse sobre os bens do autor da herança é transmitida a todos os seus herdeiros, independentemente de qualquer ato.

Considerando que os requerentes são irmãos e herdeiros de Maria Filomena Ferreira Raimundo, indispensável que figurem no polo ativo do procedimento extrajudicial ou que se apresentem declarações de anuência ou, ainda, que se comprove, por meio da juntada de formal, que o bem foi partilhado tão somente a um dos herdeiros.

Em outras palavras, até que se formalize a partilha, a posse será comum, não havendo como prestigiar um dos herdeiros com a soma do tempo de posse dos falecidos em detrimento dos demais, conforme decidido recentemente pelo E. Conselho Superior da Magistratura:

“REGISTRO DE IMÓVEIS – USUCAPIÃO EXTRAJUDICIAL – FALTA DE PREENCHIMENTO DOS REQUISITOS LEGAIS – LAPSO TEMPORAL NÃO ATINGIDO PARA O RECONHECIMENTO DA USUCAPIÃO EXTRAORDINÁRIA – IMPOSSIBILIDADE DA SOMA DA POSSE PELO INSTITUTO DA SUCCESSIO POSSESSIONIS – AUSENTE JUSTO TÍTULO PARA A USUCAPIÃO ORDINÁRIA – RECURSO NÃO PROVIDO” (TJSP; Apelação Cível 1021331-35.2021.8.26.0309; Relator (a): Fernando Torres Garcia (Corregedor Geral); Órgão Julgador: Conselho Superior da Magistratura; Foro de Jundiaí – 1ª Vara Cível; Data do Julgamento: 10/11/2022; Data de Registro: 18/11/2022).

Apesar de o acórdão não tratar de posse ad usucapionem, o relator também abordou a hipótese ora analisada:

“(…) E ainda que se pudesse falar em soma da posse (successio possessionis – artigos 1.207 e 1.243 do Código Civil), caso a exercida pela genitora fosse ad usucapionem, a recorrente não poderia usar em benefício próprio o tempo anterior ao falecimento de sua mãe que, na verdade, beneficia a todos os herdeiros e não a si pessoalmente.

Na lição de Benedito Silvério Ribeiro, “com a abertura da sucessão, a posse exercida pelo autor da herança vai aos herdeiros independentemente de atos seus, mas incorpora-se a todos, não podendo uns usucapir contra outros, somando a sua posse à do antecessor comum” (Tratado de Usucapião, 6ª edição Saraiva, vol I, p. 265) (…)”.

No caso em tela, o que se vê é que, apesar de o procedimento ter sido iniciado com a participação de ambos os herdeiros no polo ativo, houve desistência posterior do correquerente César de Almeida Júnior, o que inviabiliza o reconhecimento da usucapião como postulada nesta via administrativa.

Caso a correquerente Lucimara Ferreira de Almeida Cruz venha a defender posse exclusiva, só se poderá considerar que passou a exercê-la de forma ininterrupta e sem oposição após a abertura da última sucessão, em 31/01/2019, com o falecimento de sua genitora (certidão de óbito de fls. 43).

Lucimara poderia, em consequência, pleitear a prescrição aquisitiva em seu nome, sem considerar o tempo de posse de seus antecessores, desde que comprovasse exercer posse exclusiva sobre o imóvel há mais de quinze anos, o que não é o caso.

Por outro lado, como pretende a soma da posse à dos ascendentes, tal medida somente será possível se realizada partilha dos direitos sobre o imóvel e os demais herdeiros renunciarem à herança por instrumento público, tendo em vista que, neste caso, não ocorrerá a transmissão da herança aos renunciantes, nos termos dos artigos 1.804 e 1.806 do Código Civil.

Em outros termos, justamente em virtude da desistência do correquerente César de Almeida Júnior antes do reconhecimento da usucapião como requerida (com somatória de posse dos antecedentes e no interesse de ambos os herdeiros), a via extrajudicial se torna prejudicada.

A parte ainda interessada, por sua vez, poderá se valer da via contenciosa, com uso dos elementos constantes do procedimento extrajudicial para instruir seu pedido, emendando a petição inicial para adequá-la ao procedimento comum (item 420.8, Cap. XX, das NSCGJ).

Diante do exposto, JULGO PROCEDENTE a dúvida para manter o óbice registrário. Observe-se a renúncia noticiada pela patrona da parte suscitada, com comprovação de notificação (fls. 746 e 747/752), aguardando-se pela regularização da representação processual pelo prazo de dez dias, na forma da lei.

Deste procedimento não decorrem custas, despesas processuais ou honorários advocatícios.

Oportunamente, arquivem-se os autos.

P.R.I.C.

São Paulo, 20 de julho de 2023.

Luciana Carone Nucci Eugênio Mahuad

Juiz de Direito

(DJe de 24.07.2023 – SP)