1ª VRP|SP: Usucapião judicial – Imóvel da COHAB – A prescrição aquisitiva não produz efeitos sobre bem de domínio público – Bem afetado ao exercício de atividade pública – Desvio dos fins especiais a que foi destinado. Pedido improcedente.

Processo 1074124-40.2014.8.26.0100

Usucapião

Usucapião Especial (Constitucional)

L. C. D. dos Santos e outro

Trata-se de ação de usucapião proposta contra a COMPANHIA METROPOLITANA DE HABITAÇÃO DE SÃO PAULO COHAB, para aquisição do domínio do imóvel descrito na inicial.

Decido.

Para bem compreender a situação posta na presente ação de usucapião cumpre realçar que a parte autora pretende adquirir imóvel matriculado sob nº 3.716 do 11º RISP, de titularidade de COMPANHIA METROPOLITANA DE HABITAÇÃO DE SÃO PAULO COHAB, sob a alegação de que está na posse mansa e pacífica do referido bem, ininterruptamente.

Requer, portanto, a procedência do pedido, com fundamento nas disposições do Código Civil. Inicialmente, cabe afastar, no intróito da lide, a defesa meramente dilatória para impedir a remessa dos autos ao Juízo Fazendário, pois não há razão para protelar o julgamento imediato (art. 285-A do CPC).

Cuida-se de matéria unicamente de direito e no Juízo há diversos julgamentos de improcedência, como, a título ilustrativo, naquela decisão lançada nos autos dos processos nº 0333710-17.2009.8.26.0100, 1015228-04.2014.8.26.0100, 1014655-63.20149.8.26.0100, 1014630- 50.20149.8.26.0100 e 1014458-11.20149.8.26.0100.

Com efeito, a prescrição aquisitiva não produz efeitos sobre bem público afetado ao exercício de atividade pública (artigo 191 da CR e artigo 98 do Código Civil).

Trata-se, na verdade, de imóvel insuscetível de ser adquirido por usucapião, não em razão da natureza da pessoa jurídica titular do domínio, mas sim em razão da atividade por ela desenvolvida.

É preciso respeitar o comando normativo proibitivo previsto no art. 183, § 3º, da Constituição Federal, o que autoriza a rejeição do pedido visando a declaração originária do domínio. Mesmo em se tratando de financiamento quitado, o caminho não seria a usucapião, mas ação própria, como se vê no seguinte precedente:

DIREITO CIVIL Compromisso de Compra e Venda Ação Declaratória de quitação de saldo devedor de financiamento imobiliário c/c obrigação de fazer Procedência do pedido para declarar quitado o saldo devedor do financiamento imobiliário, impondo à COHAB a entrega ao autor do respectivo termo de quitação, bem como, outorga, em seu favor, da escritura definitiva do imóvel e condenar as demais requeridas na anuência do imposto à mutuante Inconformismo Preliminar Ilegitimidade de parte Inocorrência Ofensa ao princípio da Continuidade registral Inocorrência Observância da Teoria dos Atos Próprios sintetizada nos brocardos latinos tu quoque e venire contra factum proprium Sentença mantida Recurso desprovido. (Apc 0194462-07.2007.8.26.0100Relatora:Des. Marcia Tessitore).

A doutrina e jurisprudência dominantes posicionam-se no sentido de que os bens de titularidade das entidades paraestatais (aqui incluída a COHAB como sociedade de economia mista) são bens públicos com destinação especial e administração particular das instituições a que foram transferidos para consecução dos fins estatutários.

Na condição de bens públicos, regem-se pelas normas do direito público, inclusive quanto à imprescritibilidade por usucapião, uma vez que, se desviados dos fins especiais a que foram destinados, retornam à sua condição originária do patrimônio de que se destacaram.

Tal norma somente se excepciona quanto à oneração com garantia real, sujeitando-se à penhora por dívidas da entidade e também com relação à alienação na forma estatutária, independentemente de lei autorizativa.

Atente-se, também, para a finalidade (pública) dos imóveis destinados à COHAB, que tem como objetivo organizar, administrar e distribuir imóveis à população carente, por meio de financiamentos, implementando e executando políticas públicas e leis programáticas.

Para tanto, organiza e executa os projetos de acordo com a oferta e a demanda, conhecendo a existência de longa e demorada fila para aquisição dos imóveis nestes moldes. Logo, entender-se pela possibilidade de usucapião dos imóveis destinados a tal finalidade, em favor de pessoas que não figuram na primeira ordem da fila, seria consumar uma situação ilegal, injusta e ofensiva a todo o ordenamento em vigor, em prejuízo das demais famílias que aguardam, e muito, pela moradia própria. Também seria admitir e fomentar a invasão de imóveis da COHAB, pois todos têm ciência dos entraves facilmente criados pelas famílias para desocupação do bem.

Neste sentido a jurisprudência do Egrégio tribunal de Justiça do Estado de São Paulo:

“APELAÇÃO – Usucapião. Bem público. Gleba pertencente à Cohab. Empresa de economia mista com finalidade de proporcionar moradia popular. Interesse público da companhia habitacional é notório, além do que, seu capital é formado com recursos públicos. Imóvel que compõe o Sistema Financeiro de Habitação. Óbice para a pretensão do apelante configurado. Ocupação ou invasão do imóvel não dá respaldo à declaração de domínio. Apelo desprovido” (TJSP – Apel. nº 990.10.045027-1 – j. 21/06/2010 – Rel. Des. Natan Zelinschi de Arruda).

No julgamento da apelação nº 0050604-05.2013.8.26.0100 o Desembargador JOÃO PAZINE NETO manteve sentença proferida pelo Juízo da Primeira Vara de Registros Públicos e anotou os seguintes precedentes na Corte Paulista:

“Ação de usucapião. Bem dominical. Propriedade da CDHU, empresa de economia mista. Impossibilidade de aquisição do domínio do imóvel por usucapião. Vedação expressa contida nos artigos 183, parágrafo 3º, e 191, parágrafo 1º, da Constituição Federal. Extinção do feito, sem apreciação do mérito, mantida. Apelo improvido” (Apelação Cível n. 546.565-4/4-00 3ª Câmara de Direito Privado Relator Des. DONEGÁ MORANDINI, julg. em 10.3.2009);

“Usucapião – Imóvel de propriedade da Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano do Estado de São Paulo – CDHU Bem público inviável de ser usucapido – Inteligência dos artigos 183, parágrafo 3º, e 191, parágrafo único, da Constituição Federal, e 102, do Código Civil Sentença mantida. Recurso improvido” (Ap. 517.012.4/4 6ª Câmara de Direito Privado Relatora Desa. ISABELA GAMA DE MAGALHÃES).

Interessante ainda acerca do tema transcrever trecho do acórdão proferido na apelação nº 012993-20.2008.8.26.005, relator o Desembargador LUIZ ANTONIO COSTA, da 7ª Câmara de Direito Privado deste Tribunal de Justiça, julgado em 26/5/2014, verbis:

“Ao regulamentar o art. 183, § 3º, da Constituição, o art. 98 do CC muito claramente dispõe que bens públicos são aqueles pertencentes às pessoas jurídicas de direito público interno, regra a qual o art. 99 apenas detalha, sem estender sua abrangência às pessoas de direito privado, de que é espécie a CDHU. Ocorre que, destinando-se as empresas estatais à prestação de serviço público (no caso, promover a construção de moradias populares, art. 23, inc. IX, da Constituição), os bens afetados para o cumprimento dessa finalidade devem ser entendidos como materialmente públicos, usando categoria de Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald (Direitos Reais, 6ª ed., Rio: Lumen Juris, 2010, p. 279). No mais, o usucapião e a atividade da CDHU cumprem o mesmo propósito de concretizar a função social da propriedade, restando uma ofensa à igualdade desprestigiar todos aqueles que entram na fila e aguardam por um imóvel da CDHU em prol de quem não respeitou essa ordem e ocupou diretamente o bem. Assim também parte significativa da jurisprudência da 1ª Seção de Direito Privado deste Tribunal: 1ª Câm., Ap. nº 0334769-49.2009.8.26.0000, Rel. Des.Elliot Akel, j. em 05.02.2013; 2ª Câm., Ap. nº 0341403- 52.2009.8.26.0100, Rel. Des.Flavio Abramovici, j. em 21.01.2014; 3ª Câm., Ap. nº 0033972-91.2010.8.26.0007, Rel. Des. Donegá Morendini, j. em 15.01.2013; 4ª Câm., Ap. nº 0011479-92.2011.8.26.0005, Rel. Des. Carlos Henrique Miguel Trevisan, j. em 13.02.2014; 5ª Câm., Ap. nº 0319819-35.2009.8.26.0000, Rel. Des. Edson Luiz de Queiroz, j. em 03.07.2013; 7ª Câm., Ap. nº 0001754-53.2008.8.26.0080, Rel. Des. Mendes Pereira, j. em 06.11.2013; 8ª Câm., Ap. nº 0006945-72.2012.8.26.0037, Rel. Des. Salles Rossi, j. em 16.01.2013; 9ª Câm., Ap. nº 0032617-81.2008.8.26.0309, Rel. Des. Lucila Toledo, j. em 13.11.2012; 10ª Câm., Ap. nº 9114702-88.2009.8.26.0000, Rel. Des. Roberto Maia, j. em 11.02.2014.”

Merece destaque, por fim, decisão firmada nos embargos infringentes (nº 0227815-38.2007.8.26.0100), quando, mais uma vez, tal entendimento foi prestigiado. Trago trecho do voto vencedor, da lavra da E. Desembargadora CHRISTINE SANTINI, que assim se posicionou:

“A controvérsia reside na possibilidade ou não de acolhimento do pedido de usucapião constitucional urbana cujo objeto é imóvel de titularidade da COHAB, destinado à moradia popular. Com o devido respeito de opiniões em sentido contrário, reputa-se que a natureza do imóvel que se pretende usucapir é comparável à dos bens públicos, o que o torna insuscetível de aquisição por usucapião. Trata-se de bem de titularidade de entidade paraestatal (sociedade de economia mista), com destinação especial tendente à consecução do próprio fim estatutário da sociedade. Assim, a forma de aquisição do bem deve ser regida pelas normas do direito público, uma vez que impossível o desvio da finalidade especial a que se destina. Havendo tal desvio, deve retornar ao patrimônio da sociedade, que novamente o utilizará para cumprimento da finalidade estatutária. No caso dos autos, pretende a embargada a aquisição do imóvel sem se sujeitar à fila das famílias que aguardam pela moradia própria, sem prova cabal da própria quitação do preço de aquisição pelo compromissário comprador original, o que restou bem destacado no R. Voto do Excelentíssimo Senhor Desembargador Rui Cascaldi (fls. 226). Dessa forma, devem os embargos infringentes ser acolhidos, para o fim de ser negado provimento ao recurso de apelação da ré, ora embargada. Nesse sentido, há, como ressaltado no R. Voto vencido, precedentes desta Colenda Câmara: “USUCAPIÃO ESPECIAL URBANA AÇÃO AJUIZADA CONTRA SOCIEDADE DE ECONOMIA MISTA, REGIDA PELAS REGRAS DAS PESSOAS JURÍDICAS DE DIREITO PRIVADO IMÓVEL, CONTUDO, QUE POSSUI NATUREZA DE BEM DE DOMÍNIO PÚBLICO COM DESTINAÇÃO ESPECIAL E, ASSIM, INSUSCETÍVEL DE USUCAPIÃO INDEFERIMENTO DA INICIAL MANTIDO RECURSO DESPROVIDO” (Apelação Cível nº 0334769.49.2009.8.26.0000 Santo André, 1ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, v.u., Rel.Des. Elliot Akel, em 5/2/13).

“COMPROMISSO DE COMPRA E VENDA – Resolução c.c. reintegração de posse – As partes firmaram promessa de venda e compra de imóvel, como preço a ser pago em parcelas – Inadimplemento por parte da apelante – Notificação premonitória – Decurso do prazo, sem a purgação da mora – Ocupação indevida – Resolução e reintegração de posse de rigor – A resolução do negócio, por culpa do adquirente, faz surgir o dever de reparação dos prejuízos causados à outra parte – Perdas e danos pela privação da posse do imóvel – Considerando o longo período de ocupação do imóvel sem nenhuma contraprestação e para que não haja enriquecimento sem causa por parte da apelante, a perda das parcelas pagas não se mostra abusiva nem fere os ditames do código consumerista – Pedido de declaração de aquisição do domínio do imóvel por usucapião constitucional rejeitado – A apelada é sociedade de economia mista, consistindo o imóvel em habitação popular – Bem público não susceptível de aquisição pela via do usucapião – Resolução do contrato, com a reintegração da apelada na posse do imóvel, com a retenção dos valores pagos – Sentença mantida – Recurso improvido” (Apelação Cível nº 0207447-25.2009.8.26.0007 São Paulo, 1ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, v.u., Rel. Des. Paulo Eduardo Razuk, 13/3/12)”.

De fato, tais precedentes devem ser observados, por retratarem melhor interpretação sobre a natureza jurídica dos imóveis integrantes do patrimônio da referida sociedade de economia mista, dada à sua função social de moradia, que, na hipótese, deve preponderar sobre o também interesse social de moradia da parte autora, mas em caráter individual.

Em suma, o interesse público de moradia deve preponderar sobre o interesse privado também de moradia.

Do exposto, julgo improcedente o pedido, com fundamento no art.285-A do CPC e, em consequência, decreto a extinção do processo com resolução do mérito.

Custas pela parte autora, que resta SUSPENSA, em razão da gratuidade que ora, se defere.

Após o trânsito em julgado, arquivem-se os autos.

(DJe de 23.06.2015 – SP)