1ª VRP|SP: Registro de Imóveis – Escritura de Permuta sem torna – Valor atribuído igualitário – Valor fiscal distinto – ITCMD indevido – Bitributação – Recolhimento de ITBI – Dúvida improcedente.

Processo Digital nº: 1127941-72.2021.8.26.0100

Juiz(a) de Direito: Dr(a). Luciana Carone Nucci Eugênio Mahuad

Vistos.

Trata-se de dúvida suscitada pelo Oficial do 10º Registro de Imóveis da Capital a requerimento de V. R. de S. V. L., tendo em vista negativa em se proceder ao registro de escritura de permuta que envolveu os imóveis objeto das matrículas n.125.123 e 125.642 daquela serventia.

Informa o Oficial que a negativa foi motivada pela ausência de recolhimento do ITCMD, uma vez que, apesar de as partes contratantes atribuírem aos conjuntos de imóveis permutados, para fins tributários, o valor de R$1.196.011,00, eles possuem valores bastante distintos (R$1.044.851,58 para os imóveis recebidos pela requerente e R$550.000,00 para os imóveis por ela entregues), de modo que a permuta sem torna ou compensação caracteriza doação e hipótese de incidência do ITCMD (acréscimo patrimonial não oneroso àquele que recebe o bem de maior valor), conforme ampla orientação jurisprudencial. Documentos vieram às fls. 07/72 e 74.

A parte suscitada apresentou impugnação às fls.75/88, defendendo que eventual ganho de capital não se confunde com doação; que, nos termos do artigo 12 da Instrução Normativa SRF nº84/2001, “o custo de aquisição do imóvel adquirido em permuta é o valor do imóvel dado em permuta”. Assim, se a parte adquiriu imóveis urbanos ao custo do sítio que deu em permuta, não há que se falar em variação no valor patrimonial e tampouco em recolhimento de ITCMD, notadamente por se tratar de contrato oneroso, ao qual se aplicam as disposições referentes à compra e venda (artigo 533 do CC); que a parte recolheu ITBI sobre o valor maior dos bens que recebeu em permuta (R$1.196.011,00). Recolhimento de ITCMD ensejaria, portanto, bitributação; que, conforme precedente do Conselho Superior da Magistratura, “a discrepância entre o valor atribuído a um dos bens permutados e o seu valor venal de referência não descaracteriza a onerosidade do contrato celebrado, afastando assim a hipótese de incidência do Imposto sobre Transmissão ‘Causa Mortis’ e Doações” (Apelação Cível n.1099753-06.2020.8.26.0100).

O Ministério Público opinou pela procedência, com manutenção do óbice registrário (fls. 92/93).

A parte interessada manifestou-se às fls.94/95, reiterando os argumentos apresentados em sua impugnação.

É o relatório.

Fundamento e decido.

No mérito, a dúvida é improcedente. Vejamos os motivos.

Em que pese a jurisprudência que admite a incidência de ITCMD sobre o acréscimo patrimonial decorrente da permuta entre imóveis, a análise mais detida sobre a legislação tributária revela que esse posicionamento merece ser revisto.

Na hipótese sub judice, a parte interessada, por meio da escritura copiada às fls.27/35, contratou com A. J. B. e J. C. D. a permuta de imóveis, entregando a eles um sítio de sua propriedade, localizado na comarca de Tatuí/SP, objeto das matrículas nº54.004 e 719 do Registro de Imóveis daquela localidade, que foi adquirido pelo preço de R$550.000,00 e cujo valor total para efeitos fiscais, conforme DIAC do ITR para o exercício de 2018 era de R$830.666,00.

Em troca, recebeu três imóveis localizados nesta capital, sendo um apartamento objeto da matrícula n. 223.382 do 15º Registro de Imóveis, além de uma sala comercial e uma vaga dupla de garagem, objeto das matrículas n. 125.123 e 125.642 do 10º Registro de Imóveis, cujos valores venais de referência somaram R$1.196.011,00 (respectivamente R$570.134,00, R$512.161,00 e R$113.716,00).

Para efeitos tributários, as partes igualaram os valores dos bens, atribuindo aos montantes permutados o valor de R$1.196.011,00 e declarando expressamente que não houve torna ou reposição de nenhuma espécie.

Também consta da escritura que houve recolhimento do imposto de transmissão inter vivos ao município de São Paulo, o que vem demonstrado às fls.40/46.

Primeiramente, é importante destacar que o valor que as partes atribuem aos bens negociados não é relevante para fins tributários.

Como afirmado na impugnação, o valor de mercado dos imóveis pouco influenciou no encontro de vontade dos permutantes, para o que pesaram outros interesses práticos.

De fato, para os contratantes, o valor intrínseco dos bens pode ser bastante variável, ganhando relevante valorização por questões personalíssimas de fundo emocional e afetivo ou tornando-se desinteressantes e até desprezíveis por alterações na condição de vida de cada um, como no caso da requerente que informa ter se mudado para Portugal, o que a impede de usufruir o imóvel rural, preferindo imóveis urbanos com a expectativa de retorno financeiro que não alcançaria com o sítio.

É nesse contexto que, sob o aspecto das relações privadas, o preço dos bens envolvidos em um contrato de permuta pode não ser integrativo do negócio jurídico.

Contudo, para efeitos tributários, a expressão econômica dos bens negociados é essencial para a fixação de uma base de cálculo objetiva, que não pode variar conforme a conveniência dos contratantes.

Note-se que tanto o fato gerador dos tributos como sua base de cálculo são fixados por lei e, ao atribuir aleatoriamente um valor fiscal à operação, os contratantes afetariam o valor devido.

Outrossim, a transmissão inter vivos de bens imóveis a qualquer título, por ato oneroso, é hipótese de incidência do ITBI, nos termos do artigo 156, inciso II, da Constituição Federal.

Tal incidência compreende a permuta e sua base de cálculo é o valor venal dos bens ou direitos transmitidos, como dispõem os artigos 152, inciso III, e 157, da Consolidação das Leis Tributárias do Município de São Paulo (Decreto n.59.579/2020).

No caso concreto, a parte recebeu imóveis cuja soma do valor venal totalizou R$1.196.011,00 e, na condição de contribuinte, calculou o ITBI recolhido tomando por base esse valor.

Por outro lado, o sítio que entregou na permuta estava avaliado, para fins tributários, em R$830.666,00 conforme Declaração do ITR para o exercício de 2018, o que resulta em diferença de R$365.345,00, para a qual não houve compensação financeira.

Não resta dúvida de que se tratou de negócio oneroso, ao menos em parte, pois, embora não tenha havido pagamento em dinheiro, houve troca de patrimônio com a entrega do imóvel rural. Portanto, é inquestionável a incidência do ITBI.

Contudo, pode a permuta ser considerada um negócio complexo (parte oneroso e parte gratuito), ensejando a incidência simultânea e complementar de ITBI e de ITCMD? O acréscimo patrimonial auferido pela parte que recebeu imóveis de maior valor sem a correspondente compensação financeira pode caracterizar doação sujeita à incidência do ITCMD?

Embora a tese da caracterização de doação tributável seja sedutora, uma análise sistemática indica que a resposta deve ser negativa, sobretudo pela bitributação que acarretaria.

A questão já foi apreciada pelo E. Conselho Superior da Magistratura que firmou entendimento de que a permuta sem torna configura hipótese de incidência do ITCMD.

Nesse sentido:

“REGISTRO DE IMÓVEIS. Escritura pública de permuta de bens imóveis de valores venais distintos, sem torna. Acréscimo patrimonial de forma não onerosa a caracterizar doação. Ausência de comprovação de recolhimento de Imposto de Transmissão causa mortis – ITCMD. Dever do Oficial de velar pelo seu recolhimento, exigindo a apresentação das respectivas guias. Óbice mantido. Recurso desprovido” (TJSP; Apelação Cível 1007328-09.2020.8.26.0019; Relator(a): Ricardo Anafe (Corregedor Geral); Órgão Julgador: Conselho Superior de Magistratura; Foro de Americana – 1ª Vara Cível; Data do Julgamento: 25/02/2021; Data de Registro: 05/03/2021).

“REGISTRO DE IMÓVEIS. Escritura pública de permuta de bens imóveis de valores venais distintos, sem torna. Acréscimo patrimonial de forma não onerosa a caracterizar doação. Ausência de comprovação de recolhimento de Imposto de Transmissão causa mortis – ITCMD. Dever do Oficial de velar pelo seu recolhimento, exigindo a apresentação das respectivas guias. Óbice mantido. Recurso desprovido” (TJSP; Apelação Cível 1007778-97.2020.8.26.0100; Relator(a): Ricardo Anafe (Corregedor Geral); Órgão Julgador: Conselho Superior de Magistratura; Foro Central Cível – 1ª Vara de Registros Públicos; Data do Julgamento: 05/06/2020; Data de Registro: 09/06/2020).

O mesmo entendimento foi seguido pela 6ª Câmara de Direito Público (destaque nosso):

“DECADÊNCIA – ITCMD – Não ocorrência – Inteligência do art. 173, inc. I do CTN – Créditos tributários constituídos antes de decorrido o prazo decadencial – Preliminar prejudicial de mérito afastada. APELAÇÃO CÍVEL – AÇÃO ANULATÓRIA DE AUTO DE INFRAÇÃO – ITCMD – Alegação de que se firmou contrato de permuta sem torna a título oneroso, de forma a não incidir o imposto estadual – Inadmissibilidade – Autuação baseada nas informações prestadas na Declaração do Imposto de Renda Pessoa Física onde foram informadas as transferências de valores a título de doação – Admissibilidade – Doação, todavia, que ocorreu em valor menor ao apurado pela fiscalização – Doação relativa a diferença de valores (venais) entre os imóveis permutados – ITCMD que deve recair sobre esta diferença – Minoração do valor autuado que se impõe – Multa confiscatória – Não observada – Conversão do depósito em renda em favor da Fazenda – Possibilidade após o trânsito em julgado – R. sentença parcialmente reformada – Recursos da autora e da ré parcialmente providos” (TJSP; Apelação Cível 1003390-40.2016.8.26.0053; Relator(a): Silvia Meirelles; Órgão Julgador: 6ª Câmara de Direito Público; Foro Central – Fazenda Pública/Acidentes – 1ª Vara de Fazenda Pública; Data do Julgamento: 27/05/2019; Data de Registro: 31/05/2019).

Mas, também houve julgamento em sentido diverso, como apresentado pela impugnação, com a seguinte ementa:

“REGISTRO DE IMÓVEIS – Escritura pública de permuta de bens imóveis com valores distintos e torna – Negócio jurídico oneroso – ITBI recolhido – Inexistência de fato gerador do ITCMD – Exigência de comprovação do pagamento do imposto estadual afastada – Recurso provido para julgar improcedente a dúvida determinando o registro do título” (TJSP; Apelação Cível 1099753-06.2020.8.26.0100; Relator (a): Ricardo Anafe (Corregedor Geral); Órgão Julgador: Conselho Superior de Magistratura; Foro Central Cível – 1ª Vara de Registros Públicos; Data do Julgamento: 26/08/2021; Data de Registro: 15/09/2021).

A harmonização desse último precedente com os julgados anteriormente citados é possível com base na existência de torna financeira, a qual confirmaria onerosidade do negócio.

Constata-se do respectivo acórdão que, diferentemente dos casos anteriormente citados, este envolveu a permuta entre um imóvel cujo valor venal era de R$1.552.647,00 por outro com valor venal de R$307.433,00. Ao primeiro, foi atribuído o valor de R$660.000,00 e, ao segundo, o valor de R$360.000,00, com torna de R$300.000,00. Essa contraprestação pecuniária é que teria caracterizado a onerosidade do negócio.

Entretanto, qual seria a extensão da compensação financeira necessária para caracterização da onerosidade para os negócios em geral?

A rigor, somente se poderia considerar doação o acréscimo patrimonial auferido sem compensação financeira, de modo que a mera existência de torna não seria suficiente para se concluir pela onerosidade, devendo ela ser suficiente para compensar a diferença entre o valor tributário dos bens permutados.

Havendo parcela sem compensação, a qual possa ser entendida como doação, sobre ela incidiria o ITCMD.

Ressalte-se, mais uma vez, que tratando-se de questão tributária, somente o valor venal deveria ser considerado, ignorando-se o valor aleatoriamente atribuído pelas partes. Então, a base de cálculo do ITCMD seria a diferença entre os valores venais, na medida em que não haja compensação, a qual já é tributada pelo ITBI, ensejando inevitável bitributação, que não pode ser admitida.

Por fim, a ocorrência de eventual ganho de capital a ensejar renda tributável é matéria distinta, relativa a fato gerador diverso e suscetível a legislação própria.

Mas, não se pode negar que o incremento patrimonial auferido com o negócio, entendido como rendimento do capital imobiliário, também poderá ensejar oportuna tributação pelo ente federal.

É certo que, para os registradores, vigora ordem de controle rigoroso do recolhimento do imposto por ocasião do registro do título, sob pena de responsabilidade pessoal (art. 289 da Lei n. 6.015/73; art.134, VI, do CTN e art. 30, XI, da Lei 8.935/1994).

A orientação do Egrégio Conselho Superior da Magistratura acerca desta matéria é no sentido de que a fiscalização devida não vai além da aferição sobre a existência ou não do recolhimento do tributo (e não se houve correto recolhimento do valor, sendo tal atribuição exclusiva do ente fiscal, a não ser na hipótese de flagrante irregularidade ou irrazoabilidade do cálculo).

Porém, revendo posicionamento anteriormente adotado para casos de permuta, concluo que, recolhido o ITBI sobre o valor venal dos imóveis negociados, não há espaço para incidência do ITCMD.

Em outros termos, uma vez recolhido o ITBI e não constatada hipótese de flagrante irregularidade ou irrazoabilidade do cálculo, não há motivo para impedir o ingresso do título no fólio real.

Diante do exposto, JULGO IMPROCEDENTE a dúvida suscitada pelo Oficial do 10º Registro de Imóveis da Capital, determinando o registro.

Deste procedimento não decorrem custas, despesas processuais ou honorários advocatícios.

Oportunamente, ao arquivo com as cautelas de praxe.

P.R.I.C.

São Paulo, 13 de janeiro de 2022.

Luciana Carone Nucci Eugênio Mahuad

Juíza de Direito

(DJe de 17.01.2022 – SP)