1ª VRP|SP: Doação Modal – Doação de numerário para aquisição de bem imóvel – Imposição de cláusulas restritivas e de reversão – Possibilidade – Dúvida improcedente.

Processo: 000.00.607814-1

Dúvida

5º Oficial de Registro de Imóveis

Vistos.

O Senhor 5º  Oficial de Registro de Imóveis da Capital, a pedido de Deushyl Pousa e seu filho Fábio Pousa Sirera Montes, suscitou a presente dúvida aduzindo, em resumo, que apresentada escritura pública de doação cumulada com compra e venda, tendo por objeto o imóvel matriculado na Serventia sob n° 39.312, negou acesso do título ao fólio em virtude de ter sido celebrado pacto adjeto de imposição de cláusulas restritivas de domínio em negócio jurídico oneroso, já que entende, conforme nota de devolução, que tratando-se o título de doação modal, com imposição de cláusulas restritivas, não pode ser admitido a registro, já que as cláusulas somente podem ser estabelecidas nos atos graciosos ou de mera liberalidade, em benefício de terceiros.

Consta do título que Carlos Rubens Santos Garcia e sua mulher alienaram o imóvel matriculado na Serventia sob n° 39.312 a Fábio Pousa Sirera Montes, deste recebendo o preço ajustado, que o numerário foi doado a Fábio por sua genitora Deushyl Pousa que declarou ter doado o valor correspondente ao preço da aquisição do imóvel e no mesmo ato “impôs as cláusulas de incomunicabilidade e impenhorabilidade, enquanto viver o donatário, e de inalienabilidade enquanto viva for, ficando assim gravado o imóvel por quem não é titular.

Expõe os fundamentos que servem para afastar a registrabilidade do título, trazendo doutrina e jurisprudência, revelando ter ciência de que o tema encerra reconhecidas dificuldades. Lembra decisões do Egrégio Conselho Superior da Magistratura, admitindo que a decisão proferida no Ag. Pet. 237.990, deixou consignado ser perfeitamente possível tal negócio jurídico, qualificado de doação modal, tornado-se referência posterior.

A inicial veio acompanhada dos documentos de fls. 15/31.

Sem impugnação foram os autos ao Ministério Público, que se manifestou às fls. 34/36, opinando pela improcedência da dúvida.

É o relatórioDecido.

Apresentada escritura pública que instrumentaliza doação de dinheiro e compra e venda de imóvel, com imposição de cláusulas restritivas, de impenhorabilidade e incomunicabilidade, enquanto viver o donatário, e de inalienabilidade, enquanto viva a doadora, e de reversão incidentes sobre o imóvel adquirido por Fábio Pousa Sirera Montes de Carlos Rubens Santos Garcia e sua mulher com numerário que lhe foi doado por sua genitora Deushyl Pousa, negou o Senhor 5o Oficial de Registro de Imóveis acesso do título ao fólio.

Entende o Senhor Oficial, que: a doação de pecúnia para aquisição de bem imóvel, com imposição de cláusulas de inalienabilidade incomunicabilidade e impenhorabilidade não traduz doação modal nem permite que se viabilize o registro, dê-se-lhe o nome que se der. As cláusulas restritivas de domínio traduzem limitação do poder de dispor. Não constituem modus. Este, por sua vez, é obrigação imposta àquele em cujo proveito se constitui um direito nos atos de liberalidade. A restrição, favorecendo o próprio donatário, não pode configurar encargo, não sendo razoável admiti-la como elemento da doação modal nem do negócio jurídico que, prescindindo do nome, apresente toda a sua tipologia básica.

Depois, se a restrição ou a obrigação, no caso de se entender uma possível donatio sub modus for imposta em ato posterior, não haverá associação alguma, e sim dissociação; não existirá encargo, ainda que se lhe dê esse nome.

Finalmente, considerando-se que há obrigação do beneficiado no adimplemento do encargo incidindo, portanto, as regras jurídicas sobre validade do negócio jurídico anexo patenteia-se nulidade de imposição de cláusulas pelo próprio titular de domínio, já que não é licito tornar inalienável bem de seu próprio domínio.

A questão agitada pelo Senhor Oficial não é nova, como ele mesmo reconhece em suas razões quando assevera que: o tema encerra reconhecidas dificuldades.

Inegável o profundo conhecimento do Registrador Suscitante a respeito do tema, revelado pelos argumentos expostos na inicial.

A matéria já mereceu debate profundo entre doutrinadores, que aliás é mencionado pelo Senhor 5. Oficial de Registro de Imóveis, e na jurisprudência várias decisões a respeito do tema existem, já tendo o Egrégio Conselho Superior da Magistratura apreciado a questão, restando razoavelmente pacificado o tema, no sentido de ser possível o registro de título que contenha tal negócio jurídico, qualificado de doação modal.

Algumas foram as decisões a respeito da matéria proferidas nesta Vara de Registros Públicos, dentre estas merecem destaque as lançadas nos processos de dúvida n. 38/89 e 518/91, respectivamente pelos Drs. José Renato Nalini e Kioitsi Chicuta, quando aqui judicaram, em que as dúvidas foram julgadas improcedentes.

Sem o brilhantismo do antecessores, ou mesmo do Oficial Suscitante, inclino-me pelo entendimento pretoriano que admite o acesso ao fólio de títulos que instrumentalizam negócio jurídico de doação de dinheiro para aquisição de imóvel, com imposição de cláusulas restritivas e de reversão incidentes sobre o imóvel, por entender compatível com o sistema jurídico pátrio, espelhando a real vontade dos contratantes, inexistindo qualquer vedação expressa na legislação que impeça a realização de tais ajustes e o consequente acesso ao registro imobiliário.

Vale aqui transcrever lição de Afrânio de Carvalho, lançada na famosa obra Registros de Imóveis 4. edição, ed. Forense, pág. 91, a que se reportou a Digna Promotora de Justiça em sua ponderada manifestação opinando pela improcedência da dúvida: Além desse condicionamento, a compra e venda de imóveis recebe, por vezes, as cláusulas restritivas de inalienabilidade, comunicabilidade e impenhorabilidade, impostas pelos doadores de numerário utilizado no pagamento do preço, geralmente pais ou avós do adquirente, que para esse fim comparecem como intervenientes no ato da escritura. Há, nesse ato, uma doação modal acoplada com a compra e venda, pois o dinheiro é fornecido para que com ele seja feita a aquisição do imóvel clausulado, a qual, ao consumar-se, satisfaz ao modus incumbido ao donatário. Em vez de serem celebradas duas escrituras, com excesso de formalismo, celebra-se uma única, em que se reúnem a doação e a compra e venda, tendo o título plena validade para o registro.

A posição sustentada pelo Registrador decorre de exame extremamente rigoroso do tema, com exacerbado tecnicismo, que embora demonstre erudição e cultura jurídica, desatende ao interesse do cidadão, que tendo adotado solução já admitida pela jurisprudência, e que espelha de forma cristalina a sua real vontade, encontra dificuldade para o registro do título face ao interesse do Registrador em ver agitada a questão.

O Senhor Registrador deixa evidente seu interesse em reabrir a discussão a respeito da matéria quando na inicial afirma: Enfim, exposta a divergência doutrinária e jurisprudencial, o momento se faz propício e oportuno para que Vossa Excelência, sopesando os argumentos que se contradistinguem, possa dar a melhor interpretação, firmando orientação para os casos que se repetem diuturnamente nos registros da comarca de São Paulo.

Salvo melhor juízo, a matéria é razoavelmente tranquila na Comarca da Capital, havendo consenso entre os Registradores da Comarca, que vêm adotando os precedentes jurisprudenciais, no sentido de ser possível o registro de títulos que espelhem negócios jurídicos semelhantes ao aqui tratado, além do escólio de Afrânio de Carvalho, e trabalhos dos Senhores Oficiais de Registro de Imóveis da Capital, Elvino Silva Filho, Ademar Fioraneli e Jersé Rodrigues da Silva.

Mesmo que não seja a melhor interpretação da divergência doutrinária e jurisprudencial e dos argumentos que se contradistinguem, o registro do título é possível visto inexistir qualquer ofensa a princípios registrários e legais, estando em consonância com o nosso sistema jurídico.

Assim, ante o exposto e o mais que dos autos consta, acolhendo as razões da Curadoria de Registros Públicos, julgo improcedente a presente dúvida.

Transitada esta em julgado, cumpra-se o disposto no art. 203, inciso II da Lei de Registros Públicos, arquivando-se oportunamente os autos, observadas as cautelas de praxe.

P.R.I.

São Paulo, 1 de fevereiro de 2001.

Oscar José Bittencourt Couto

Juiz de Direito